Capítulo 4 - Clima Pesado
“Voltar no tempo me deu uma segunda chance, mas corrigir os erros que cometi será o verdadeiro teste"
Continuando...
Aaron hesitou um instante, mas a voz de Ethan e o olhar fixo de Darius o pressionaram a agir. Quando Darius tomou o livro, seus dedos acariciaram a capa com um misto de reverência e desaprovação. Ele examinou o volume com um olhar meticuloso.
— Interessante... — Darius murmurou, sem desviar o olhar do livro. — Parece que sua curiosidade pode ter algumas consequências. Por que está lendo um livro sobre veias espirituais? Você se interessa por esse tipo de assunto?
Aaron sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Ele abaixou os olhos para os próprios sapatos, que reluziam impecavelmente polidos, tentando esconder o tumulto interno que ameaçava transbordar. O medo apertava seu coração como uma mão gélida, enquanto a raiva fervilhava logo abaixo da superfície.
— A-ainda não aprendi a ler. Só escolhi este livro porque a capa é chamativa — Aaron murmurou, sua voz era quase um sussurro, carregando uma vulnerabilidade que ele odiava demonstrar.
Darius devolveu o livro à estante com um gesto deliberado. Seu olhar era severo, e sua presença dominava o ambiente, fazendo os gêmeos parecerem pequenos e insignificantes.
A presença do irmão mais velho era sufocante, e sua proximidade fez a pele de Aaron se arrepiar, como se pressentisse um perigo iminente. Em uma tentativa desesperada de controlar a crescente inquietação, o príncipe respirou fundo e cruzou os braços firmemente sobre o peito.
— Se eu estivesse no lugar de Kaylus, já teria mandado vocês de volta ao Palácio Gardênia há muito tempo. Tratar um livro tão raro como se fosse algo trivial é um absurdo. Sinceramente… — Darius expressou sua indignação.
Aaron sentiu o peso de um olhar fixo sobre si e, relutante, ergueu os olhos. O olhar de Ethan parecia julgador, quase como se dissesse: “você o admira tanto, mas veja como ele fala com você agora.” Aaron desviou os olhos, sentindo a pressão das palavras silenciosas que aquele olhar carregava. Não precisava disso, quando ele próprio já se culpava por suas tolices.
Ethan franziu levemente o cenho, percebendo algo que apenas ele poderia reconhecer: o medo que o irmão tentava esconder sob uma máscara de frieza. O suor frio em sua testa, os lábios entreabertos, e a rigidez em seus movimentos o denunciavam. Sem dizer uma palavra, ele estendeu a mão e pegou a de Aaron.
Com o maxilar apertado, Aaron permitiu que os dedos de Ethan segurassem os seus. Ele sentiu a onda de calor subir como uma cobra rastejante pelo braço, mas, de alguma forma, também havia uma estranha sensação de controle. Era como se a dor o mantivesse “acordado”, ancorando-o ao presente.
— Felizmente, você não é Kaylus — Ethan respondeu, mantendo a voz em um tom polido, embora o sarcasmo fosse inegável. — Ele, pelo menos, não valoriza um livro antigo mais que a vida de seus irmãos de sangue.
A resposta de Ethan pairou no ar como uma lâmina afiada, cortante e inesperada. Por um momento, o silêncio dominou o ambiente. Darius, que antes dedilhava alguns livros, virou-se lentamente para ele, com um sorriso discreto surgindo em seus lábios. Seus olhos dourados brilhavam com uma mistura de curiosidade e diversão.
— Ora, ora... — Darius murmurou, o sorriso se alargando. — Quem diria que você tinha essa língua afiada, Ethan? Você é sempre tão... reservado. No entanto — Darius continuou, ignorando o olhar surpreso de Aaron —, me admira que pense assim. Talvez você devesse prestar mais atenção no valor do conhecimento. Há coisas que valem mais do que meras vidas... especialmente vidas que já parecem... comprometidas.
— Comprometidas ou não, ainda são vidas — Ethan retrucou, seu tom mais contido, mas não menos firme. — E algumas delas são mais preciosas do que você parece ser capaz de entender. Por que não acabamos logo com a conversa fiada? Responda minha pergunta. O que o traz aqui?
