Capítulo 25 - A Verdade Sob o Sol de Úrsula
“No deserto de Úrsula, não são exércitos que matam homens. São as minhocas de areia. Você precisa saber caminhar. O mínimo barulho rítmico no solo… e então—" Ela estalou os lábios, imitando o som de algo sendo puxado para as profundezas.”
A neve rangia sob os cascos dos cavalos, um som abafado e monótono, que se misturava ao sussurro dos pinheiros dobrados pelo peso do inverno. Os galhos, carregados de neve, curvavam-se como anciãos murmurando segredos esquecidos ao vento gélido. O anoitecer se arrastava pelo céu em tons de chumbo e violeta, e a névoa rastejava entre as árvores como dedos pálidos, engolindo a estrada num abraço fantasmagórico.
Aaron cavalgava em silêncio.
Seu cavalo, um garanhão negro de porte imponente, avançava sem hesitação pelo terreno traiçoeiro. Ao seu lado, Ethan montava um alazão castanho, inquieto, os olhos sempre em movimento, varrendo a floresta como se esperasse encontrar algo oculto sob o véu da neve e da escuridão. Sempre curioso. Sempre alerta.
O frio pintava as bochechas de Ethan de vermelho, dando-lhe um ar quase pueril, como se fosse um menino brincando de soldado. Ele vestia lã grossa e um manto de pele, o brasão dourado da Casa Albélia cintilando em seu peito, embora o brilho fosse pálido sob a luz moribunda do entardecer. O frio não o incomodava tanto quanto deveria, mas Aaron notou quando ele puxou a capa com mais força, quando encolheu os ombros contra a mordida do vento.
Ethan desviou o olhar da floresta, voltando-se para ele. Seus olhos escuros brilharam, e um sorriso pequeno lhe curvou os lábios—um sorriso sincero, sem segundas intenções, cheio de algo que Aaron não soube nomear.
Ele desviou o olhar.
Partiram antes do amanhecer, dois dias atrás, quando o sol era apenas uma linha pálida no horizonte. O ar da manhã era cortante, carregado do cheiro agridoce da neve derretida e do calor abafado dos cavalos reunidos. Aaron desejou, mais de uma vez, que tivessem viajado através de um círculo mágico. Mas Kaylus ainda não havia retornado de Úrsula, nos Reinos Inferiores, e sem ele, a travessia encantada era impossível. Restava-lhes o caminho longo, desgastante, arrastando-se através da floresta com uma comitiva de cavaleiros e carruagens.
A marcha era lenta.
As carruagens do Palácio Lótus e do Palácio Gardênia seguiam logo atrás, suas rodas rangendo contra a neve endurecida. Cavaleiros cavalgavam em formação cerrada, atentos, como homens que já esperavam por problemas. Suas armaduras brilhavam nas últimas luzes do dia, e seus mantos balançavam como sombras ao vento.
Então, algo mudou.
O som dos cascos tornou-se irregular.
No início da formação, uma mão ergueu-se no ar.
— Alto! — A ordem cortou o silêncio como o aço saindo da bainha.
Aaron viu o líder dos cavaleiros do Palácio Lótus puxar as rédeas, freando bruscamente. O movimento reverberou pela comitiva como uma onda, os cavalos parando quase em sincronia. O ranger das selas, o farfalhar das capas, o estalo metálico das armaduras reajustando-se—tudo soou alto demais contra o silêncio abrupto.
Por um momento, apenas o vento se movia.
Aaron não perguntou o motivo da parada. Ele já sabia.
Os soldados desmontaram, os movimentos meticulosos de homens que há muito tempo haviam aprendido a esperar o pior. O acampamento começou a tomar forma como uma colmeia em atividade.
Os homens se espalharam pelo terreno nevado, batendo os pés para afastar o frio antes de começarem a montar as defesas. Em seguida, os soldados começaram a instalar dispositivos mágicos no chão, pequenos círculos metálicos que, ao toque da energia espiritual, se acenderam com uma luz âmbar intensa, como brasas sendo despertadas.
O fogo crepitou no centro do acampamento. Um calor tênue se espalhou, criando uma ilusão momentânea de segurança.
Aaron segurava as rédeas firmemente, preparando-se para desmontar, quando algo na postura de Ethan o fez parar.
Seu irmão, sempre inquieto, sempre curioso, estava imóvel. Os olhos arregalados, fixos na escuridão entre os pinheiros. Seus dedos se enterravam no couro das rédeas, as juntas pálidas de tensão. A respiração curta, entrecortada, transformava-se em pequenas nuvens de vapor diante de sua boca.
Aaron seguiu o olhar dele.
