Capítulo 15 - A Fonte dos Segredos pt.1
“Dignidade’ era uma palavra perigosa no império do Sol. Era usada para justificar injustiças, para silenciar vozes, para proteger um sistema que Aaron sabia estar desmoronando.”
O som abafado das botas contra as pedras polidas do pátio ecoava como um tambor fúnebre. Era o único ruído que rompia o silêncio opressor que envolvia o lugar. Cada passo parecia uma afirmação de que eles não pertenciam ali – intrusos em um terreno sagrado. Aaron caminhava alguns passos atrás do sacerdote, mantendo a cabeça erguida, como convinha à sua posição. Mas seu olhar, inquieto e voraz, explorava o templo e suas muitas promessas não ditas.
O templo era colossal. Não uma construção comum, mas uma obra que beirava o desafio às leis mortais. Suas torres altíssimas desapareciam no céu pálido, como lanças erguidas para transpassar o firmamento. Os vitrais adornavam as alturas, retendo a luz fraca do sol invernal e devolvendo-a em fragmentos de cor que se espalhavam pelas paredes como uma miragem delicada. Encantamentos corriam pelas janelas como veios de energia viva, um lembrete sutil de que ali o profano não tinha lugar.
Ele sentiu o aperto gelado em sua mão e olhou para o lado. Ethan. O garoto segurava sua mão com mais força do que o habitual, seus pequenos dedos estavam quentes apesar do vento frio que atravessava o pátio. Ethan não disse uma palavra, mas Aaron viu algo em seus olhos – um brilho que mesclava fascínio e cautela.
Aaron desviou o olhar, voltando-se para trás, onde Helena aguardava ao lado dos guardas. Eles estavam à sombra das grades de ferro negro, cujo contorno severo quase desaparecia contra o céu acinzentado. O sacerdote fora claro em suas instruções: Helena não deveria passar dali.
“Apenas façam o que ele mandar.” dissera Helena. Aquelas palavras ecoavam em sua mente agora, desconfortáveis, como se fossem parte de algo que ele não entendia.
O sacerdote à frente caminhava em silêncio. Ele era um homem idoso, mas seus movimentos eram firmes, suas vestes brancas e douradas ondulando atrás dele como uma extensão de sua autoridade. O homem não se preocupava em explicar para onde estavam indo ou o que os esperava. Ele não precisava. A cada passo, o ar ao redor parecia pesar mais sobre os ombros de Aaron, como se o templo os estivesse medindo, pesando suas almas contra algum padrão invisível.
Aaron tentou controlar a inquietação que crescia dentro de si, mas seus pensamentos voltaram para a imperatriz. Por que sua mãe havia pedido que Helena os trouxesse aqui? E, mais importante, por que Helena não insistira em acompanhá-los? Havia algo errado. Ele sentia isso no fundo de seu estômago, uma pontada de desconfiança que ele não conseguia ignorar.
As paredes ao redor eram adornadas com relevos detalhados, retratando histórias de glória e sacrifício. Rostos de mártires e figuras divinas espreitavam as pedras, como se estivessem observando o progresso dos dois irmãos. Aaron se forçou a olhar para frente novamente, mas não pôde evitar o pensamento de que aqueles olhos esculpidos poderiam ver além da carne, até os segredos que ele guardava tão desesperadamente.
— Olha, Aaron, — disse Ethan, sua voz baixa, mas tensa.
Aaron seguiu o gesto sutil do queixo de Ethan, virando a cabeça para o lado oposto do pátio. Ali, grupos de figuras caminhavam em filas ordenadas, seus passos ecoando suavemente pelo chão de pedra. Eles estavam todos vestidos com uniformes simples, mas distintos. Tons de cinza desbotado formavam a base, enquanto outros vestiam trajes de um vermelho profundo, como sangue seco sob a luz pálida do sol. Cada grupo trazia um símbolo bordado no peito – uma estrela dourada aqui, uma lua prateada ali, ou padrões intrincados que Aaron não reconhecia, mas que exalavam propósito.
— Discípulos de seitas, — murmurou Aaron, mais para si mesmo do que para Ethan, o tom neutro, quase desinteressado, mas os olhos observando cada movimento com atenção calculada.
Ethan inclinou-se ligeiramente para ele, a curiosidade iluminando seu rosto, contrastando com a tensão que Aaron sentia em seu próprio peito.
— Por que estão aqui? — perguntou Ethan. — Será que é algum tipo de evento?
Aaron não respondeu de imediato. Ele estava prestes a descartar a pergunta com um aceno quando percebeu que o sacerdote havia diminuído o passo. O homem virou a cabeça para trás, e mesmo sem olhar diretamente para eles, havia algo na postura dele que transmitia que ele havia ouvido.
Quando o sacerdote finalmente falou, sua voz cortou o ar como veludo desgastado, algo antigo e sábio.
— É um momento importante para Marguentano, — disse o homem. Ele não se virou completamente, mas o suficiente para que sua expressão revelasse um pequeno sorriso. — Há semanas, mestres de cultivação têm chegado à capital. Oficiais Celestiais¹, Reverendos Imortais². Cada um deles traz consigo discípulos promissores. Hoje, é o ápice de suas reuniões.
Aaron observou o sacerdote atentamente, tentando decifrar o que estava oculto naquele tom. O sorriso parecia gentil, mas havia algo por trás dele – algo que deixava um gosto amargo. O homem sabia quem eles eram. Sabia o peso de suas presenças ali, e provavelmente sabia mais do que deixava transparecer.
Aaron apertou os lábios. Suas emoções estavam em tumulto, mas ele as manteve bem guardadas, onde ninguém poderia tocá-las. Ethan, no entanto, não era tão hábil em esconder seus pensamentos. Ele olhou para o sacerdote, e sua curiosidade transbordou antes que ele pudesse contê-la.
— E o que estão decidindo? — perguntou, sua voz vacilante, mas clara o suficiente para romper o silêncio.
O sacerdote hesitou por um instante, o suficiente para que Aaron percebesse o peso da pergunta. Finalmente, ele respondeu, sua voz carregada de um mistério quase tangível.
— O futuro, garoto, — disse ele. — O futuro do império… talvez até além dele.