— Kaylus se uniu à investigação da Imperatriz. Ele parece ter reunido algumas informações importantes, agora, quem o guiou até elas, é um grande mistério. — Darius fez uma pausa, dirigindo sua atenção para Aaron — O fato é que temos pistas e testemunhas. Imaginei que, ao vir aqui, conseguiria alguma atualização, mas pelo visto, foi em vão. Kaylus não se encontra no momento.
— Descobrimos esta manhã que Leila e alguns guardas do Palácio Camélia foram detidos. Não sei quanto aos guardas, mas Leila é inocente. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para provar sua inocência. — Ethan respondeu, sua voz carregada de determinação.
— Realmente acredita nisso? — Darius perguntou, com um tom de descrença. Ele se agachou, ficando ao nível dos gêmeos. — Irmãozinho, sua bondade excessiva pode te trazer problemas. Converse com nossa mãe antes de tirar alguma conclusão. Leila não foi presa à toa. Diferente dos criados da cozinha, havia provas incriminadoras contra ela.
— As provas que vimos até agora não confirmam sua culpa. Mamãe deve saber disso melhor do que ninguém, não podemos simplesmente ignorar o que acreditamos ser verdade. Tanto eu quanto Aaron, acreditamos na inocência de Leila — Ethan respondeu, a determinação em sua voz evidenciava seu descontentamento.
Darius suspirou, com um olhar de pena misturado com uma pitada de diversão.
— São dois tolinhos. Sugeri que pedissem explicações à nossa mãe, mas retiro o que disse. É impossível que ela fale algo a vocês, conhecendo-a, simplesmente mandará outra governanta sob o pretexto de que Leila se demitiu. — Darius disse, passando o dedo ao longo do pescoço de maneira sugestiva. — Ocorrerá um julgamento nos próximos dias, o clima no Palácio Hibisco ficará pesado.
— U-um julgamento? — Aaron finalmente conseguiu perguntar.
— Sim, um julgamento. O que acham de eu mexer alguns pauzinhos para vocês assistirem? — Darius perguntou, abrindo um pequeno sorriso.
Os gêmeos trocaram um olhar carregado de incerteza. A proposta de Darius parecia uma chance para obter respostas, mas também levantava suspeitas sobre suas verdadeiras intenções.
— Por que você faria isso? O que ganharia nos ajudando? — Ethan perguntou, desconfiado.
— Não posso simplesmente ignorar o interesse de vocês na situação de Leila. Além disso, observar o julgamento pode fornecer informações úteis para mim também. Não estarei presente, então se algo interessante acontecer, devem me informar. Observem a movimentação dos guardas, seus olhares, seus gestos, tudo. Vocês serão como meus pequenos espiões. Podem me ajudar com isso? — Darius respondeu, olhando de um para outro.
Aaron franziu o cenho, ainda lutando para entender o real motivo por trás da oferta. Quando estava prestes a fazer uma pergunta, Ethan apertou sua mão, detendo-o.
— Muito bem, iremos ajudá-lo. A única coisa que precisa fazer é nos ajudar a assistir ao julgamento. Não me importo com o uso que dará às informações — Ethan respondeu, estendendo a outra mão. Surpreso, Darius olhou-a com curiosidade, mas logo a apertou com sua mão bronzeada e calejada.
— Então, estamos concordados. — Darius respondeu, satisfeito. Levantando-se, apoiou a mão no cabo de sua espada com um gesto de condescendência. — Talvez Kaylus esteja no Palácio Hibisco, será um pouco irritante aparecer por lá, então voltarei para vê-lo mais tarde. Cuidem-se e fiquem longe da biblioteca, os livros são perigosos e podem machucá-los.
Aaron observou Darius sair da biblioteca tão silenciosamente quanto entrou. O suor frio escorria lentamente pelo seu pescoço, enquanto um zumbido incômodo preenchia seus ouvidos, culminando em uma dor de cabeça que pulsava como um tambor incessante. A presença do irmão mais velho era sufocante, como se tivesse roubado anos de sua vida. Memórias dolorosas e indesejadas invadiam sua mente, lembranças de uma vida que preferia esquecer.