A névoa rastejava como dedos pálidos entre as raízes, espessa e traiçoeira, obscurecendo a linha entre o real e o imaginado. Mas havia algo ali. Algo que se movia entre as sombras.
Branco. Perolado.
Deslizava entre os troncos como se fizesse parte da floresta, serpenteando com graça predatória. As garras arranhavam a casca áspera dos pinheiros, impulsionando seu corpo esguio. O brilho perolado das escamas reluzia à luz do crepúsculo, um contraste gritante com a escuridão que a envolvia.
Então, os olhos surgiram.
Vermelhos. Cortantes.
Aaron sentiu o peso da tensão se dissipar de seus ombros. Ele conhecia aquele olhar. O olhar de um predador que não se escondia. De uma fera que não temia.
Ele sorriu.
— Agnes.
Ao seu lado, Ethan piscou, como se tentasse se certificar de que aquilo era real.
O som de cascos se aproximando rompeu o momento. Claude surgiu montado, o cavalo troteando devagar pela neve, o hálito quente do animal formando espirais no ar gelado. Claude carregava o peso de um veterano que já havia visto homens se tornarem reis e reis se tornarem cadáveres. Seu olhar era o de alguém que esperava tudo e se surpreendia com nada.
— Altezas. — Sua voz era grave, carregada de cautela. — Algo errado?
Aaron desviou os olhos da floresta e relaxou os ombros. O sorriso ainda estava ali quando respondeu:
— Nada, mestre.
Claude não se convenceu. Seus olhos deslizaram para a linha de árvores mais uma vez, atentos, como se esperasse que algo emergisse dali, algo que apenas os garotos tivessem visto. Mas não disse nada. Ele apenas expirou lentamente, como quem já estava acostumado com meias-verdades. Então, deslizou da sela com um movimento prático, as botas afundando na neve endurecida ao tocar o solo.
Aaron também desmontou, ele passou a mão enluvada pelo pescoço quente de seu garanhão, sentindo o vapor que subia da pele do animal encontrar o frio cortante da noite. O cavalo bufou, seus músculos tensionando sob o toque antes de ser levado.
O príncipe se virou, puxando o manto para mais perto do corpo. Ethan já estava envolvido em uma conversa com o Lombardi, sua voz carregada do cansaço que os dias na estrada impunham.
— Estou cansado de cavalgar — murmurou. Sua expressão se contorceu numa careta. — Meu corpo inteiro dói e minha cabeça está girando. Ainda falta muito para chegarmos?
Claude sequer hesitou.
— Estamos a cinco dias do Palácio Imperial, Alteza — disse o mestre espiritual, sempre pragmático, a paciência evidente no tom. — Terá que ter paciência.
Ethan grunhiu em descontentamento, mas não discutiu. Aprendera que lamentações raramente mudavam a realidade.
Claude os guiou até uma das carruagens do séquito, onde os irmãos se sentaram nos degraus, observando o movimento no acampamento. Criados e soldados trabalhavam em harmonia silenciosa, retirando baús das carruagens do Palácio Lótus. Dentro deles, os artefatos mágicos brilhavam sob a luz do fogo, reflexos esverdeados e dourados dançando nas faces dos homens que os manipulavam.
Aaron inspirou profundamente, sentindo o frio infiltrar-se até os ossos, mesmo sob as camadas de lã e veludo. O cheiro de madeira queimada se misturava ao perfume da neve recém-caída—uma combinação que sempre lhe parecera paradoxalmente reconfortante.
Não demorou até que uma criada se aproximasse.
Ela carregava uma bandeja de prata e, sobre ela, duas xícaras fumegantes e uma pequena travessa de bolinhos dourados, ainda quentes. O aroma doce da canela e do mel se espalhou pelo ar, um contraste aconchegante diante da imensidão da floresta escura.
— Algo para afastar o frio, Altezas.
Aaron pegou a xícara. Mesmo através das luvas, sentiu o calor percorrer seus dedos enrijecidos. Ao lado, Ethan agarrou um bolinho sem hesitar, mordendo-o com um prazer infantil, sem qualquer preocupação com a compostura.
— Obrigado — murmurou Aaron, sua voz rouca pela ventania.
A criada fez uma reverência discreta antes de se afastar, desaparecendo entre as carruagens.
O silêncio se instalou entre os irmãos, interrompido apenas pelo crepitar das fogueiras e pelo som ritmado dos soldados patrulhando o perímetro. Mas Aaron não estava em repouso. Seus olhos vagavam pelo acampamento, atentos, observando cada movimento dos guardas.
