Capítulo 2 - Prova do Crime
“Confiar em alguém é um risco que já não sei se posso me permitir”
Aaron só tomou conhecimento dos laços sanguíneos da governanta, após se tornar um imperador em sua vida passada. Por meio de alguns informantes contratados por Kaylus, descobriu que ela era filha bastarda de um dos ministros mais importantes da Corte Real¹. Essa descoberta trouxe à tona várias conspirações, inclusive o envolvimento da família Kaylon com a facção anti-imperador.
Ao chegar ao final do corredor, Leila abriu a porta do quarto, permitindo que ele entrasse. Por fora, o príncipe mantinha uma fachada reservada, mas por dentro lutava contra o impulso de fugir. Sendo apenas uma criança, não podia nem mesmo socar algo sem se sentir envergonhado devido à sua incapacidade.
Ele mal havia retornado daquele infindável castigo e já enfrentava o risco de uma morte iminente. Pelo que Aaron sabia, a governanta poderia facilmente adulterar seus medicamentos ou, quem sabe, sufocá-lo com um travesseiro enquanto dormia.
— Você está tão calado. Príncipe, sua aparência não parece muito boa — observou Leila, deslizando a mão pelos cabelos desgrenhados do príncipe, um gesto de carinho que parecia sincero — Vou preparar um banho para você e…
— Me solta! — Aaron gritou, assustado. Sua voz aguda e amedrontada ecoou pelos corredores de paredes frias e sem graça. Após isso, um silêncio ensurdecedor se estabeleceu entre os dois. — E-Ethan está demorando, eu vou procurá-lo!
Ele correu pelo pátio em direção ao grande portão que dava acesso à floresta. Ao atravessá-lo, olhou ao redor, mas não encontrou o gêmeo em lugar algum. Os guardas do portão se assustaram ao vê-lo e lançaram olhares curiosos para Leila, que corria logo atrás.
— PRÍNCIPE, VOLTE AQUI! — Leila gritou, parando para recuperar o fôlego.
Aaron correu por entre as árvores, tropeçando e caindo várias vezes. A cada queda, praguejava sobre o quão odiável era estar naquela situação. Após algum tempo, quando decidiu que já estava longe o suficiente, permitiu-se parar para recuperar o fôlego.
Ao chegar aos portões do Palácio Lótus, encontrou dois guardas controlando a entrada. Eles mantinham suas lanças ao lado do corpo, com uniformes azuis e armaduras de placas metálicas prateadas, decoradas com a flor de lótus. As calças azuis eram ajustadas por faixas douradas, e os capacetes com viseira móvel completavam o traje.
— Príncipe, o que lhe traz aqui? — perguntou um dos guardas, olhando-o com estranheza.
— Eu vim para… — Aaron olhou para os lados, procurando por algum sinal de Leila.
Precisava respondê-lo, mas como? Aaron não podia dizer que estava com medo de retornar ao Palácio Gardênia. Seria vergonhoso demais.
Sentindo uma crescente urgência, o príncipe resolveu invadir o pátio. Assim, correu o mais rápido que pôde, tomando cuidado para não tropeçar.
— ALTEZA! — o guarda chamou, mas o príncipe não olhou para trás. — O que faremos? O príncipe Kaylus está irritado porque não tem pistas dos ovos. Não quero nem imaginar o que acontecerá quando descobrir que o maior suspeito do roubo acabou de entrar no palácio!
— Acontece que este ainda é o Palácio Lótus e, mesmo sendo um príncipe, ele não pode vir sem antes se anunciar. Pare de perder tempo pensando e vá logo notificá-lo! — exclamou o outro guarda.
Aaron correu pelo jardim florido localizado na parte lateral do edifício. Tudo o que mais precisava naquele momento era ficar sozinho e, de preferência, em algum lugar seguro, longe de todos os problemas que o aguardavam no futuro.