As palavras pairaram no ar, pesadas e vagas. Ethan franziu o cenho, desconfortável com a falta de clareza. Ele puxou levemente a mão de Aaron, um gesto pequeno, mas carregado de significado.
— Mas… quem decide o futuro do império não são os imperadores? — murmurou Ethan
A pergunta pairou no ar como uma lâmina, afiada e direta, cortando o silêncio. O sacerdote parou de caminhar, e o mundo pareceu silenciar ao redor deles. Ele se virou lentamente, o movimento medido, deliberado, como se até mesmo girar o corpo fosse uma ação calculada.
Seus olhos encontraram os de Ethan primeiro. Eles estavam cheios de algo que parecia paternal, mas havia um brilho oculto ali, algo que os tornava impossíveis de decifrar. Em seguida, ele olhou para Aaron, como se procurasse algo nele também.
Então ele riu.
Foi uma risada baixa, tranquila, mas carregada de camadas. Não havia humor verdadeiro nela, apenas um eco que carregava um significado que Ethan não conseguia compreender.
— Oh, garoto… — disse ele, e o sorriso que se formou era tanto caloroso quanto afiado, revelando dentes brancos demais sob a luz do sol filtrada pelos vitrais. — É verdade que os imperadores são cultivadores poderosos, escolhidos para carregar o fardo do trono. Mas se acredita que eles têm a palavra final sobre o futuro deste império, você ainda é jovem demais para entender.
A resposta fez Ethan recuar ligeiramente, o aperto em sua mão tornando-se mais forte. Ele olhou para Aaron como se buscasse apoio, mas o irmão gêmeo permanecia calado, sua expressão imóvel. No entanto, seus olhos se estreitaram, fixos no sacerdote, atentos a cada nuance, a cada inflexão.
— E quem decide, então? — Ethan insistiu, sua voz mais hesitante agora, mas a curiosidade evidente brilhava por trás do medo.
O sacerdote cruzou as mãos sobre a longa túnica, o tecido branco e dourado reluzindo sob a luz que se infiltrava pelas vidraças encantadas. Ele parecia saborear a pergunta, como se aguardasse o momento certo para responder.
— Os Oficiais Celestiais, é claro, — disse ele, sua voz reverberando suavemente. — Aqueles que servem diretamente ao deus do Sol. Eles são a força por trás do trono, os olhos que veem além da mortalidade, os que guiam o caminho da cultivação e do destino.
Ethan franziu o cenho novamente, tentando processar o que ouvia.
— Mas… eles não são servos do império?
Por um breve momento, o sorriso do sacerdote vacilou, substituído por uma expressão mais séria, quase severa.
— Servos, sim. Mas não no sentido que imagina, — disse ele, com um tom que era tanto uma concordância quanto uma negação. — Os Oficiais Celestiais são mestres da cultivação espiritual, indivíduos cuja força e sabedoria ultrapassam os limites da compreensão comum. Eles não são apenas guerreiros ou estudiosos; são guias divinos. É dito que seus corpos e almas estão em comunhão com o deus do Sol, permitindo-lhes manipular os elementos, ver além do véu do tempo e até mesmo moldar o destino daqueles que os cercam.
Aaron permaneceu calado, mas seus olhos estavam fixos no sacerdote, avaliando cada palavra. Ele não acreditava completamente na ideia de que um ser humano, por mais poderoso que fosse, pudesse moldar destinos inteiros. Ainda assim, ele sabia que havia uma verdade inescapável nas palavras do sacerdote. Cultivadores como os Oficiais Celestiais sempre tiveram um peso desproporcional no equilíbrio de poder – tanto nas batalhas quanto nos salões de poder.
O sacerdote, como se sentisse que sua audiência estava absorvendo suas palavras, continuou com o mesmo tom controlado.
— O povo comum os vê como emissários divinos. A nobreza os trata como aliados poderosos… ou adversários perigosos. E para o trono, eles são o fundamento de tudo. Sem eles, o Sol não brilha com a mesma intensidade sobre o império do Sol.
Ethan engoliu em seco, suas emoções oscilando entre fascinação e medo. Ele apertou a mão de Aaron novamente, inclinando-se levemente para ele.
— Isso… é assustador, — murmurou ele, tão baixo que apenas Aaron conseguiu ouvir.
— Assustador? Talvez, — respondeu Aaron, a voz baixa, quase distraída. — Mas, para mim, eles não são reais.
Ethan franziu o cenho, confuso.
— Não são reais?
Aaron continuou, ainda sem olhar diretamente para o irmão:
— Não como nós. Não como o frio que você sente agora ou o som dos nossos passos. São mais como… personagens de uma história. Importantes, sim, mas distantes. Difíceis de enxergar, difíceis de tocar.
O sacerdote, ouvindo a troca, lançou-lhes um olhar breve pelo canto dos olhos. Havia algo naquele olhar – uma sombra de satisfação, talvez, mas também um traço de cuidado, como um gato observando ratos que ainda não havia decidido se caçaria. Ele não falou. Ao invés disso, virou-se com a mesma calma calculada de antes e retomou a caminhada, as mãos cruzadas diante de si como se estivesse guiando-os a algo inevitável.
Aaron o seguiu, sentindo o peso de algo maior pairando sobre eles. O ar parecia carregado, como se o próprio templo tivesse presenciado tantas verdades e mentiras ao longo dos séculos que suas paredes não sabiam mais qual das duas sustentavam. Ele não sabia se a presença dos Oficiais Celestiais era um presságio de mudanças para Marguentano ou apenas um lembrete de que o destino nunca estava completamente nas mãos de um homem – nem mesmo de um imperador.
— Então... por que o deus do Sol ainda é reverenciado? — perguntou Ethan. — Meu pai disse... que ele está morto.
O sacerdote parou. Desta vez, não foi um movimento gradual, mas uma pausa súbita, como se aquelas palavras tivessem o poder de interromper até mesmo sua caminhada calculada. Ele virou-se para os garotos, mas havia algo diferente em sua postura agora. Seus olhos pousaram primeiro em Ethan, medindo-o, antes de se voltarem para Aaron. Havia uma curiosidade ali, mas também algo mais profundo.