Havia algo fascinante na precisão deles. Um após o outro, carregavam artefatos mágicos envoltos em cobre e cristal, posicionando-os em pontos estratégicos pela floresta, fixando-os no solo como sentinelas silenciosas. Os gestos eram calculados, disciplinados.
E então, aconteceu.
Em questão de segundos, uma luz azul pulsou dos artefatos. Fios de energia se estenderam pelo ar, entrelaçando-se como teias de estrelas, até que, com um estalo sutil, uma barreira translúcida os envolveu.
A floresta se iluminou com um brilho suave e espectral. A barreira mágica tremulava como a superfície de um lago cristalino, oscilando.
Ethan segurou a xícara com ambas as mãos, maravilhado.
— Eles fazem isso parecer tão fácil…
Ao longe, alguns criados surgiram, carregando novos artefatos mágicos. Mas estes eram diferentes.
Grandes cilindros dourados, marcados com o brasão imperial do Sol, foram cuidadosamente alinhados sobre a neve. Pesados como pecados antigos, exigiram o esforço de vários homens, que os posicionaram com mãos cuidadosas. Mas assim que os selos foram girados, um brilho pulsante tomou as peças, e o peso desapareceu como se nunca tivesse existido.
— Fascinante — murmurou Ethan, inclinando-se à beira dos degraus da carruagem, os olhos brilhando com a luz espectral que emanava dos artefatos. — Até pouco tempo, eu não fazia ideia de que o Império possuía algo assim. Chegamos longe, não é?
Aaron tomou um gole de sua bebida antes de responder. O líquido queimou sua garganta, quente e adocicado, o gosto familiar e reconfortante.
— Chegamos? — Aaron ergueu os olhos, a voz baixa, mas carregada de algo que poderia ser ironia ou apenas cansaço. O brilho da barreira mágica dançava no rosto de Ethan, refletindo-se em seus olhos como fogo sobre gelo.
Ethan sorriu, o mesmo sorriso de sempre, destemido e despreocupado.
— Ora, claro que sim. Não somos mais garotos explorando uma floresta, somos príncipes, e estamos seguindo rumo ao Palácio Imperial!. — Ele fez um gesto largo com as mãos, como se aquilo fosse evidente.
Aaron virou o copo entre os dedos, observando a luz dançar na superfície escura da bebida.
— Hm, também não somos garotos abandonados à própria sorte em um palácio decrépito e depressivo — Aaron disse, com um sorrisinho.
— Você tem razão. Mas esqueceu de algo: decrépito, depressivo e minúsculo. — Ethan sorriu. Aaron desviou o olhar, lembrando-se de quando havia renascido, há poucos meses. Odiava cada minuto que passava no Palácio Gardênia, mas aos poucos, e de maneira imperceptível, passou a vê-lo como um lar.
Os cilindros se abriram com um sussurro metálico, e a magia se expandiu como uma onda. A luz dourada e azul irrompeu em um arco perfeito, e as tendas ergueram-se como se possuíssem vida própria. O vento frio soprou contra as lonas pesadas, fazendo-as ondular como velas de um navio fantasma. Em segundos, o que antes era um descampado coberto de neve tornou-se um pequeno império de estandartes e silhuetas grandiosas.
As barracas eram vastas, mais parecendo fortalezas móveis do que simples abrigos. Azul profundo e dourado imperial, as cores se destacavam como brasas no inverno. No topo, o estandarte do Império do Sol tremulava contra o céu negro, refletindo o brilho das brasas encantadas. Aaron inclinou a cabeça, absorvendo os detalhes, a precisão, a grandiosidade.
O Império do Sol estava apodrecendo por dentro, consumido por traições e promessas quebradas, mas ainda assim, sua grandeza permanecia. Como uma fera velha e ferida, reluzia em meio à decadência, grandioso e cruel, resistindo ao tempo não pela força, mas pelo peso de seu próprio nome.
O farfalhar da seda contra a neve interrompeu seus pensamentos. Uma criada aproximou-se, as dobras de seu vestido azul movendo-se como ondas sobre a brancura intocada. Os cabelos castanhos estavam presos em um coque impecável, cada fio no lugar certo, o porte ereto, a expressão disciplinada. Tudo nela exalava a rigidez dos servos moldados pelo protocolo.
Ela fez uma reverência breve antes de anunciar:
— Altezas, sua barraca está pronta.
Ethan espreguiçou-se e ergueu-se em um salto ágil, como se sacudisse de si o cansaço da viagem. Aaron, por sua vez, demorou-se um instante antes de se levantar, tomando seu tempo, sentindo o peso do vento contra a pele.
A criada os guiou pela trilha de neve suavemente pisoteada pelo movimento dos soldados e servos. A barreira mágica continuava a brilhar em volta do acampamento, um escudo azul e translúcido que se expandia entre as árvores, envolvendo tudo em sua proteção silenciosa.