Desamparado, Aaron soltou a mão de Ethan. Recuou, cambaleante, até sentir a frieza da parede contra suas costas, um contraste gritante com o calor que inundava sua pele. Aos poucos, ele se deixou escorregar até o chão, onde permaneceu, seus olhos estavam fixos no vazio, enquanto sua mente vagava pelos abismos de seu próprio tormento.
— Você está bem? — Ethan perguntou suavemente.
Aaron abriu os olhos, ainda enevoados pela dor, e encontrou o olhar preocupado de Ethan. Os cabelos dele estavam perfeitamente alinhados e caiam sobre as sobrancelhas. O irmão vestia uma camisa impecavelmente engomada, com uma bermuda cinza de alfaiataria que terminava logo acima dos joelhos, e meias que subiam até as panturrilhas, conferindo-lhe um ar de elegância aristocrática. Parecia uma versão refinada do garoto de calças folgadas e casaco largo que lhe arrastava todos os dias para as caminhadas matinais.
Aaron esboçou um sorriso cansado ao se lembrar de como zombava das roupas desleixadas de Ethan. Sempre que o chamava de maltrapilho, Ethan se corrigia, ofendido: “Roupas de explorador”, dizia ele.
— Bem no fundo, você acredita que ela é inocente, não é? — Aaron quebrou o silêncio, sua voz vacilante enquanto enfrentava a maré de emoções. — Naquela hora, você a defendeu com tanta convicção…
Ethan respirou fundo, seus olhos cintilavam com a sinceridade de alguém que já havia refletido sobre aquilo. — Às vezes, as pessoas estão tão habituadas a uma situação, que não percebem o quanto estão sendo machucadas. Você disse que Leila é culpada, além disso, há provas que a incriminam. Insistir no erro é loucura.
— Isso quer dizer que você… — Aaron ergueu os olhos, surpreso, e hesitou ao falar. Ele continuou: — Você mentiu para Darius? Você falou que mentir é errado!
— Sim, eu falei, e eu sinto muito por isso, mas foi necessário. — Ethan respondeu, baixando o olhar. — Aaron, ele não veio por causa de Kaylus. Os adultos se comunicam através de cartas mágicas, e a resposta é imediata. Se Darius preza tanto pela etiqueta, saberia através das cartas que Kaylus não está aqui.
— Então, por que ele veio? — Aaron perguntou, confuso. Ethan estendeu a mão e acariciou o topo da cabeça de Aaron, bagunçando seus cabelos.
— Não é óbvio? Darius estava nos procurando. Ele quer nos afastar do Palácio Lótus, e para isso, resolveu nos mandar ao Palácio Hibisco, onde mamãe está. Agora, o que será que vai acontecer? Por que ele quer que observemos os guardas? — Ethan perguntou-se.
— Você acha que ele está tramando algo? — Aaron sussurrou. Ethan hesitou, como se escolhesse cuidadosamente suas palavras antes de responder.
Ethan hesitou, como se ponderasse cada palavra antes de respondê-las. — Bom, é o Darius. E com ele, nunca há nada de bom a se esperar. — Ele soltou um suspiro cansado, revelando mais do que suas palavras.
***
Aaron estava de pé, próximo à grande janela de vidro que permitia uma ampla visão do jardim interno do Palácio Lótus. Do lado de fora, o lago refletia o céu em um azul límpido, e as flores de lótus flutuavam suavemente nas águas tranquilas. Uma pequena ponte de pedra arqueava-se sobre o lago, enquanto o farfalhar suave das folhas das árvores ao vento criava uma harmonia silenciosa. O príncipe fechou os olhos por um breve instante, inspirando profundamente o ar fresco e perfumado do jardim.
O som da porta se abrindo quebrou sua concentração. Ele virou-se devagar, e seus olhos pousaram em Cliven, o médico de idade avançada. Ao lado dele, uma mulher alta de cabelos castanhos e olhos verdes trajava o mesmo jaleco azul-marinho, semelhante ao do elfo, com ombreiras douradas que refletiam a luz suave da sala.
— Altezas, é um prazer revê-los — Cliven cumprimentou ao se aproximar, inclinando-se levemente em um gesto de respeito. Sua voz era grave e ressoava com uma autoridade tranquila.
— Digo o mesmo, médico imperial. — Ethan respondeu com um sorriso. Ele havia se levantado do sofá para comprimentá-lo. — Você trouxe alguém para ajudá-lo dessa vez?