Ele não falou imediatamente. O silêncio que se seguiu foi denso e prolongado, como uma pausa antes de uma revelação que mudaria tudo. Finalmente, o sacerdote quebrou o momento. Sua voz, quando veio, estava carregada de gravidade:
— Seu pai não estava completamente errado, — disse ele, cada palavra pesada como pedra. — Mas também não estava certo.
Ethan piscou, confuso.
— Como assim?
O sacerdote ergueu a mão, indicando que ele esperasse.
— É uma pergunta ousada, príncipe Ethan. Mas vejo em você a curiosidade de um buscador, e isso é algo que deve ser nutrido. Então, permita-me contar-lhes uma breve história.
Aaron não disse nada. Ele observou o sacerdote como um predador observa outro – atento a cada movimento, a cada palavra, procurando por fraquezas e segredos. O sacerdote, no entanto, parecia indiferente ao escrutínio. Ele deu alguns passos para trás, aproximando-se de uma grande coluna esculpida.
A coluna era alta e imponente, decorada com relevos dourados que retratavam o deus do Sol em toda a sua glória. Kallisto segurava um cetro em uma mão e uma esfera de luz na outra, enquanto raios de luz divina se espalhavam de seu corpo, envolvendo figuras menores ajoelhadas ao seu redor.
O sacerdote passou a mão pelos relevos com um cuidado quase reverente, seus dedos percorrendo as linhas douradas.
— No início, o Império do Sol não era como o conhecemos hoje, — começou ele, sua voz baixa, mas ressonante. — Não havia Reinos Superiores, Inferiores ou Proibidos, nem as desigualdades que agora separam os homens e as feras mágicas como o dia e a noite. Tudo começou no Reino Imortal, um plano além da compreensão humana. Lá vivia Kallisto, o deus do Sol, cuja luz e poder moldaram tanto os céus quanto a terra.
O sacerdote prosseguiu, e sua voz assumiu uma qualidade mais sombria, como o som de uma porta pesada se fechando em um corredor vazio.
— No entanto, mesmo um deus pode se desviar. Kallisto era um soberano magnífico, mas o poder que fluía através dele... tornou-se instável. Há aqueles que dizem que ele tentou comandar algo além até mesmo de sua própria natureza divina. Outros acreditam que foi uma conspiração, que forças externas o levaram ao declínio. Seja qual for a verdade, o que sabemos é isto: após sua suposta morte, o Reino Imortal foi selado.
Ethan arregalou os olhos.
— Selado? Como?
O sacerdote inclinou a cabeça levemente, como se a pergunta fosse esperada.
— É um mistério que ninguém, nem mesmo os Oficiais Celestiais, conseguiu desvendar completamente. Mas antes que o selo se completasse, muitos Oficiais Celestiais, os servos mais poderosos de Kallisto, fugiram. Eles vieram para este mundo, trazendo consigo não apenas sua força, mas também os ecos da tragédia que havia ocorrido.
Aaron observava o sacerdote, o peso de cada palavra parecendo comprimir o ar ao seu redor. Ele nunca havia pensado nos Oficiais Celestiais como fugitivos, como seres que haviam escapado de algo maior do que eles mesmos.
— Que tragédia? — Aaron perguntou pela primeira vez, sua voz baixa, mas firme.
O sacerdote olhou diretamente para ele, e Aaron sentiu algo gelado na intensidade de seu olhar.
— A morte de Kallisto não foi apenas o fim de um deus, mas uma catástrofe que abalou tanto o Reino Imortal quanto o Império do Sol. Dizem que o poder espiritual liberado naquele momento era tão denso, tão devastador, que rasgou as terras do império. Ele partiu o mundo ao meio, separando o que antes era uno e criando as divisões que agora chamamos de Reinos Superiores, Inferiores e Reinos Proibidos.
Aaron franziu o cenho. O Império do Sol não era apenas um lugar dividido por desigualdades e conflitos; era um lugar nascido de destruição, de desequilíbrio. Algo profundamente quebrado em sua fundação.
— E as pessoas? — Ethan perguntou, sua voz quase um sussurro.
O sacerdote fechou os olhos por um momento, e Aaron percebeu o leve movimento de seus lábios, como se ele murmurasse uma oração ou evocasse uma memória. Quando abriu os olhos, havia um peso neles que parecia muito maior do que o homem que os carregava.
— Muitas morreram, — disse ele. — Esmagadas pela força esmagadora do poder espiritual que se liberou como uma tempestade. Outras… — ele hesitou, sua voz quase falhando — …foram transformadas. Seus corpos eram frágeis demais para conter a energia que percorreu as terras. Elas mudaram, distorcidas por algo que jamais deveriam ter tocado.
O silêncio que seguiu parecia engolir o espaço ao redor deles. Mesmo os murmúrios das vozes vindas do salão principal do templo não conseguiam romper a gravidade que pendia sobre o momento.
— E... por isso ainda o reverenciam? Mesmo morto? — Ethan perguntou, sua voz fraca.
O sacerdote abriu os olhos lentamente, e pela primeira vez sua expressão mostrou algo além da serenidade ensaiada que ele carregava. Havia melancolia ali, uma sombra que parecia ser uma com o homem.
— Kallisto pode estar morto, — disse ele, — mas sua influência nunca desapareceu. Para muitos, ele é mais do que um deus. Ele é uma lembrança. De glória. De luz. Mas também de advertência. Sua existência moldou este mundo, e mesmo na morte, ele permanece. Ele é uma chama. E, como qualquer chama, não precisa de combustível para continuar a queimar nas memórias das pessoas.
Aaron cruzou os braços, os olhos fixos no sacerdote como um desafio silencioso. Ele não parecia satisfeito com as respostas, ou talvez fosse o tom reverente que o irritava.
— E para você? — ele perguntou, sua voz carregada de uma nota cortante. — O que Kallisto significa?
O sacerdote sorriu de leve, mas o gesto não chegou aos olhos. Ele inclinou a cabeça levemente, como se pensasse na pergunta com um cuidado deliberado. Quando finalmente respondeu, sua voz estava impregnada de algo mais profundo do que qualquer palavra que dissera antes.