A floresta além dela parecia mais escura do que antes.
Conforme avançavam, Aaron notou que havia mais barracas espalhadas pela clareira. Algumas maiores, outras menores, mas todas erguidas sob o mesmo princípio: magia refinada, tecnologia avançada e o símbolo dourado do Império do Sol tremulando em bandeiras sobre elas.
Aaron reprimiu um bocejo, piscando contra a sonolência que ameaçava vencê-lo. O cansaço se acumulava sobre seus ombros como um manto pesado, mas ele não podia se permitir relaxar. Fez um esforço para manter a postura, para parecer alerta, mesmo quando seu corpo exigia descanso.
Ethan percebeu.
Seu irmão não disse nada, apenas apertou seus dedos entre os seus em um gesto familiar de segurança.
A criada, que caminhava à frente, lançou um olhar discreto por cima do ombro e sorriu.
— Vocês devem estar cansados.
Ethan encontrou seu olhar, hesitando por um instante antes de responder:
— Não estou acostumado a andar por tanto tempo. — Ele suspirou, passando a mão no braço, como se massageasse uma dor incômoda. — Normalmente, só saio com Kaylus e mamãe, e nós usamos os círculos mágicos.
A mulher riu suavemente, um som curto, mas carregado de uma familiaridade quase maternal.
— Preciso admitir, Alteza, que ficamos surpresos quando o Palácio Gardênia recebeu a convocação de vocês para o evento de caça.
Aaron manteve a atenção nela, mas permaneceu calado.
— A imperatriz jamais teria permitido algo assim. — Ela continuou, ponderando. — Mas… talvez tenha aceitado porque está no Palácio Imperial, ao lado do imperador.
Ethan sorriu, um sorriso pequeno, discreto.
— Já faz um tempo que não o vemos. — Sua voz saiu mais baixa. — Eu sinto saudades.
Aaron virou o rosto para o irmão, estudando sua expressão. A saudade estava ali, estampada nos traços suaves, no brilho nostálgico dos olhos.
A saudade era uma emoção perigosa.
Era o que fazia alguém fechar os olhos para a realidade, o que fazia um homem desejar o passado mesmo quando o passado era uma jaula.
Pouco depois, guardas passaram por eles. Suas armaduras refletiam o brilho da barreira mágica, o metal polido brilhando em tons azulados enquanto caminhavam com a precisão de um mecanismo bem ajustado. As capas pesadas arrastavam-se sobre a neve, deixando rastros escuros por onde passavam.
Eles os cumprimentaram com reverências discretas antes de continuar.
Aaron observou-os desaparecerem entre as tendas, carregando grandes lanternas cilíndricas de vidro encantado. Mas não eram lampiões comuns.
Dentro de cada vidro, enguias minúsculas e brilhantes nadavam, seus corpos serpenteando no ar como se estivessem submersos em um oceano invisível.
Aaron se perguntou, por um breve instante, se aquelas criaturas sabiam que estavam presas. Se percebiam que sua luz era usada para servir, que sua liberdade era uma ilusão.
Ou se, como tantos outros, haviam aprendido a aceitar a gaiola.
Ethan observava, fascinado, os pequenos brilhos azulados refletindo em suas íris.
— Isso é incrível.
A criada sorriu de leve, o orgulho sutil transparecendo em seu tom.
— Cilindros Estelares. Uma das criações mais sofisticadas da Torre dos Alquimistas.
Aaron apenas observou. A luz azul pulsava em reflexos suaves sobre suas pupilas escuras, oscilando como estrelas distantes.
Tudo aquilo—cada detalhe, cada símbolo entalhado em ouro, cada invenção que desafiava a natureza—era um lembrete do que significava fazer parte do Império do Sol. Do que era estar sob seu domínio.
Finalmente, eles chegaram à barraca.
A lona azul e dourada ergueu-se diante deles como uma pequena fortaleza, seus tecidos pesados reforçados com fios encantados que impediam o frio de penetrar. O brasão dos Albélia cintilava na entrada, a luz mágica destacando o dourado entre as sombras da noite.
A criada afastou a aba da tenda e fez um gesto para que entrassem.
Aaron não hesitou. Assim que atravessou o tecido espesso, sentiu o calor envolvê-lo como um abraço invisível. O frio cortante da floresta ficou para trás, dissolvendo-se no ar morno e acolhedor do interior.
Os feixes de luz mágica flutuavam pelo teto como pequenas constelações artificiais, movendo-se em lentas espirais douradas. A claridade suave desenhava sombras delicadas nos móveis ornamentados, enquanto um tapete felpudo cobria o chão, abafando o som de seus passos.