Em alguns anos, haveria uma guerra e, sem dúvida, ele seria enviado para lá. Não havia chance de se permitir passar por esse inferno novamente; uma vida inteira havia sido mais do que suficiente. Após retornar do campo de batalha, sua vida se resumiu a ingerir pílulas ou infusões de ervas para se acalmar devido ao trauma. Por vezes, evitava dormir, pois sempre que fechava os olhos era envolvido pela sensação de estar no campo de batalha. O terror da guerra e todo o estrago que causou lhe enchiam de culpa.
Chegando ao bosque, o príncipe se deparou com as belas árvores de folhagem cor-de-rosa que emanavam um ar de calmaria, as árvores estavam em plena floração, com pétalas caindo suavemente ao chão, criando um tapete natural de flores. O príncipe contornou as árvores, pulando sobre as raízes expostas, ele só parou quando a dor latejante nas pernas se tornou quase insuportável. Aaron se encostou em uma árvore, buscando um momento de alívio, e abraçou os joelhos, tentando conter as lágrimas.
Não havia outra alternativa senão começar do zero. Sendo assim, precisava dar início ao cultivo o quanto antes, mas não podia deixar Ethan para trás. Havia uma grande possibilidade de que ele sofresse com o carma em seu lugar. Precisava de aliados; ele seria o primeiro, mesmo que ainda não soubesse suas origens.
Enquanto o desespero o consumia, algo deslizou próximo à sua perna. Em meio às lágrimas, Aaron ergueu o rosto e viu uma pequena serpente verde. A princípio, parecia inofensiva, mas seus olhos brilhantes, de um amarelo intenso, estavam repletos de uma curiosidade inquietante.
Aaron inclinou-se ligeiramente para observar melhor a pequena criatura. Algo chamou sua atenção: a serpente tinha pequenos chifres amarelos e inclinados, como as raízes de uma árvore, adornando sua cabeça, quase como uma coroa. Quando ele pensou que isso já era incomum, notou algo ainda mais estranho – a criatura possuía pequenas garras afiadas, que claramente não pertenciam a uma simples serpente. Aquilo era algo diferente, algo mágico. Tratava-se de um dragão-serpente.
***
— E você o mandou de volta? — Darius perguntou, pegando a xícara de porcelana que estava sobre o pires e levando-a aos lábios.
— Claro que não, eu não seria capaz, principalmente depois da maneira como chegou — Kaylus respondeu, seu cenho pesava a cada palavra dita. Ele deixou o olhar cair brevemente sobre a mesa, como se o esforço para relembrar fosse grande demais.
— Não concordo com o que minha mãe está fazendo. Ela simplesmente retornou ao Palácio Hibisco e começou a trabalhar na captura dos rebeldes. E os gêmeos, Kay? Onde eles ficam no meio disso? — Darius perguntou, indignado. Sua atenção desviou para o pequeno lago tomado pelas flores de lótus, uma ponte elegantemente arqueada conectava as margens. — Ela apenas confirmou que estavam vivos e foi embora. Esse episódio com Aaron poderia ter sido facilmente evitado se ela estivesse com eles.
— Os gêmeos têm Leila, tenho certeza que ela está ajudando eles da melhor maneira que pode. Quanto a sua mãe, ela não pode descuidar de seus deveres de imperatriz, ela precisa ir a fundo com as investigações e descobrir se há mais algum rebelde infiltrado nos palácios. Ela só vai se distrair estando perto dos garotos — Kaylus respondeu, fechando o livro sobre a mesa e colocando-o no colo.
— Isso não é de ontem, Kay. Minha mãe simplesmente não se importa. O mesmo aconteceu com John. Imploramos por ajuda, mas ela teimou até o fim, dizendo que não possuía o antídoto. No fim, era apenas uma mentira, ela queria afetar a sua mãe. Essa rivalidade que ela tem com as concubinas precisa acabar de uma vez por todas. — Darius respondeu, seus olhos dourados brilhavam de frustração. Sua mão apertou a xícara de porcelana com força, quase quebrando-a.