— Para mim, ele é uma lição.
Aaron não respondeu, mas sua expressão endureceu ligeiramente.
— Que mesmo o maior dos seres pode cair… — continuou o sacerdote, o olhar fixo em Aaron, como se falasse diretamente para ele. — E que talvez, algum dia, a verdadeira luz dele possa retornar.
O corredor que se estendia à frente era um contraste gritante com o pátio sombrio e austero que haviam cruzado. As luzes suaves, refletidas nas paredes brancas como neve, dançavam com os detalhes dourados que formavam padrões intricados, quase hipnotizantes. Aaron observava tudo, mas sem a admiração silenciosa de Ethan. Para ele, aquele lugar parecia um teatro bem decorado, feito para impressionar mentes menos críticas.
Cultivadores passavam por eles ocasionalmente, homens e mulheres de posturas rígidas e passos precisos, como se até o menor movimento fosse cuidadosamente ensaiado. Eles saudavam o sacerdote com inclinações respeitosas, suas vozes murmurando cumprimentos que Aaron mal podia ouvir. Mas os dois garotos eram ignorados, como se fossem sombras inofensivas, indignas de qualquer atenção.
Aaron usou o silêncio para se perder em pensamentos. As palavras do sacerdote no pátio continuavam a ecoar em sua mente, como uma melodia dissonante que ele não conseguia ignorar.
“Kallisto. Ele é um ícone de reverência, mesmo na morte,” ele pensou. Tudo parecia uma fachada, uma desculpa para manter o povo obediente. Ele não conseguia decidir se aquilo o irritava ou apenas o divertia.
Aaron quebrou o silêncio, sua voz cortando o ambiente como uma lâmina.
— Fascinante, não é? — disse ele, com um tom levemente sarcástico, mascarado por uma falsa surpresa. — Um deus que você pode secar a garganta chamando, mas que nunca te ouvirá.
O sacerdote, que caminhava à frente, diminuiu o passo, mas não se virou.
— Você é cético, jovem príncipe, — respondeu ele calmamente. Mas havia algo em sua voz, um tom quase provocador que parecia convidar Aaron a continuar.
Aaron arqueou uma sobrancelha, mas decidiu não responder diretamente. Ele olhou para Ethan, que hesitou, inquieto, antes de desviar o olhar. Depois, Aaron ergueu os olhos para o teto, onde runas douradas brilhavam como constelações em um céu sem limites.
— As estrelas no céu, — começou Aaron, seu tom deliberadamente pensativo. — Dizem que cada uma representa a vida de um imortal, certo? É o que afirmam, pelo menos.
O sacerdote finalmente parou e virou-se parcialmente, apenas o suficiente para que Aaron pudesse ver seu olhar atento e inquisitivo.
— Correto, — respondeu o sacerdote com uma leve inclinação de cabeça.
Aaron inclinou ligeiramente a cabeça, como se saboreasse a pergunta antes de lançá-la.
— Então me explique isso, — disse ele. — Dizem que Kallisto está morto. Mas a maior estrela no céu, aquela que supostamente representa ele, ainda brilha tão intensamente quanto antes.
O silêncio que se seguiu foi como uma corda esticada ao limite. O sacerdote o observou por um longo momento, seus olhos profundos como poços escuros. Finalmente, ele sorriu, mas era um sorriso sutil, carregado de algo mais – um peso, uma sabedoria que parecia ter mais perguntas do que respostas.
— Ah, essa é uma questão que muitos aqui no templo também se fazem, — disse ele, sua voz carregada de significado. — E há uma história que circula entre nós, embora poucos tenham coragem de mencioná-la abertamente.
Ethan inclinou-se levemente para frente, curioso e apreensivo. Aaron permaneceu imóvel, mas seus olhos estreitaram-se ligeiramente, intrigado.
— Dizem que o imperador Derick é o próprio Kallisto, — continuou o sacerdote, sua voz ganhando um tom mais baixo, quase conspiratório. — Que a máscara que ele usa não serve para ocultar seu rosto… mas sim seus poderes.
Ethan engasgou, o som escapando de sua garganta antes que ele pudesse controlá-lo.
— O quê? Isso… isso é verdade?
O sacerdote levantou uma mão, o gesto tão sereno quanto uma folha caindo em um lago.
— É apenas um rumor. Mas um rumor persistente.
Ele fez uma pausa, deixando as palavras ecoarem pelo espaço, absorvendo as reações dos garotos. Seus olhos, mais claros sob a luz dourada que fluía das runas no teto, pairaram primeiro sobre Ethan, depois sobre Aaron.
— A família imperial carrega o sangue de Kallisto, — continuou ele. — Por gerações, esse sangue tem sido o fundamento de sua autoridade, a base sobre a qual sua dinastia se ergue. Os Oficiais Celestiais reconhecem isso, é por isso que o respeitam.
Aaron, que até então permanecera em silêncio, inclinou levemente a cabeça, seus olhos brilhando com algo que o sacerdote não conseguiu identificar.
— Mas só até certo ponto, não é? — disse ele.
O sacerdote não respondeu imediatamente. Em vez disso, um pequeno sorriso curvou seus lábios, algo que parecia tanto uma confirmação quanto uma provocação.
— Muito perspicaz, príncipe Aaron, — respondeu ele, sua voz ganhando um tom mais sério. — O respeito deles é limitado, sim. Porque, embora Derick carregue o sangue de Kallisto, ele não é o verdadeiro. Ele é apenas um homem... um homem que, aos olhos dos Oficiais Celestiais, falhou em superar as expectativas.
Ethan balançou a cabeça, tentando absorver as palavras.
— Então… eles não acreditam nele? — perguntou ele, sua voz hesitante.
— Eles acreditam, até certo ponto, — respondeu o sacerdote, seu tom medido. — Mas acreditar e respeitar são coisas diferentes. E com o passar dos anos, as decisões de Derick – especialmente após o afastamento da imperatriz – apenas enfraqueceram sua posição.
O sacerdote deu um passo à frente, sua expressão agora mais grave.