No centro da tenda, uma cama de dossel esperava por ele, coberta por tecidos finos e almofadas macias que pareciam prometer um descanso sem sonhos.
Aaron caminhou diretamente até ela e se deixou cair, exausto. O colchão afundou sob seu peso, e ele abriu os braços, soltando um suspiro longo.
A névoa lá fora continuava a se espalhar pela floresta, fria e espessa como um véu de segredos. Mas ali dentro… ali dentro, pelo menos por algumas horas, ele poderia descansar.
Seus olhos se fecharam por um instante, pesados pelo cansaço. A luz dentro da barraca parecia ter diminuído de intensidade, como se sentisse sua exaustão e se moldasse a ela. As pequenas faíscas douradas no teto pulsavam suavemente, quase apagando-se.
Foi então que uma voz o chamou de volta.
A criada
Diante dele, um rosto feminino se tornou mais nítido conforme despertava.
Por um momento, ele tentou lembrar o nome dela.
Ann? Andi?
Não. Ângela.
Ela o observava com paciência, aquela paciência silenciosa de quem já sabia que seria ignorada nos primeiros segundos.
— Não pode dormir agora, Alteza. — A voz dela era suave, mas firme. — Precisa de um banho quente para regular sua temperatura.
Aaron respondeu com um bocejo.
Seu corpo pesava como chumbo, cada músculo exausto do longo trajeto. Mas ele sabia que o frio ainda estava entranhado em seus ossos, agarrado a sua pele como uma sombra persistente. Dormir assim só traria um mal-estar pior depois.
Ele assentiu, sem abrir os olhos.
O toque do frio.
Ângela começou a despi-lo com mãos experientes, cada movimento preciso e cuidadoso. Os botões das camadas de roupas foram desabotoando um a um, libertando-o das vestes pesadas que haviam absorvido o frio da floresta.
O casaco primeiro. Depois as luvas, rígidas pelo gelo. A veste reforçada. A túnica interna…
Cada peça removida trazia uma nova mordida do ar frio contra sua pele. Como lâminas invisíveis, o vento encontrou os espaços deixados pelo tecido, provocando arrepios em sua pele.
Agora, vestia apenas uma camisa fina e calças de tecido leve, ambas brancas, tão delicadas que pareciam feitas para o verão.
Aaron estremeceu.
O frio agarrou-se a ele, recusando-se a soltá-lo, como garras fantasmagóricas que se recusavam a ceder.
Ele não gostava dessa sensação. A vulnerabilidade. O fato de que o simples toque do vento podia arrancar seu controle, despojá-lo de camadas até deixá-lo exposto.
Sem dizer nada, caminhou até o ofurô redondo, o vapor subindo da água quente em espirais etéreas. O cheiro da madeira misturava-se ao aroma sutil das ervas infundidas na água—lavanda, sândalo, folhas de hortelã. Um perfume leve, relaxante, mas que trazia consigo algo primitivo, algo que falava diretamente aos instintos: segurança.
Ethan já estava lá dentro.
Seu irmão afundava os ombros na água quente, as bochechas rosadas pelo calor. Seus cabelos úmidos grudavam à testa, e ele suspirava, os olhos meio fechados, como se estivesse se dissolvendo na própria água.
Aaron hesitou por um momento antes de finalmente entrar.
A primeira sensação foi a de um choque. O calor contra sua pele gelada era quase uma agressão, como fogo líquido envolvendo cada nervo do seu corpo. Um arrepio percorreu sua espinha, e ele prendeu a respiração por um instante.
Então, lentamente, começou a relaxar.
O calor infiltrou-se em seus músculos cansados, dissolvendo a rigidez, afrouxando o peso da viagem. O frio, que antes se agarrava a ele com tanta força, finalmente começou a se desprender.
Pela primeira vez naquela noite, ele sentiu que poderia realmente descansar.
***
Ethan se afundou um pouco mais na água quente, sentindo o calor relaxar seus músculos cansados. Ele já não sentia o frio da viagem, mas sua mente continuava alerta, capturando cada detalhe da conversa que se desenrolava ali.
Aaron, ao seu lado, já estava completamente entregue ao sono. Seu peito subia e descia de maneira ritmada, o rosto relaxado pela primeira vez em dias. O vapor subia suavemente ao redor deles, envolvendo a banheira em uma névoa delicada. O cheiro das ervas misturado à espuma nos cabelos de Aaron tornava o ambiente estranhamente leve, como se estivessem distantes de toda a tensão que os acompanhava.
Ângela, ajoelhada ao lado de Aaron, massageava seu couro cabeludo com a paciência de alguém acostumada à rotina do serviço.