John foi o terceiro filho do imperador e irmão de Kaylus, ambos concebidos pela mesma concubina. John faleceu há algumas décadas, durante uma guerra. Na época, ele havia se tornado o príncipe herdeiro do Império do Sol, e seu imenso poder lhe permitiu realizar conquistas que trouxeram melhorias significativas aos Reinos Inferiores, alavancando a economia. Após sua morte, não demorou muito para que Darius — o príncipe primogênito com o poder do Sol Cruel, voltado para algo ofensivo — ocupasse seu lugar, tornando-se o novo príncipe herdeiro.
— Por que está me olhando assim? — Kaylus perguntou, sentindo um calafrio percorrer sua espinha ao se deparar com o olhar frio e vazio de Darius.
Havia algo profundamente perturbador naquele olhar, algo que parecia esconder segredos sombrios. Kaylus hesitou por um momento, mas logo afastou o pensamento, atribuindo a estranha sensação à frustração que seu irmão mais velho devia estar sentindo em relação à imperatriz.
— A imperatriz é uma hipócrita — Darius respondeu, sua voz carregada de ressentimento. — Ela jura que matei John e não hesita em jogar isso na minha cara, como se eu tivesse esperado pela morte dele para tomar seu lugar. A verdade é que nós dois estávamos lá e vimos o que realmente aconteceu. Kay, por que ela age assim com o próprio filho?
Kaylus abriu a boca para responder, mas Darius continuou antes que ele pudesse falar.
— E quando penso no que ela pode fazer aos gêmeos… — a voz de Darius ficou amarga, quase desesperada. — São apenas crianças. Qual é o problema de dar um pouco de atenção a eles? Sim, há Leila, mas ela não é a mãe.
— Sua mãe nunca foi boa em demonstrar afeto — Kaylus murmurou, desviando o olhar. — Mas isso não significa que ela não se importe com seus irmãos. E você… você não pode culpá-la por suspeitar, Darius. O que aconteceu com John… Caitlyn estava envolvida, eu sei disso. Ela se aproximou dele, fingiu amá-lo, e então o traiu. A imperatriz não sabe de nada disso, e acho que nem precisa, não quero que associem John a facção anti-imperador.
Darius o olhou, e por um momento, Kaylus pensou ter visto algo mudar na expressão do irmão. Mas o momento passou, e Darius apenas suspirou, como se a raiva estivesse se dissipando.
— Soube que alguns ovos desapareceram do ninho de Lilian — Darius disse, numa tentativa de mudar de assunto. — Dizem que os gêmeos são os principais suspeitos.
— Infelizmente — Kaylus respondeu desgostoso, sentindo uma mudança abrupta em seu humor. Ele passou a mão nos cabelos castanhos, bagunçando alguns fios e coçou a barba num sinal de descontentamento. — Aqueles pestinhas foram os únicos que entraram no bosque. Qual a possibilidade de não serem eles?
Darius franziu os lábios, olhando para cima, onde a copa do pessegueiro em floração deixava escapar alguns feixes de luz. Um pequeno firebird brincava com outro, pulando de galho em galho, chilreando animado.
— Não tenho muito contato com os gêmeos, a imperatriz não permite que eu me aproxime. Mas pelo que sei, são espertos e já trilharam boa parte da floresta, teriam ido mais longe se tivessem mais provisões. O que quero dizer é que… são curiosos, e seria estranho não saberem da localização do ninho ou do que os ovos se tratam. — Darius disse, pensativo.
— Acha que esconderam os ovos na floresta? — Kaylus perguntou, tentando acompanhar o raciocínio do irmão.
— O quê? — Darius perguntou, perdido em seus pensamentos.
— Digo, fiz uma busca pelo Palácio Gardênia, mas eles não estavam lá. Darius, meu irmão, foi estranho. Os criados me olhavam com aqueles sorrisinhos como se guardassem algum segredo, mas quando eu os questionava, se calavam. — Kaylus disse, incomodado.