— Desde que ela deixou o Palácio Imperial, Derick tem tomado decisões ruins, decisões que alienaram os Oficiais Celestiais. Eles o veem como alguém indigno, e esse descontentamento cresce a cada dia.
— E o que isso significa? — perguntou Ethan, hesitante.
O sacerdote hesitou, como se ponderasse o quanto deveria revelar. Seus olhos fixaram-se no chão por um instante, mas quando ele voltou a olhar para os príncipes, havia algo sombrio em sua expressão, um prenúncio de perigos ainda não completamente formados.
— Significa que o império está em um momento delicado, príncipe Ethan, — disse ele finalmente. — O respeito é uma moeda valiosa entre os poderosos. E quando essa moeda se esgota…
Ele deixou a frase no ar, permitindo que os garotos preenchessem o vazio com suas próprias conclusões.
Aaron desviou o olhar, fixando-o em uma das runas que brilhavam suavemente no teto. Sua mente trabalhava rápido, mas ele não deu qualquer sinal disso. Suas mãos estavam relaxadas, seus ombros, soltos, mas por dentro ele sentia o peso das palavras do sacerdote como uma pedra esmagando seu peito.
"Respeito não é dado. É conquistado," pensou ele. Era algo que sua mãe havia dito a ele uma vez, em um tom que era ao mesmo tempo severo e resignado. Mas ele agora se perguntava se esse respeito, uma vez perdido, poderia realmente ser reconquistado.
Conforme avançavam pelo corredor iluminado, Aaron começou a notar mudanças sutis, mas inegáveis. O fluxo constante de cultivadores que antes cruzavam seu caminho diminuíra até cessar completamente. O silêncio tornou-se absoluto, quebrado apenas pelo eco suave dos passos no chão polido. O ar ali era diferente – mais denso, quase opressivo. Carregava uma energia que não era visível, mas que se fazia sentir, uma presença invisível que parecia observar cada movimento deles.
Ao final do corredor, uma imponente porta dupla branca se destacava, tão alva que parecia feita de ossos polidos. Delicados entalhes dourados adornavam sua superfície, formando padrões intrincados que pareciam mover-se sob a luz difusa, como se vivos. Aaron parou por um instante, observando os detalhes, antes de sentir o aperto familiar na mão de Ethan. Ele olhou para o irmão e viu algo incomum: medo. Até Ethan, normalmente curioso e ávido por explorar, estava visivelmente apreensivo.
O sacerdote deteve-se diante da porta, erguendo a mão com a mesma tranquilidade meticulosa que empregara em cada gesto até então. Quando seu braço se levantou, o ar ao redor pareceu tremer, como se uma força invisível estivesse sendo convocada. Ondulações suaves emanaram de seus dedos, viajando até a porta. Um clique ressoou, baixo, mas inconfundível, como o som de uma corrente sendo rompida. As portas começaram a se abrir com um movimento lento e deliberado, revelando o que havia além.
— Vocês podem entrar, — disse o sacerdote, recuando ligeiramente e fazendo um gesto com a mão para que os garotos avançassem.
Aaron deu um passo hesitante à frente, seguido de perto por Ethan. Ele parou assim que cruzou o limiar, os olhos arregalados pela visão que se desdobrava à sua frente.
O santuário era de tirar o fôlego. As paredes, feitas de mármore branco cintilante, não apenas refletiam a luz, mas pareciam emiti-la, preenchendo o ambiente com um brilho dourado suave. Colunas majestosas erguiam-se ao longo do salão, mas elas não eram sólidas como as de um templo comum. Cada uma se abria para revelar um jardim encantado além, como janelas para outro mundo.
Apesar do inverno lá fora, o santuário estava repleto de vida. Árvores de folhas douradas e azuladas balançavam levemente, mesmo sem vento, enquanto suas raízes se entrelaçavam ao longo de riachos cristalinos que serpenteavam pelo chão. Flores de pétalas luminosas brotavam entre as raízes, suas luzes pulsando suavemente, como corações vivos. A fragrância ali era leve, mas intoxicante – uma mistura de frescor, energia espiritual e algo que Aaron não conseguia identificar.
No centro do santuário, uma fonte destacava-se. Pequena e delicada, ela parecia quase deslocada no meio de tamanha grandiosidade, mas havia algo hipnotizante nela. Sua água era tão límpida que parecia feita de luz líquida, e no centro flutuava uma única folha verde, imóvel, apesar do suave movimento da água ao redor.
— Este lugar é… vivo, — sussurrou Aaron, incapaz de falar mais alto, como se a própria voz pudesse quebrar o encantamento do ambiente.
Enquanto o príncipe ainda absorvia o cenário à sua frente, um som baixo e ressonante ecoou atrás dele. Ele virou-se rapidamente, assim como Ethan, apenas para ver as portas se fecharem com um movimento suave, mas definitivo.
Foi então que ambos notaram a transformação do sacerdote.
Ele ainda usava as mesmas vestes longas e luxuosas, brancas como neve, e seus cabelos ainda caíam em ondas perfeitas sobre os ombros. Mas o homem em pé diante deles não era o mesmo que os trouxera ali. Sua postura era diferente – mais alta, mais imponente, como se um peso invisível houvesse sido removido de seus ombros. As rugas que haviam marcado seu rosto desapareceram, substituídas por uma pele lisa e brilhante, quase etérea. Seus traços, antes comuns, agora eram formosos, quase divinos. E seus olhos... havia algo neles, uma luz interior que não pertencia a um mero mortal.
Aaron piscou, seus olhos fixos na figura diante dele. Sua mente tentava, sem sucesso, reconciliar o homem que estava ali com o sacerdote que os conduzira até o santuário. Finalmente, ele encontrou sua voz, carregada de incredulidade:
— Onde está o velho que nos trouxe até aqui?
O homem – ou o que quer que ele fosse agora – franziu ligeiramente o cenho, um traço de desagrado rompendo a máscara de calma que ele vestia tão bem.
— Por favor, não me ofenda, jovem príncipe, — respondeu ele, sua voz agora mais profunda, mas ainda controlada, como o som de um rio fluindo lentamente. — Continuo sendo a mesma pessoa.