— Meu pai comprou seu título de nobreza. — Ela disse.
Ethan ergueu os olhos para ela, interessado.
— Comprou?
Ela sorriu, os dedos continuando seus movimentos cuidadosos entre os fios negros de Aaron.
— Sim. Não somos nobres de linhagem, mas dinheiro pode fazer maravilhas nos Reinos Inferiores. Há famílias que levam séculos para ascender, conquistando prestígio com alianças, casamentos, feitos de guerra… Mas para aqueles que sabem onde colocar suas moedas, o tempo se torna irrelevante.
Ethan inclinou a cabeça, intrigado.
— Você cresceu lá?
— Sim. Antes de sermos aceitos nos Reinos Superiores, morávamos em Úrsula. Meu pai começou como mercador de especiarias raras. Não era um homem nobre, nem mesmo um homem de letras, mas entendia algo melhor do que qualquer acadêmico: valor. Ele sabia que as coisas não valem pelo que são, e sim pelo que as pessoas acreditam que valem.
O nome acendeu uma chama de curiosidade em Ethan.
Ele sabia pouco sobre os Reinos Inferiores, apenas fragmentos de histórias que ouvira em jantares formais ou em conversas entre os nobres e Conselheiros que passeavam pelo Palácio Imperial. Eles sempre falavam daquele lugar como algo distante, selvagem e repleto de perigos.
— E… como é lá?
Ângela sorriu, como se já esperasse essa pergunta.
Ela continuou a massagear os cabelos de Aaron, agora cobertos por uma espuma densa e perfumada, escorrendo em fios brancos por sua pele.
— Diferente de tudo o que já viu.
Ethan se inclinou para frente, atento.
— Se os Reinos Superiores têm neve e picos de gelo, os Reinos Inferiores têm desertos e seca. Úrsula é um verdadeiro exemplo de resistência. A terra é árida, o calor é impiedoso e a água é escassa. Mas mesmo sem rios abundantes ou chuvas frequentes, o reino nunca se curvou à natureza.
Ela fez uma pausa, os olhos vagando pelo vapor quente da banheira, como se revivesse as memórias de sua terra natal.
— Os engenheiros e alquimistas de Úrsula criaram sistemas para capturar a umidade do ar e extrair água da terra seca. Eles construíram canais subterrâneos, enormes reservatórios escondidos sob as dunas e torres de condensação que puxam água do vento. É um reino de sobreviventes. Não temos os luxos das torres que espetam o céu ou das cidades encantadas, mas aprendemos a domar a terra da nossa própria maneira.
Ethan piscou, impressionado.
— Nunca ouvi falar disso.
Ângela riu suavemente.
— Poucos ouviram. Os solares que vivem aqui gostam de se orgulhar de seus mármores e grandiosidade, mas há uma beleza diferente em sobreviver ao impossível.
Havia um brilho em seus olhos, e Ethan percebeu que aquela não era apenas uma história para ela. Era sua identidade, sua origem.
— Mas então, se é um lugar tão engenhoso, por que sua família saiu de lá?
A pergunta fez Ângela parar por um breve momento.
— Poder — disse ela, simplesmente.
Ethan franziu o cenho.
— Poder?
Ela suspirou, inclinando a cabeça, os olhos ganhando uma sombra de nostalgia.
— Você pode construir uma cidade inteira a partir do deserto, criar maravilhas com suas próprias mãos… Mas sem um título, sem um nome que carregue peso, tudo isso não vale nada. Meu pai entendeu isso cedo. Ele tinha ouro suficiente para abrir qualquer porta, mas nos Reinos Inferiores, portas não se abrem apenas com ouro. Você precisa de legitimidade. Você precisa de história.
— Então ele… comprou um nome?
Ela sorriu.
— Comprou um nome. Comprou um brasão. Comprou uma árvore genealógica escrita às pressas por escribas que vendem mentiras por moedas. Agora somos de Marguentano. Mas nunca deixamos de ser do Reino de Úrsula.
Ethan observou Ângela remover cuidadosamente a espuma do cabelo de Aaron com uma concha de madeira, a água quente escorrendo pelos fios escuros dele antes de se perder na superfície do ofurô. O vapor subia ao redor deles, criando uma névoa suave e confortável, que fazia Ethan sentir o calor do banho até nos ossos.
A próxima pergunta escapou de sua boca antes que pudesse segurá-la:
— Úrsula também está em guerra, não está? — Ele inclinou a cabeça, a curiosidade nítida em sua voz. — Está próxima da Muralha Fronteiriça, assim como os Reinos de Levensber, Beulirico e Phillomel.
A pergunta fez Ângela rir.