— O que mais esperava? Foram escolhidos a dedo pela imperatriz. — Darius respondeu com um sorriso, dando de ombros. — Estavam comentando que você interrogou Ethan, é verdade?
Kaylus lançou-lhe um olhar chateado.
— Você tem uma boa rede de informações, não é? A Corte Real deve estar me amaldiçoando até minha quarta geração por conta disso. Sim, eu o interroguei, no entanto, Ethan não falou nada. — Kaylus respondeu, com um suspiro, deixando de lado sua xícara de chá.
— Você merece, admita Kay. Ethan estava sofrendo por causa de Aaron, e você estava lá o castigando, no meio do pátio e na frente de todos. — Darius disse, a voz carregada de uma leve censura.
— Sabe, sempre enxerguei Ethan como um garoto frágil e sem vontade própria. Mas, quando mandei buscá-lo no Palácio Gardênia e o interroguei, ele se mostrou surpreendentemente firme. Havia uma força interior nele que eu nunca havia percebido antes. Assim como Aaron, Ethan também foi envenenado e ficou de cama, mas se recuperou mais rápido. Talvez, nesse período, algo tenha finalmente aberto seus olhos para a realidade. — Kaylus respondeu, balançando levemente a cabeça enquanto falava, como se ainda estivesse tentando entender a mudança que viu no garoto.
— Você realmente acredita nisso? — Darius cruzou os braços, com uma expressão descontraída. — Ethan nunca foi alguém para se destacar, sempre preferiu a sombra de Aaron. Não acho que essa mudança seja tão profunda quanto você quer acreditar. Talvez ele tenha aprendido a disfarçar melhor, mas isso não o torna forte, apenas mais cauteloso.
Kaylus se calou, lembrando dos gêmeos caminhando pelos jardins e subindo naquela mesma ponte e jogando pedrinhas coloridas no lago. Para onde Aaron ia, Ethan estava lá, e tudo que um fazia, o outro acompanhava.
— Pode ser, Darius. Talvez seja apenas um resultado momentâneo do que ele passou, mas eu quero acreditar que Ethan é capaz de ter alguma voz.
***
Aaron abriu os olhos lentamente, ainda meio preso entre o sonho e a realidade. Ele percebeu que estava em um quarto de paredes brancas, com janelas altas, cobertas por cortinas pesadas. O aroma do incenso perfumado pairava no ar, misturando-se ao som distante e tranquilizador de um guqin². Com um leve sentimento de déjà vu, fechou os olhos novamente, tentando se perder no som do instrumento, enquanto seus dedos inconscientemente começavam a brincar com o fio do cobertor, um gesto que revelava sua inquietação interna.
— Está acordado? — Kaylus perguntou suavemente, parando de dedilhar o instrumento de cordas.
Com um suspiro cansado, Aaron seguiu o som da voz de Kaylus. O meio-irmão estava do outro lado do quarto, sentado em frente a uma longa mesa de madeira escura, lisa e desprovida de ornamentos, onde repousava um delicado guqin². Ele vestia um manto preto, cuja pelagem felpuda nos ombros lembrava as vestes de um nobre guerreiro, conferindo-lhe uma aura de majestade. Seu uniforme, também negro, se ajustava perfeitamente ao seu corpo, destacando a silhueta imponente e serena que irradiava confiança e poder.
— Meio sonolento, mas sim, estou acordado — murmurou Aaron, com a voz carregada de exaustão. Ele observou o mais velho se levantar do assento e caminhar em direção à cama, onde se sentou na beirada. — Desculpe por ter chegado daquela forma, e obrigado por não me mandar de volta enquanto eu dormia.
— Não precisa agradecer, Lilian estava preocupada com você e explicou a situação — disse Kaylus, com a voz baixa e compreensiva, escolhendo suas palavras cuidadosamente. — Você lembra do que falou a ela no caminho para cá?