Aaron o observou por um longo momento, enquanto tentava decifrar as nuances daquela resposta. Havia algo na postura do homem, na forma como seus traços perfeitos pareciam quase artificiais, que o deixava inquieto. Ao seu lado, Ethan parecia congelado entre a surpresa e o nervosismo, seus olhos fixos no sacerdote rejuvenescido como se ele fosse uma visão saída de algum conto antigo.
— Então, quem é você… de verdade? — pressionou Ethan, sua voz hesitante, mas cheia de uma curiosidade que Aaron reconhecia bem.
O homem inclinou levemente a cabeça, como se a pergunta fosse inevitável. Ele começou a caminhar em direção à fonte no centro do santuário, os passos silenciosos sobre o piso impecável. O som quase imperceptível parecia amplificado pelo silêncio ao redor.
Conforme seguiam o sacerdote, Aaron sentiu o ar mudar. Tornou-se mais frio, mais denso, como se carregado por uma força invisível que pesava sobre seus ombros. Sua respiração formava pequenas nuvens à sua frente, e o contraste entre o calor reconfortante do santuário e a lembrança cortante do inverno lá fora fazia sua pele arrepiar-se.
A fonte, agora mais próxima, parecia um portal para outro mundo. Pequena e delicada, com bordas de pedra branca esculpida em padrões tão intricados que pareciam ganhar vida sob a luz dourada do ambiente. No centro, uma única folha pairava sobre a superfície da água. Não balançava, não flutuava; estava simplesmente ali, imóvel, como se desafiasse a lógica.
A água ao redor da folha tinha um brilho prateado, com ondulações suaves que pareciam sincronizadas com uma pulsação invisível. Ela irradiava um calor discreto, quase convidativo, que contrastava com o frio que permeava o resto do santuário. Aaron sentiu um formigamento na pele, uma sensação que o fez instintivamente recuar um passo.
Xerxes parou à beira da fonte, seu semblante calmo e sério. Mesmo em sua forma rejuvenescida, havia algo nele que lembrava o idoso que os guiara até ali. Ele ainda exalava sabedoria e bondade, mas havia também uma força latente, como se aquele homem pudesse transformar-se em algo terrível e indomável se provocado.
— Meu nome não é importante, mas podem me chamar de Xerxes, — disse ele, sua voz ecoando levemente no santuário. — Sou um dos Filhos da Luz¹, um dos poucos que ainda servem diretamente ao deus do Sol... ou ao que resta de sua luz.
Aaron franziu a testa, finalmente encontrando sua voz.
— Então… por que estava nos guiando como um simples sacerdote?
Xerxes olhou brevemente por cima do ombro, um sorriso sutil surgindo em seus lábios.
— Porque as aparências podem ser enganosas, príncipe, — respondeu ele, sua voz agora tingida de algo que Aaron não conseguia identificar. Ironia, talvez, ou um leve toque de desafio. — Nem tudo no Império do Sol é o que aparenta ser.
Ele virou-se completamente, posicionando-se ao lado da fonte com uma tranquilidade que parecia cuidadosamente ensaiada. Seus braços cruzaram-se atrás das costas, e ele inclinou a cabeça para observar os dois garotos.
— Esta é a Fonte dos Elementos, — começou Xerxes, sua voz suave, mas carregada de autoridade. — Um lugar de conexão direta com o poder que rege este mundo. A folha que vocês veem é um fragmento da energia de Kallisto.
Aaron e Ethan trocaram olhares, mas nenhum deles falou. Xerxes continuou, seus olhos fixos na fonte como se ela também fosse uma ouvinte atenta.
— A folha está conectada aos elementos fundamentais: água, terra, fogo, vento, luz e sombras. Quando alguém toca na fonte, ela responde à sua essência, revelando sua afinidade com um ou mais desses elementos.
Ethan inclinou-se levemente, fascinado pela folha flutuante.
— E se… não tivermos afinidade? — perguntou ele, sua voz tremendo ligeiramente, mas ainda carregada de curiosidade.
Xerxes voltou-se para ele, um sorriso gentil curvando os lábios, mas seus olhos mantinham-se insondáveis, como águas profundas demais para enxergar o fundo.
— Este lugar é repleto de poder espiritual, a energia primordial que permeia tudo. Ele reconhece aqueles que são dignos de portar seu poder. Se não possuíssem aptidão, jamais teriam conseguido passar pelas portas do santuário.
Ethan piscou, atordoado.
— Isso significa que… quando entramos aqui…?
Xerxes inclinou levemente a cabeça em assentimento.
— Vocês já estavam sendo testados.
Aaron permaneceu onde estava, imóvel como uma estátua, mas seu olhar estava fixo na folha. As palavras de Xerxes reverberavam em sua mente como um sino de alarme. Ele sabia exatamente o que a fonte revelaria se ele tocasse a água. Ele sabia que sua afinidade era incomum, que sua conexão com o elemento da luz era inconfundível.
“O poder do Sol.”
A frase girava em sua mente como um eco interminável, como uma sentença já proclamada. Aaron sentiu um nó apertar-se em seu estômago. Ninguém podia saber. Não ali. Não agora.
— Eu não vou fazer isso, — disse Aaron de repente, sua voz firme, mas baixa, quase um sussurro.
Ethan olhou para ele, confuso, mas também preocupado.
— Aaron... por quê?
— Eu disse que não vou fazer isso! — repetiu Aaron, sua voz elevando-se, mas ainda carregada de tensão.
Xerxes inclinou a cabeça, suas sobrancelhas franzindo-se levemente, como se estivesse tentando decifrar a súbita resistência do jovem príncipe.
— Príncipe Aaron, não há motivo para temer a fonte. Ela não julga. Apenas reflete a verdade.
— E é exatamente isso que eu não quero, — murmurou Aaron, desviando o olhar, sua voz quase quebrando no final.
— Há algo que teme ser revelado? — perguntou Xerxes, seus olhos fixos no garoto como se pudessem perfurá-lo.
Aaron não respondeu imediatamente. Ele sentia o suor frio formar-se em sua testa, apesar do ar gélido que permeava o santuário. Seus punhos cerraram-se ao lado do corpo, como se quisesse prender alguma emoção antes que ela escapasse.