— Esta é Amélia Kross, uma discípula da Organização dos Justos, no Reino de Inoaden. Ela é uma alquimista bastante habilidosa e estará trabalhando ao meu lado de agora em diante — Cliven apresentou-a, com o mesmo tom de segurança e respeito.
— Um alquimista e um médico trabalhando juntos? Que interessante. De quem será que foi a iniciativa? — Ethan perguntou-se, abrindo um leve sorriso.
Havia um leve intriga entre ambas as partes, afinal, alquimistas eram especialistas em ervas mágicas e refinamento de pílulas com efeitos imediatos, claro que boa parte dessas novidades se limitava a cultivadores. O problema acontecia quando alguns alquimistas se autodenominavam médicos, o que gerava desconforto na comunidade médica tradicional.
Amélia deu um passo à frente, seus movimentos eram suaves, mas decididos. Ela parou diante dos príncipes e fez uma reverência formal, elegante, inclinando levemente a cabeça enquanto colocava uma mão sobre o coração.
— É uma honra estar na presença dos príncipes imperiais — disse ela, sua voz clara e controlada, refletindo perfeitamente o ambiente em que se encontravam. — Espero poder auxiliá-los nas questões que os afligem.
Cliven pigarreou e fez um gesto para que todos se acomodassem. Aaron, relutante, afastou-se da janela e se dirigiu a um sofá próximo, onde sentou-se com um suspiro discreto. Ethan o seguiu, posicionando-se ao seu lado, olhando para Cliven e Amélia com uma expressão de expectativa. Amélia aproximou-se devagar, seus passos eram quase silenciosos, enquanto retirava um pequeno frasco de vidro do bolso interno de seu jaleco. Ela girou a tampa, liberando uma fragrância leve de ervas enquanto leve brilho azulado emanava do líquido.
— Com sua permissão, Alteza — ela pediu, inclinando-se para frente e tocando o pulso de Aaron com delicadeza.
Aaron observou em silêncio enquanto ela posicionava o frasco acima de sua pele. Quando o líquido brilhou, ele sentiu uma leve pulsação percorrer seu braço, como se os vasos sanguíneos sob sua pele estivessem reagindo ao toque dela. Amélia então murmurou algumas palavras incompreensíveis, e o efeito foi imediato: os vasos sanguíneos do príncipe começaram a se tornar visíveis, delineando-se com uma luz pálida através de sua pele. Ele arregalou os olhos, fascinado.
— Impressionante... — Aaron murmurou, incapaz de esconder o tom de admiração em sua voz. Era como se uma rede de luz estivesse se espalhando por seu braço, revelando detalhes que normalmente eram invisíveis a olho nu.
— Um simples truque alquímico — Amélia comentou com modéstia, mas havia uma satisfação contida em seu sorriso — Isso nos permite visualizar melhor o fluxo de energia e de substâncias em seu corpo, Alteza.
Amélia continuou a examinar o fluxo sanguíneo com atenção. Seu cenho franziu levemente enquanto ela observava os vasos pulsando suavemente sob a luz azulada. Depois de alguns segundos, ela afastou-se um pouco, os olhos ainda fixos no pulso de Aaron. Ela então ergueu a mão livre e, com um movimento suave dos dedos, murmurou uma palavra inaudível. A luz azulada que iluminava os vasos lentamente começou a esvanecer, como uma névoa dispersa pelo vento. O brilho desapareceu por completo, devolvendo a aparência normal ao braço do príncipe.
— Não há sinais de veneno na sua corrente sanguínea — declarou ela, mas seu tom indicava incerteza. — Isso é... estranho. O veneno com o qual foi afetado era altamente potente. A única explicação plausível para uma autocura seria... — Amélia hesitou, lançando um olhar rápido para Cliven antes de continuar. — Existe a possibilidade de que você possua uma veia espiritual, ou que seu poder elemental seja muito mais poderoso do que imaginamos.
As palavras da alquimista fizeram o ar ao redor de Aaron parecer mais pesado. Ele imediatamente sentiu o coração acelerar no peito, e um frio desconfortável desceu por sua espinha. Não era possível que tivessem notado algo... ou era? Ele sabia o que isso significaria se viessem a descobrir seus poderes. O perigo, a desconfiança, o caos que se seguiria.