Aaron desviou o olhar, focando no guqin, seus cabelos desgrenhados caiam sobre a testa, escondendo seus olhos. Seus dedos ainda puxavam o fio solto.
— Aaron, eu preciso que você colabore comigo para que possamos capturar esse criminoso. Dessa vez, você e Ethan escaparam por pouco, mas talvez não tenham tanta sorte na próxima. — Kaylus continuou, sua voz cheia de preocupação.
— Eu não sei de mais nada — Aaron sussurrou, seus lábios tremeram e os olhos marejaram, evitando os de Kaylus — Talvez eu só esteja buscando alguém para culpar.
Kaylus gentilmente tocou suas costas, oferecendo conforto. O corpo de Aaron enrijeceu instantaneamente. A dor lancinante se espalhou por suas costas como fogo líquido, tocando seus nervos e queimando. Mordendo o lábio, Aaron recusou-se a afastá-lo. Não podia revelar sua fraqueza a Kaylus, ele era um cultivador de núcleo dourado e não demoraria a perceber.
— Sei que qualquer pessoa em sua posição ficaria com medo, eu apenas quero conversar com você para entender o que está se passando. Confie em mim, pequeno, enquanto estiver no Palácio Lótus estará sob a minha proteção, ninguém te fará mal.
— Certa vez, Ethan e eu estávamos brincando de pique-esconde… — Aaron murmurou, tomando coragem, sua voz saiu quase inaudível. — Eu escalei uma árvore e me escondi entre as folhas da copa. Lá de cima, vi Leila se aproximar de um guarda. Ele lhe entregou um saquinho mágico. Eu já tinha visto eles conversando antes, mas não dei muita atenção, achei que era algo normal… — A voz de Aaron quebrou, e ele engoliu em seco, enquanto lágrimas escorriam por suas bochechas coradas. Ele escondeu o rosto, frustrado.
— Você consegue lembrar algo sobre a conversa deles?
— Eles falaram algo sobre o poder do sol. O guarda parecia nervoso, era como se… como se ele temesse algo. — Aaron respondeu.
Leila devia pensar em si mesma como uma mulher muito esperta, e de fato era. Quantos empregados inocentes haviam sido presos, enquanto ela estava à solta? Mas isso mudaria hoje; nenhum criminoso sairia impune!
Perplexo, Kaylus parecia ter entendido algo nas entrelinhas. Um músculo de seu queixo flexionou antes de se pronunciar:
— E o saquinho mágico? O que o guarda falou sobre ele?
— Não consigo lembrar. Mas vi quando Leila foi à cozinha e tirou algumas folhinhas secas desse saquinho — Aaron franziu a testa, tentando puxar pela memória, enquanto seus olhos se estreitavam em concentração. — Ela moeu e misturou à comida. Pensei que fosse uma erva especial, por isso estava ansioso para provar, mas quando comi, senti um sabor estranho — ele fez uma careta, o nariz se enrugou ao pensar no gosto. — No início não era tão ruim, mas percebi que conforme comia, minha língua entorpecia. Um tempo depois, minha garganta fechou e… — Aaron sussurrou, lutando para pronunciar as palavras, sua voz vacilando.
Seus olhos estavam vidrados, perdidos em um ponto distante, como se estivesse revivendo cada detalhe. Eram lembranças dolorosas de sua vida passada, momentos que preferia manter em uma caixa trancada e bem escondida. Esperava que valesse a pena desenterrar tais memórias.
— Você passou por muita coisa, mas agora está aqui, seguro. Não se esqueça disso, Aaron. Sua mãe está trabalhando a fim de tornar o mundo um lugar seguro para você e Ethan — Kaylus sorriu, seus olhos brilhavam em uma mistura de preocupação e impotência, enquanto estendia a mão para acariciar a cabeça de Aaron, ajeitando seus cabelos desgrenhados.