— Guerra? — Ela negou com a cabeça, espremendo um pouco da água quente de uma toalha. — Não.
Ethan franziu o cenho, confuso. Por que Ângela falava como se Úrsula estivesse em paz?
As cartas que ele havia lido diziam outra coisa. Movimentações incomuns nas terras dos Kaylon. Rebeldes da Facção Anti-Imperador. Mapas ligando Úrsula ao País do Fogo.
Se os relatos de Kaylus eram verdadeiros, então havia muito mais acontecendo além do que era dito abertamente. Movimentos como esse não surgiam do nada. Se os rebeldes estavam ali, era porque tinham um propósito, um plano. Timos Kaylon fez parte do Conselho, era alguém influente, e pelo que leu, Ethan sabia que ele era dono de terras em Úrsula.
— Mas como? — Ele se endireitou levemente na água, os olhos brilhando de curiosidade.
Ângela terminou de enxaguar os últimos resquícios de espuma do cabelo de Aaron. Então, ela se virou para Ethan, baixando um pouco o tom de voz, como se prestes a contar um segredo.
— Porque no deserto de Úrsula não são exércitos que matam homens.
A luz oscilante das lanternas de energia espiritual refletiu nos olhos âmbar dela enquanto um sorriso misterioso surgia em seus lábios.
— São as minhocas de areia.
Ethan arregalou os olhos.
— Minhocas?
Ângela ergueu as mãos, os dedos se curvando como garras prestes a capturar uma presa.
— Você precisa saber caminhar no deserto. O mínimo barulho rítmico no solo…
Ela fez uma pausa dramática, deixando o silêncio pairar por um instante. Então, de repente, soltou um estalo seco com os lábios, um som curto e repentino, como algo sendo puxado violentamente para baixo.
Ethan estremeceu.
— E então… — Ângela sussurrou, mantendo os dedos em forma de garras.
Ethan devorou cada palavra. A ideia de uma criatura espreitando sob a terra, esperando pelo menor descuido para atacar, fazia sua imaginação disparar.
— Elas comem tudo?
Ângela sustentou seu olhar por um instante antes de responder.
— Tudo.
Ethan engoliu em seco.
Se Úrsula era tão difícil de atravessar por conta das minhocas de areia, como ela dizia, então por que alguém escolheria aquela região para se estabelecer?
Os mapas eram ainda mais preocupantes. O que conectava Úrsula ao País do Fogo? Se havia uma rota entre os dois, significava que algo estava sendo transportado. Armas? Pessoas? Ouro? Informação?
A ausência de conflito aparente poderia ser exatamente o que fazia de Úrsula um território tão útil. Ninguém prestava atenção em um deserto cheio de criaturas mortais. Ninguém investigava um lugar onde já era esperado que pessoas sumissem.
Talvez fosse por isso que não havia guerra ali.
Talvez a guerra já estivesse acontecendo.
E só alguns poucos sabiam disso.
— Se é assim… como os solares vivem em Úrsula, então? — Ethan perguntou, tentando manter a conversa, apesar de estar enjoado pelas perguntas que se acumularam em sua mente.
Ângela deu de ombros, voltando a sua postura descontraída.
— Porque é o único lar que conhecem, Alteza. E porque não podem simplesmente ir para Levensber.
Ethan franziu a testa.
— Não podem?
Ângela enxugou as mãos e se sentou mais confortavelmente à beira do ofurô, a expressão mais séria agora.
— Apesar das terras deste reino vassalo serem férteis e boas para o plantio, aquela parte da Muralha Fronteiriça é frágil. Aquele trecho já foi reconstruído várias vezes. Ela tem falhas estruturais que facilitam invasões. Não é difícil ouvir notícias de ataques inimigos ou de rebeldes naquela região. Levensber pode ser rica em recursos, mas também é um alvo constante.
Os olhos de Ethan acompanharam os movimentos dela, absorvendo cada informação com atenção.
— E Beulirico? — Ele perguntou após um tempo.
— Beulirico tem dragões selvagens.
Ethan piscou, surpreso.
— Dragões selvagens?
A criada fez um gesto largo com as mãos, como se tentasse descrever algo colossal.
— Criaturas imensas, que rasgam os céus e queimam cidades inteiras. Eles são ferozes e imprevisíveis. Nem todos são inteligentes como estes que vivem nos Reinos Superiores. Alguns são apenas feras destrutivas, movidas pelo instinto.
Ela olhou para Ethan por um momento, como se tentasse medir sua reação antes de continuar.
— As guildas e as seitas espirituais tentam contê-los, mas eles são poderosos demais. Os maiores caçadores de feras mágicas vivem em Beulirico, mas nem todos voltam para casa.