Amélia, ainda sem perceber o crescente pânico de Aaron, voltou-se para o médico imperial.
— Com a sua permissão, gostaria de realizar alguns testes adicionais. Se esse poder for de fato o que estou pensando, isso explicaria não apenas a autocura, mas também outras anomalias que poderiam ser de extrema importância para algum tratamento no futuro.
— Não. — Aaron interrompeu, sua voz foi baixa, mas carregada de determinação. Ele não queria dar espaço para discussões. — Já estou cansado de exames, de ser observado e tratado como alguém frágil. Quero a minha vida de volta, e ela não envolve exames, estudos ou dias de cama.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Amélia, surpresa pela interrupção, hesitou. Queria argumentar, mas a expressão séria de Aaron deixou claro que ele não cederia. Cliven, sentado no sofá oposto, observava a cena com um olhar sábio e silencioso.
— Alteza, eu... entendo que está cansado — ela começou, escolhendo suas palavras com cuidado. — No entanto, precisamos considerar as implicações de sua autocura. Não é algo que acontece naturalmente, especialmente quando estamos lidando com um veneno tão potente. Se você possui, de fato, uma veia espiritual ou afinidade com poderes elementais, isso pode nos ajudar a entender sua condição e até mesmo impedir que situações piores ocorram no futuro.
“Piores”? Ele já havia passado por isso, e o que todos fizeram? Apenas observaram seu destino lamentável se desenrolar diante de seus olhos, com medo de interferirem e sofrerem o mesmo. Por que seria diferente agora?
Cliven, que até então se mantivera calado, observando a troca de palavras entre Amélia e Aaron, deu um leve suspiro. Ele sabia que o garoto tinha direito a recusar, mas também entendia a preocupação da alquimista.
— Alteza — disse ele, sua voz baixa e calma. — Eu não posso obrigá-lo a nada. Mas devo lembrar que sua saúde é importante para nós. Se há algo que possa nos ajudar a entender melhor sua condição, seria sensato ao menos considerarmos. Queremos apenas garantir que nada mais o prejudique no futuro.
Aaron manteve o olhar firme, embora o peso das palavras de Cliven tenha feito algo vacilar dentro de si. No entanto, sua determinação em não deixar que seu segredo fosse descoberto era muito maior que qualquer argumento que lhe apresentassem.
— Aaron — começou Ethan, hesitante. — Você tem certeza dessa decisão? Eu sei que está com medo do que pode descobrir, mas está tudo bem. Nós temos a mamãe para nos proteger.
Aaron simplesmente olhou para ele. No fundo de seu olhar, Ethan percebeu o medo profundo do irmão, um medo que o consumia e o isolava em sua própria angústia. Já Aaron, viu algo nos olhos de Ethan que o fez se perguntar se ele estava sendo sincero. Havia uma preocupação genuína, mas também um traço de confusão, como se Ethan tentasse entender algo que ainda não conseguia articular.
Em sua vida passada, Darius foi o primeiro a notar seus poderes. Como príncipe mais velho, e o primeiro na linha de sucessão, ele sempre temeu que alguém pudesse se destacar e ocupar o lugar de príncipe herdeiro, afinal, o trono do Império do Sol deveria ser repassado para o príncipe que melhor dominasse o elemento solar.
Naquele tempo, Aaron ainda era jovem, mal completara 11 anos, mas o poder do Sol fluía com uma intensidade que nem ele compreendia.
Sob as ordens de Darius, que demonstrava uma falsa empolgação e falsas expectativas, os mestres passaram a exigir de Aaron mais do que qualquer outro, e ele mal teve tempo de aprender a controlar seus próprios poderes elementais. Quando foi enviado ao campo de batalha sob o pretexto de proteger o Império do avanço inimigo, Aaron tentava se consolar, dizendo a si mesmo que era por um bem maior e que precisava superar as expectativas de Darius que comandava o exército.
Após 4 anos, lutando incessantemente e desprovido de esperança, Aaron já havia percebido que o verdadeiro objetivo de Darius era matá-lo. Enviar um garoto de 14 anos para uma guerra, com a desculpa de afastar as forças inimigas, era a maneira perfeita de livrar-se de um possível competidor. O príncipe mais velho queria o caminho livre para herdar o trono do Sol.