Ethan observava a troca em silêncio, mas havia algo em sua expressão – um vislumbre de compreensão. Ele franziu os lábios, como se quisesse falar, mas escolheu permanecer calado.
Finalmente, Aaron soltou um suspiro curto, quebrando o silêncio.
— E se eu não quiser que minha “verdade” seja mostrada?
— Não é minha intenção forçá-lo, príncipe. Este é um lugar de descoberta, não de imposição. — Xerxes fez uma pausa, permitindo que suas palavras ressoassem. — Mas saiba disto: o que quer que aconteça aqui, ficará entre nós.
Ele ergueu uma mão, seus dedos quase tocando a superfície da água, e continuou, sua voz agora imbuída de uma estranha solenidade:
— Prometo, em nome de Kallisto, que nada será revelado sem o seu consentimento.
Aaron sentiu o peso daquelas palavras, mas o que realmente o consumia não era o que o sacerdote dizia. Era o que ele sabia que sua mãe esperava dele. Ele não precisava de mais explicações para entender por que ela os havia enviado ali.
“Ela desconfia.”
O pensamento fez sua mente acelerar. Ele sabia o que havia feito na floresta, sabia que o poder que usara não podia ser escondido para sempre. Mas ali, naquele momento, ele ainda podia evitar. Ainda podia manter o que tinha dentro de si.
"Se ela souber... Se alguém souber..."
Xerxes permanecia calmo, sua postura inabalável como a de um monólito. Ele parecia alheio à tempestade que fervilhava na mente de Aaron, mas Aaron não se deixava enganar. O homem era um Oficial Celestial, e nada em suas palavras ou ações era casual.
— Minha mãe… — começou Aaron, sua voz baixa, mas carregada de hesitação. Ele raramente hesitava, mas o peso daquela pergunta parecia contê-lo. — O que ela disse a você sobre mim?
Xerxes ergueu uma sobrancelha, a surpresa cintilando em seus olhos por um instante antes de desaparecer atrás de sua máscara de serenidade.
— Nada específico, príncipe, — respondeu ele com cuidado. — Apenas que era hora de vocês conhecerem suas capacidades.
Aaron estudou o rosto do homem, buscando sinais de duplicidade, mas encontrou apenas a calma característica de alguém acostumado a carregar segredos. Ainda assim, ele não confiava nele. Xerxes não era um homem comum. Ele sabia mais do que dizia, Aaron estava certo disso.
— Não é incomum para os herdeiros da linhagem imperial passarem por este teste, — continuou Xerxes, suas palavras meticulosamente medidas. — Já fiz isso com todos os seus meios-irmãos.
Aaron franziu levemente a testa, mas a curiosidade relutante o levou a perguntar:
— E o que descobriu?
Xerxes cruzou os braços, seu olhar firme, mas sem hostilidade.
— Alguns possuíam afinidade com os elementos, embora a maioria fosse comum, sem nada que os diferenciasse. Alguns… nem conseguiram passar da porta que acabamos de cruzar.
O silêncio que se seguiu foi preenchido apenas pelo som suave da água na fonte. Então, Ethan, que até então parecia hesitante, arriscou-se a falar, sua voz tímida, mas carregada de lembrança.
— Eu pensei que pelo menos Dylan conseguiria, — disse ele suavemente, olhando para Xerxes.
O sacerdote inclinou a cabeça levemente, o interesse surgindo em seu semblante.
— Dylan?
Ethan assentiu, seu olhar ficando distante, como se estivesse vasculhando as memórias de uma vida há muito esquecida.
— Nosso irmão, cinco anos mais velho. Na época, ele era... confiante, — disse Ethan, escolhendo as palavras com cuidado. — Todos tinham certeza de que ele era digno. Ele mesmo fazia questão de dizer isso.
Aaron permaneceu em silêncio. Ele estava interessado, mas preferia observar a conversa do que participar dela. Era raro Ethan falar sobre o passado, especialmente sobre os irmãos que quase não conheciam.
— Ele costumava se gabar da atenção e dos presentes que recebia de nosso pai — continuou Ethan, sua voz um pouco mais firme. — Por causa de sua mãe, uma concubina. Ele dizia que os presentes eram sinais de que ele estava destinado a ser o próximo imperador.
Ethan deixou escapar um sorriso breve, quase triste.
— Engraçado como tudo isso mudou depois do teste. Descobriram que sua afinidade era com terra, — disse ele, o tom carregado de algo que não era exatamente deboche, mas também não era compaixão. — Não com o poder do Sol. Depois disso… bom, ele mudou.
Xerxes assentiu lentamente, como se já tivesse visto isso antes, muitas vezes.
— Muitos que passam por este teste enfrentam um choque de realidade, — disse ele, sua voz carregada de algo que quase parecia pesar. — O príncipe Dylan talvez acreditasse que o poder do Sol era seu destino, mas o Sol é seletivo. Ele escolhe a quem servir.
Ethan inclinou a cabeça, ponderando aquelas palavras. Aaron, no entanto, permaneceu imóvel, mas seus punhos cerraram-se discretamente. Ele voltou os olhos para a fonte, sentindo a pressão aumentar com cada momento que passava ali.
Xerxes observou os dois príncipes em silêncio por um momento antes de continuar, seu tom mais sério agora.
— O poder do Sol é visto como a marca do verdadeiro governante. Um imperador digno não pode governar sem ele. Entre todos os herdeiros da casa imperial, apenas três passaram no teste e provaram sua afinidade com a luz de Kallisto. Darius, o príncipe herdeiro, Markus, o protetor da muralha, e Dalila, a guerreira, — respondeu Xerxes, sua voz imperturbável. — Cada um deles possui uma conexão única com a luz. Eles são vistos como líderes naturais, símbolos de força e esperança para o império.
Ethan franziu o cenho, como se algo em suas palavras não fizesse sentido.
— Até mesmo Darius? — perguntou ele, a dúvida evidente em sua voz.
Xerxes sorriu levemente, mas o sorriso era frio, distante, sem alcançar os olhos.
— Por que não? O príncipe Darius é poderoso. Ele trouxe muitas conquistas ao Império do Sol com seu poder, o Sol Cruel.