A água quente escorria pelo corpo de Ethan enquanto ele se erguia do ofurô, criando pequenos rios que deslizavam por sua pele antes de gotejar no piso. O vapor do banho ainda pairava no ar, envolvendo o espaço em uma névoa úmida e morna.
Suas roupas íntimas, uma camisa fina e um short de linho branco, grudavam-se ao seu corpo, pesadas pela água, o tecido transparente revelando a pele pálida por baixo¹. Cada passo que dava, formava pequenos rastros no chão enquanto ele se afastava do ofurô.
Ângela, sempre atenta, já estendia uma toalha felpuda para ele. O tecido grosso e quente pareceu um alívio contra o frio que começava a arrepiar sua pele.
— Aqui — disse ela suavemente, oferecendo a toalha sem desviar os olhos.
Ethan a pegou sem dizer nada, os dedos afundando na maciez do tecido enquanto se despia e começava a secar o corpo. Ele sentia o próprio corpo estremecer levemente com a mudança brusca de temperatura, o calor do banho sendo substituído pelo frio do ambiente.
Enquanto envolvia a toalha ao redor dos ombros, Ethan percebeu que Ângela já se voltava para Aaron, que continuava mergulhado no silêncio profundo do sono. Seu irmão não havia se movido desde que encostara a cabeça na borda do ofurô, e por um instante, Ethan se perguntou se ele sequer ouvira a conversa que tiveram antes.
Ângela se ajoelhou ao lado do ofurô, tocando de leve o ombro de Aaron para acordá-lo.
— Alteza… — chamou em um tom calmo, mas firme.
Caro leitor,
A guerra molda reinos, mas nem toda guerra é feita de espadas. Alguns campos de batalha são invisíveis, enterrados sob a areia, onde o inimigo não veste armaduras nem empunha lâminas afiadas. O deserto de Úrsula não precisa de reis ou generais para destruir um exército. Ele faz isso por si só.
É curioso como Ethan, um príncipe criado entre muralhas de mármore e protegido pelo ouro de sua linhagem, nunca soube disso. Ele acreditava que guerra significava marchas militares, estratégias elaboradas e traições nas cortes. Mas ali, nas palavras de Ângela, ele descobriu uma verdade mais crua: em alguns lugares, você pode lutar até a última gota de sangue e ainda assim perder para algo que nunca viu chegar.
Mas será mesmo que Úrsula está tão distante da guerra quanto Ângela acredita? O príncipe já leu as cartas. Ele já viu os mapas, os documentos que sua mãe mantém escondidos. Sabe que há algo se movendo naquelas terras, um jogo sendo jogado além do que os olhos comuns podem enxergar.
E então, há a muralha. A barreira frágil que separa o Império do Sol do desconhecido. Há aqueles que a guardam, aqueles que desejam derrubá-la e aqueles que simplesmente esperam, pois sabem que nenhuma muralha dura para sempre. Levensber e Beulirico são territórios instáveis, sempre à beira da violência. Mas e Úrsula? Está realmente em paz… ou apenas esperando pelo momento certo?
Ethan não perguntou. Talvez porque soubesse que algumas respostas não são dadas, mas descobertas.
Ethan começa a enxergar o mundo além das paredes do palácio, mas o que fará com esse conhecimento? Entender o perigo não significa que ele saberá enfrentá-lo.
E você, leitor, faria diferente?
Lembre-se: as respostas nunca são tão simples quanto parecem.
Glossário do Capítulo – Artefatos de Expansão Dimensional
No universo do Império do Sol, certos artefatos mágicos operam sob princípios de expansão e compressão dimensional, permitindo que objetos vastos e pesados sejam armazenados e transportados com facilidade. Essa tecnologia mágica é a mesma aplicada aos saquinhos interespaciais, recipientes encantados que podem conter um grande volume de itens sem alterar seu peso ou formato externo.
Os cilindros dourados utilizados pelos criados seguem essa mesma lógica. Embora pareçam objetos maciços e incrivelmente pesados quando lacrados, seu verdadeiro propósito é armazenar estruturas completas — como as grandiosas barracas do acampamento — dentro de um espaço mágico comprimido. Uma vez ativados, os selos rúnicos liberam a energia contida, e a estrutura armazenada se expande instantaneamente para seu tamanho real, como se sempre tivesse estado ali.
Esse tipo de encantamento avançado é um reflexo do poder e da sofisticação do Império. Não se trata apenas de praticidade logística, mas de um símbolo de domínio sobre a própria realidade — uma manifestação física da autoridade imperial, capaz de transformar um campo vazio em uma fortaleza em questão de segundos.
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