Na guerra, Aaron viu e fez coisas que assombravam sua mente até os dias de hoje. O poder do Sol que ele carregava era voltado para a cura, mas naquele ambiente de destruição e morte, ele se viu forçado a usar suas habilidades contra sua própria natureza. Feriu, matou, e manchou as mãos com sangue — algo que um verdadeiro portador do Sol Piedoso com afinidade de cura jamais deveria fazer. E foi aí que tudo começou a desmoronar.
Ele era inexperiente, incapaz de controlar o fluxo de seu poder espiritual. Seu coração gritava para curar, mas suas ações o traíam, e isso começou a corroer sua alma. A energia vital que deveria ser usada para salvar, foi corrompida. E, com ela, sua mente. O peso do sangue derramado, o caos e a dor ao seu redor transformaram seu poder em algo sombrio, e ele próprio começou a dar os primeiros sinais de loucura.
Darius sabia que isso aconteceria, mas Aaron só entendeu suas intenções ao início da guerra dos Sete Anos, quando completou 18 anos e foi enviado ao Reino de Levensber.
Suas mãos, pousadas no colo, estavam cerradas em punhos. Ele respirou fundo, forçando-se a não pensar no passado. Não agora. Precisava manter o controle.
O silêncio na sala parecia ressoar como um eco distante de seus pensamentos mais sombrios. Amélia e Cliven pareciam hesitantes, mas Aaron sabia que, pelo menos por enquanto, estava seguro. Ele não permitiria que ninguém o examinasse novamente. E, acima de tudo, não deixaria que seu poder fosse descoberto.
***
Aaron estava deitado de bruços sobre um tapete antigo de veludo, enquanto apoiava o queixo com a mão em punho. Ele mantinha o olhar fixo em um livro que folheava. Seus pensamentos, no entanto, estavam longe das figuras impressas e das histórias encadernadas, haviam tantas memórias de infância perdidas, se ao menos se lembrasse de algumas poderia evitar passar por problemas no futuro.
Com um olhar furtivo, ele observou Ethan, seu gêmeo, concentrado em uma pilha de papéis espalhados pelo chão. Algumas folhas estavam em branco, enquanto outras exibiam desenhos imprecisos de árvores tortuosas e montanhas majestosas, além de criaturas monstruosas que pareciam coelhos com asas, um testemunho do que a imaginação infantil podia criar.
— Eu estava pensando… e se a gente saísse para brincar? — Aaron perguntou, deixando o livro de lado, sentando-se no tapete.
Ethan ergueu a cabeça, seu olhar refletia uma mistura de cautela e curiosidade.
— As brincadeiras que você inventa são sempre perigosas e costumam nos colocar em encrenca. Não sei se quero participar. — A resposta de Ethan era firme, mas seu coração pulava de ansiedade, uma lembrança das muitas travessuras que os colocaram em apuros no passado.
Aaron sorriu com um brilho travesso em seus olhos.
— Então quem perde é você. Tem certeza de que não vem? — Ele desafiou, como um caçador em busca de uma presa.
Após um momento de hesitação, Ethan finalmente cedeu, um suspiro resignado escapou por entre seus lábios.
— Bom, podemos tentar, se não for perigosa. — A cautela ainda vibrava em sua voz, mas havia um relutante desejo de seguir o irmão.
[...]
— Vamos ficar apenas… sentados? — Ethan estranhou, franzindo a testa ao ver Aaron se acomodar sob a sombra da grande acácia. As flores amarelas vibrantes balançavam suavemente ao ritmo da brisa, como se estivessem acenando para os dois irmãos.
— Sim, para capturar luzes, é preciso ficar sentado — Aaron respondeu com um tom sereno, cruzando as pernas em posição de lótus, os olhos já semicerrados, como se estivesse prestes a iniciar uma meditação.
Ethan observou o irmão por um momento, hesitante. Ele se sentou de pernas cruzadas, tentando imitar a postura de Aaron, mas sua expressão refletia um misto de desconfiança e curiosidade.
— E onde estão essas luzes? Elas são invisíveis ou algo assim? — Ele perguntou com uma sobrancelha arqueada, lançando olhares rápidos ao redor, esperando ver algum brilho mágico surgir do nada.