Aaron engoliu em seco, seus dedos afundaram nos cobertores, em busca de lucidez. O coração batia descompassado diante da adrenalina, e ele respirou fundo, tentando acalmar-se. Era como se o couro cabeludo estivesse em chamas, uma sensação de formigamento que o deixava alerta. Ele mordeu o lábio inferior, hesitando. Não conseguia prosseguir, era difícil demais.
Kaylus havia falado algo, mas o quê? Seus lábios se moviam enquanto aquele olhar compreensivo se direcionava a ele.
Aaron abriu a boca, mas as palavras não saíam. A dor era uma prisão sufocante, cada toque no seu corpo era como uma gota de lava pingada em sua alma. Ele sentiu as lágrimas brotarem, mas não conseguiu contê-las. A impotência que vinha junto com a dor era devastadora.
— Não... não posso acreditar que Leila faria isso, ela me criou como uma mãe — sussurrou Aaron, as palavras saindo entre soluços. — Mas... não consigo evitar, estou com medo. Não quero voltar para aquele palácio.
Aaron precisava contornar a situação, Kaylus não podia desconfiar. Tudo iria por água abaixo se algo acontecesse.
— Aaron, você é mais forte do que imagina. Não precisa carregar esse fardo sozinho, você tem a mim, a Darius, Markus e Ethan, somos irmãos e vamos nos apoiar — disse Kaylus, a voz cheia de uma firmeza suave. — Vou falar com a imperatriz. Vamos investigar isso a fundo e descobrir o que realmente aconteceu. Durante esse tempo, você pode ficar aqui no Palácio Lótus.
— E o Ethan?
— Assim que aparecer, pedirei para que o tragam. Ethan será mais do que bem vindo aqui. Leila… huh, bem, ela me informou que você ainda está sob observação médica, então descanse e deixe tudo comigo — Kaylus se levantou, tentando não demonstrar a preocupação que crescia dentro de si.
Deitado em meio aos lençóis perfumados, Aaron abraçava o travesseiro, lutando contra a inconsciência e o cansaço. Ele se recusava a relaxar. Ainda era manhã quando Ethan entrou na floresta, e de acordo com a iluminação ambiente que escapava das cortinas, Aaron podia concluir que já quase anoitecia. E se algo tivesse acontecido a ele?
Enquanto imaginava os piores cenários possíveis, a porta se abriu, revelando Ethan com as vestes amassadas e folhinhas verdes enroscadas em seus cabelos negros e emaranhados, seus olhos atentos vasculharam o quarto antes de parar em Aaron, o reconhecimento floresceu em sua face assim que o viu.
Imediatamente, Aaron sentou-se, jogando o travesseiro de lado. O alívio e a surpresa tomaram conta de seu corpo, fazendo suas mãos tremerem ligeiramente.
— Ethan! Onde você esteve esse tempo todo? Por que demorou tanto? — Aaron perguntou, percebendo que o irmão se aproximava da cama. O tapete que cobria o piso silenciava o som rítmico de suas botas. Ethan deu um sorriso cansado, tentando tirar algumas folhas dos cabelos.
— Estava preocupado comigo? Não é como se eu não soubesse me virar na floresta — Ethan respondeu, sorrindo ao se sentar na cama, cruzando as pernas. Ele estendeu a mão para tocar o topo da cabeça de Aaron, mas se deteve ao notar o olhar ansioso que o gêmeo lançou para sua mão. Ele soltou um suspiro frustrado, passando a mão nos próprios cabelos bagunçados.
— Qualquer um ficaria preocupado em meu lugar, e você também não falou que iria demorar tanto! — Aaron exclamou, tentando se livrar do clima desconfortável. Ethan inclinou a cabeça, observando o irmão com um sorriso suave.
— O importante é que já estou aqui. Agora me conta, que história é essa de você fugir do nosso palácio? Está todo mundo comentando sobre isso.
— Não foi nada, eu só não queria tomar o medicamento — Aaron murmurou, abaixando o olhar, seus dedos afundando nos lençóis. Ethan arqueou uma sobrancelha, divertido, mas logo ficou sério.