— Não são invisíveis. Você só precisa de paciência. — Aaron explicou, abrindo os olhos apenas o suficiente para lançar um olhar enigmático. — Você vai vê-las se parar de fazer perguntas óbvias e se concentrar.
— E como vou capturar algo que não consigo ver? Não faz sentido. — Ethan balançou a cabeça, mas fechou os olhos com um suspiro. Ele confiava em Aaron, apesar de saber que isso quase sempre significava entrar em apuros.
— Concentre-se no que está ao nosso redor. Tente sentir a energia… como se você estivesse se tornando parte dela — Aaron disse suavemente, tentando fazer com que Ethan relaxasse e entrasse no espírito da "brincadeira". Aquele jardim estava repleto de ilítia, e Aaron sabia que, se Ethan fosse apenas um pouco mais paciente, conseguiria meditar e adentrar o primeiro estágio do cultivo.
“De onde será que os lordes das seitas conseguem tanta paciência para dar explicações?”, Aaron se perguntou, sentindo-se tentado a simplesmente desistir de explicar.
Quando era criança, Aaron cresceu isolado no vasto e frio Palácio Gardênia, sem amigos com quem compartilhar seus dias. Os filhos das concubinas, embora numerosos, jamais se aproximavam. Primeiro, por causa da enorme distância entre os palácios, mas, principalmente, devido à vigilância implacável da imperatriz. Grace o mantinha afastado do Palácio Imperial, temendo as intrigas e conspirações que permeavam a Corte. Ela sabia que lá não era um lugar seguro para ele.
Com poucas opções para brincar, Aaron recorria à sua imaginação. Sempre foi uma criança curiosa, e isso não mudava quando observava os pais praticando o cultivo espiritual. Eles se sentavam em posição de lótus, concentrados, cercados por uma leve aura luminosa. Para uma criança, aquelas luzes brilhantes que pareciam ser sugadas para dentro dos corpos dos adultos eram mágicas e fascinantes. Aaron ficava hipnotizado pelo que via, e, em sua inocência, tentava imitá-los, como se fosse uma brincadeira.
A princípio, suas tentativas foram infrutíferas, como seria de se esperar de uma criança que ainda não entendia o cultivo. Mas Aaron era persistente. Ele continuava a fechar os olhos e imaginar as luzes ao seu redor, tentando controlá-las. Para ele, essas luzes eram como brinquedos, algo que poderia manipular e moldar de acordo com sua vontade. E, eventualmente, sua determinação deu frutos. As luzes começaram a aparecer, no início como pequenos brilhos ao seu redor, quase imperceptíveis. Com o tempo, porém, tornaram-se mais claras e definidas, como se respondessem ao seu desejo de compreendê-las.
Aaron passou a moldar essas luzes em formas que ele conhecia bem: seus bonecos. Eram companheiros imaginários que ele controlava com o poder de sua mente, preenchendo o vazio da infância isolada. Esses bonecos de luz, inicialmente fracos e instáveis, logo se tornaram mais robustos, mais complexos. O que começou como uma simples curiosidade infantil evoluiu, com o passar dos anos, para uma habilidade única e poderosa.
Quando chegou à idade adulta, Aaron havia dominado completamente essa forma de manipulação espiritual. Seus bonecos de luz agora eram guerreiros imponentes, capazes de invocar escudos e armaduras reluzentes. Durante a Guerra dos Sete Anos no Reino de Levensber, Aaron utilizou esses guerreiros de luz em batalha, ganhando renome e prestígio. Sua contribuição foi tão significativa que ele recebeu o título de "Espada e Escudo do Império", consolidando sua posição como um dos maiores guerreiros do Império do Sol.
Os longos corredores do palácio eram banhados por uma luz suave e filtrada pelas janelas altas. As sombras dançavam sobre o mármore, projetadas pelos vitrais que adornavam as paredes, criando um jogo de luz e escuridão. Aaron caminhava à frente, os passos silenciosos, perdido em seus pensamentos.
De repente, o som dos passos de Ethan cessou. O silêncio no corredor, antes tranquilo, tornou-se denso e quase opressivo. Aaron parou, sentindo a mudança no ar como um sinal de alerta, mas sua mente ainda estava distante, presa no momento em que meditava com o irmão no jardim do palácio.
Havia algo estranho com a energia espiritual que entrava em contato com a pele de Ethan. Era cedo para presumir algo, mas parecia haver algo estranho com ele.
— Aaron... — a voz de Ethan quebrou o silêncio, baixa, mas firme, ressoando pelo corredor vazio. O corpo de Aaron se enrijeceu. Ele sabia que o que viria a seguir não seria algo fácil de lidar.
Lentamente, virou-se para encarar o irmão, e ao fazê-lo, encontrou o olhar intenso de Ethan cravado nele. Os olhos, que sempre transmitiam serenidade, agora estavam sombrios, como o céu antes de uma tempestade.
— A tal brincadeira de "coletar luzes", você estava tentando me fazer cultivar, não estava? Está ciente do perigo que corremos mais cedo? — As palavras de Ethan saíram afiadas, carregadas de uma certeza que pegou Aaron completamente de surpresa.
Uma onda de choque percorreu o corpo de Aaron. Seus olhos se arregalaram levemente, seu corpo enrijeceu. Uma onda de surpresa e culpa o atingiu com força. Ele abriu a boca, tentando articular uma resposta, mas as palavras pareciam ter sumido.
— Eu... — Aaron balbuciou, seus olhos evitavam os do gêmeo enquanto ele buscava palavras, qualquer coisa que pudesse justificar suas ações. — Eu só... eu só queria fazer algo. Mamãe e papai nunca estão aqui para nos ensinar... e eu pensei que, se fôssemos fortes o suficiente, poderíamos…
— Poderíamos o quê? — Ethan insistiu, inclinando-se levemente para frente, o tom de sua voz carregava uma mistura de medo e frustração. — Aaron, nós não podemos fazer isso sozinhos. É perigoso! Podemos nos machucar de verdade!
Aaron sentiu a pressão da culpa aumentar. Ele abaixou a cabeça, mordendo o lábio inferior com força. Queria responder, oferecer uma justificativa que acalmasse Ethan, mas a verdade era amarga e sufocante. Ethan estava certo. O que um imperador destronado teria a ensinar? Com que confiança se considerava digno de ensinar algo sendo que viveu parte de sua vida com um poder impuro?
O silêncio se estendeu, e Ethan deu um passo à frente, seus olhos cravados nos de Aaron, buscando algo que talvez nem ele mesmo soubesse.
— Nós precisamos de ajuda. — A voz de Ethan tornou-se um sussurro, suave, como se estivesse enfrentando a própria incerteza. — Não podemos fazer isso sozinhos. — A seriedade em seu olhar suavizou, mas o peso do medo ainda os unia, como um fio invisível e frágil.
Um nó apertou a garganta de Aaron, e a respiração se tornou entrecortada. Estava prestes a falar, quando uma ideia iluminou sua mente como um raio. Ele ergueu o olhar, encarando Ethan com uma nova determinação.
— Kaylus. — Pronunciou o nome do irmão mais velho, sentindo a esperança brotar em seu peito. — Kaylus sabe mais sobre o cultivo do que qualquer um. Ele pode nos ajudar, nos orientar. Se estivermos fazendo algo errado, ele nos corrigirá.
— Você quer falar com Kaylus? — A surpresa tingiu a voz de Ethan, um leve brilho de alívio piscou em seus olhos.
— Sim. — Aaron confirmou, fixando o olhar nos olhos de Ethan, buscando um sinal de aprovação. — Vamos esclarecer nossas dúvidas. Quero saber onde estou errando quando tento coletar luzes e como posso melhorar.
Ethan hesitou por um momento, os lábios cerrados enquanto processava a ideia. Finalmente, assentiu lentamente, os olhos ainda cautelosos.
— Está bem, vamos falar com Kaylus. Mas... até lá, você promete que não vai tentar capturar luzes sozinho? — O tom de Ethan era firme, mas não severo, um pedido que ressoava com preocupação.
Aaron respirou fundo, sentindo o peso da promessa que estava prestes a fazer. Precisava da confiança de Ethan, por isso, faria o que estivesse ao seu alcance para mantê-la.
— Eu prometo. — Ele respondeu, a voz baixa, mas carregada de sinceridade.
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