— Não foi isso que eu ouvi — Ethan disse, sentindo imediatamente a tensão no ar. Aaron levantou a cabeça, encarando-o com uma intensidade que fez Ethan engolir em seco.
— O que você ouviu? — Aaron perguntou, a voz baixa e afiada.
Ethan pigarreou, desviando o olhar para a janela.
— O guarda apenas comentou que você chegou aos portões do Palácio Lótus chorando, aparentemente, com medo de ficar no Palácio Gardênia. Ele também disse que você agiu fora de si quando correu sem rumo pelo bosque.
Aaron sentiu o rosto esquentar. A vergonha o consumia, latejando em sua mente. Como poderia conquistar o respeito das pessoas se tais boatos já estavam circulando? O pior é que não tinha como desmenti-los, pois, por mais que odiasse admitir, eram verdadeiros.
— Desculpe — Ethan interrompeu seus pensamentos, sua voz suave e cheia de remorso. Aaron lançou-lhe um olhar confuso, surpreso pela sinceridade no tom do irmão. — Nada disso teria acontecido se eu não tivesse saído e ficado fora por tanto tempo. Eu devia ter esperado você se recuperar para que pudéssemos caçar os ovos juntos.
Aaron se sentiu desarmado diante daqueles grandes olhos gentis que expressavam uma preocupação genuína. Com um suspiro, ele se ajoelhou na cama, inclinando-se em direção a Ethan. Ele estendeu a mão e começou a retirar suavemente as folhinhas verdes dos cabelos dele. Surpreso, Ethan olhou para ele.
— Essas folhas não devem ser fáceis de tirar — Aaron murmurou, sua voz suave e hesitante, quebrando o silêncio de forma quase tímida. Ethan riu baixinho, um som que soou reconfortante na quietude do quarto.
— Não se preocupe com isso. Eu estava mais focado em encontrar os ovos e em voltar a tempo. Não percebi que havia sujado as roupas ou bagunçado o cabelo. — ele respondeu.
Aaron continuou trabalhando meticulosamente, alisando os cabelos do irmão e removendo os pequenos resíduos. Cada toque era uma forma silenciosa de expressar sua preocupação.
— Você realmente se preocupa comigo, não é? — Ethan perguntou suavemente, sua voz tingida de surpresa e afeto. Aaron hesitou, seus dedos ainda entrelaçados nos cabelos de Ethan, retirando as últimas folhas. O silêncio se estendeu por alguns segundos, denso e cheio de significado.
— Não gosto de te ver assim — disse Aaron, num tom sério, mas contido. Ele desviou o olhar, focando-se nas últimas folhas que restavam — Só isso.
— Você lembra daquele lago que brincamos na última vez em que fomos à floresta do Palácio Lantana? — Ethan perguntou, após o silêncio se tornar denso. Seus olhos estavam fechados, apreciando o leve toque em seus cabelos.
— Não há lagos naquela parte da floresta, há apenas um rio que flui das planícies até os palácios. É a isso que se refere? — Aaron perguntou. As palavras saíram de uma maneira tão natural, que só após proferi-las, entendeu o que se passava. Seus olhos encontraram as íris negras de Ethan, que refletiam sua própria imagem. Havia algo por trás daqueles olhos, algo que o deixava inquieto.
— Sim — Ethan respondeu, abrindo um leve sorriso, elevando ainda mais o desconforto de Aaron que voltou a se sentar. — Segui o curso do rio para chegar o mais rápido possível ao Palácio Lantana. Quando cheguei, fui até o jardim interno onde costumamos brincar, e adivinha? Os ovos estavam no alto de uma macieira. Você é a única pessoa avoada o suficiente para pensar em esconder ovos de dragão em uma árvore, e se eles tivessem caído?
Certa vez, Aaron se aventurou floresta adentro para ver a chegada do irmão mais velho junto a uma poderosa e exótica comitiva. Darius voltava dos Reinos Inferiores, onde havia expulsado as forças inimigas vindas do Império do Fogo, libertando diversos solares que sofriam em suas mãos. Para Aaron, um menino arteiro e metido a aventureiro, com sonhos que iam além de sua visão, aquilo era incrível, e ele queria testemunhar tudo com os próprios olhos.
Infelizmente, nunca chegou ao Palácio Lantana. Perdeu-se na floresta, o que mobilizou vários guardas em sua busca. Quando finalmente foi encontrado, explicou o motivo de sua fuga. Suas palavras chegaram aos ouvidos de Darius, que ergueu uma barreira ao redor do palácio para evitar que algo do tipo acontecesse novamente.
A diferença de sua infância solitária antes da regressão temporal, agora tinha Ethan. Tudo poderia acontecer. E se isso já tivesse acontecido nessa linha temporal? Qual a probabilidade de haver alguma barreira?
Ele estudou o rosto de Ethan, procurando por qualquer sinal de mentira ou omissão. A possibilidade de que Ethan não tivesse encontrado os ovos no palácio de Darius, ou de que ele mesmo os tenha escondido, fez sua mente correr com as possibilidades. Mas ele sabia que precisava ser cauteloso.
Ethan havia ido até o Palácio Lantana, ou seja, ele sabia que precisava seguir o curso do rio, o que significa que não era a primeira vez que ia até lá. Aventurar-se na floresta não era fácil, e o descuido dos guardas, bem como a liberdade que eles lhes davam, era a mesma. Talvez já tivessem se perdido na floresta antes.
— Como conseguiu entrar dentro do Palácio Lantana? — Aaron finalmente se pronunciou, mantendo a voz calma, mas com um leve tom de curiosidade.
— Por que a pergunta? — Ethan rebateu, intrigado, franzindo o cenho.
— Bom, porque eu não me lembro de ter escondido os ovos no jardim interno. A segurança é muito rigorosa, deve ter sido difícil para você entrar. Quem será que os levou? — Aaron perguntou,com falsa preocupação.
Ethan piscou rapidamente, seu leve sorriso vacilou por um instante. Era sutil, mas Aaron, com seus anos de experiência acumulados em sua vida passada, percebeu a hesitação. Aquilo era exatamente o que ele precisava para confirmar suas suspeitas.
O príncipe sorriu internamente. Uma resposta evasiva, continuava sendo uma resposta. Ethan que se virasse agora. Se Ethan estava mentindo ou não, cabia a ele revelar, mas Aaron sabia que havia colocado uma semente de dúvida na conversa, deixando que o irmão enfrentasse as consequências de suas próprias palavras.
— Bom, isso não importa, não vamos quebrar a cabeça com isso. O importante é que os ovos foram encontrados! Onde eles estão? — Aaron perguntou, tentando desviar a atenção de Ethan da pequena brincadeira em que o havia feito cair.
— Acho melhor não dizer agora, se Kaylus te pressionar, é bem provável que você fale — Ethan respondeu, e no mesmo instante, Aaron fechou a cara.
Ethan estava descaradamente afirmando que não confiava nele.
GLOSSÁRIO:
⁰⁰1 Corte Real: Em termos históricos e políticos, a corte é o grupo de pessoas que cercam um monarca ou governante, incluindo a família real, nobres, conselheiros, ministros e outros oficiais que desempenham funções administrativas, cerimoniais e sociais. A corte pode estar localizada em um palácio ou residência real, e suas atividades frequentemente envolvem decisões de governo, eventos oficiais e a administração de assuntos do reino.
⁰⁰2 Guqin: É um instrumento musical de cordas tradicional no Império do Sol. Ele possui um som suave e melodioso, utilizado tanto em cerimônias formais quanto em momentos de introspecção ou meditação. Sua execução exige destreza e controle emocional, e muitos o associam à nobreza e ao refinamento cultural. No contexto do livro, o Guqin também pode ter propriedades místicas, amplificando o estado de espírito do tocador ou influenciando energias ao redor.
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