— E onde está a vantagem nisso? — Aaron perguntou, dando um passo à frente, sua voz cortante, carregada de uma raiva controlada. — O que exatamente significa “ser digno”? Carregar o peso de um império podre e fingir que tudo está bem?
O sorriso de Xerxes desapareceu como uma chama apagada. Ele não respondeu imediatamente, mas seus olhos fixaram-se nos de Aaron, estudando-o, avaliando-o, enquanto o silêncio entre eles crescia pesado e opressor.
Ethan arregalou os olhos, visivelmente alarmado com a insolência do irmão. Ele demorou apenas um instante para reagir, mas foi o suficiente para que o ambiente parecesse ainda mais carregado.
— Aaron! — ele sussurrou, com uma mistura de incredulidade e medo.
Então, como se movido por um instinto de proteção, Ethan deu um passo à frente, quase se colocando entre Aaron e Xerxes.
— Por favor, não leve isso em consideração, senhor, — disse ele rapidamente, sua voz baixa, mas ansiosa. Ele lançou um olhar desesperado para Aaron antes de voltar-se para o sacerdote. — Meu irmão… ele não quis dizer isso.
O sacerdote manteve-se imóvel por mais um momento, seus olhos ainda fixos em Aaron, mas a intensidade em seu olhar suavizou-se ligeiramente. Ele exalava calma, mas era o tipo de calma que precede uma tempestade, e isso só aumentava o desconforto de Ethan.
Finalmente, Xerxes quebrou o silêncio, sua voz baixa, mas carregada de significado.
— Isso depende de como você define "dignidade", jovem príncipe, — disse ele, como se Ethan não tivesse sequer falado. Seu tom era grave, pesado, como se ecoasse os séculos que aquele templo havia testemunhado.
Aaron manteve o olhar firme, sem recuar, mas o ar ao seu redor parecia ter ficado mais frio. Ethan, no entanto, parecia prestes a protestar novamente, mas decidiu morder a língua, mantendo-se no lugar enquanto a tensão entre seu irmão e o sacerdote pairava no ar.
Caros leitores,
Entre as sombras das grandes muralhas e a luz dourada que emana do poder de Kallisto, há um momento de tensão e introspecção no santuário onde Aaron e Xerxes se enfrentam, não com espadas, mas com palavras. Esta cena, como tantas outras que amo escrever, é um confronto entre crenças, dúvidas e o peso de tradições antigas que moldam, mas também aprisionam, os personagens.
Aaron é jovem, mas carrega dentro de si o peso de uma vida passada e as cicatrizes de um império que ele sabe ser frágil, corrupto e, em muitos aspectos, perdido. Ele pergunta: "O que significa ser digno?" Não porque espera uma resposta fácil, mas porque teme o que essa resposta poderia significar para ele. Em sua mente, a dignidade parece inseparável da cumplicidade, da aceitação de um sistema que, aos seus olhos, é podre.
Xerxes, por outro lado, não é um tolo. Ele não está apenas repetindo as palavras de uma religião antiga ou as doutrinas de um sistema imperial. Ele fala com a sabedoria de alguém que viu gerações tentarem e falharem, mas que ainda acredita na ordem como um mal necessário, talvez até como um bem, mesmo que imperfeito. Para Xerxes, dignidade é uma questão de perspectiva, uma qualidade fluida que depende tanto de quem a busca quanto do que está em jogo.
Essa conversa entre Aaron e Xerxes não é apenas sobre o poder do Sol ou as tradições do Império. É sobre como indivíduos se posicionam diante de sistemas maiores do que eles mesmos, sobre a tensão entre o dever imposto e a identidade escolhida. Aaron representa o espírito rebelde, aquele que questiona e desafia, mesmo que ainda não saiba exatamente o que está disposto a defender. Xerxes, por sua vez, é o guardião do equilíbrio, alguém que entende que nenhum sistema é perfeito, mas que também acredita que o caos é um preço alto demais a se pagar pela mudança.
Eu amo criar momentos como este porque eles nos desafiam a pensar em nossas próprias vidas e sistemas. Quando questionamos o que significa "ser digno" – seja como líderes, como membros de uma sociedade ou até como indivíduos –, descobrimos que a resposta não é tão simples. Ela muda de acordo com quem faz a pergunta, com o contexto e com o que está em jogo.
E você, leitor, de que lado se encontra? É Aaron, o jovem príncipe que vê as falhas e questiona tudo, mesmo sem saber exatamente onde suas dúvidas o levarão? Ou é Xerxes, o guardião de um sistema imperfeito, mas que acredita que mesmo uma ordem imperfeita é melhor do que o vazio da anarquia?
Seja qual for sua resposta, lembre-se de que, no final, essas perguntas não são apenas dos personagens. São nossas também.
Com gratidão e curiosidade,
S.Y Ravena
GLOSSÁRIO:
Os Oficiais Celestiais¹:
Comumente chamados pelos habitantes do Império do Sol de “Filhos da Luz”, os Oficiais Celestiais são figuras raras e lendárias, representantes mais próximos da luz de Kallisto. São mestres supremos da cultivação espiritual, capazes de manipular os elementos de maneiras que transcendem até mesmo os limites dos Reverendos Imortais. Sua presença é cercada por reverência e mistério, pois carregam uma autoridade que não depende de títulos, mas da conexão inigualável com o poder divino. Embora sejam declaradamente servos do Império do Sol, muitos acreditam que seus verdadeiros juramentos pertencem à luz de Kallisto, o que os torna tanto aliados indispensáveis quanto figuras de receio para aqueles que buscam o trono.
Os Reverendos Imortais²:
Os Reverendos Imortais estão um degrau abaixo dos Oficiais Celestiais na hierarquia espiritual, mas ainda são cultivadores de habilidades extraordinárias. Responsáveis por servir e apoiar os Oficiais Celestiais, eles são numerosos em comparação aos seus mestres e desempenham papéis essenciais na manutenção do equilíbrio espiritual e político do império. Embora sua longevidade e poder sejam impressionantes – com vidas que podem durar séculos –, eles ainda almejam alcançar o status mais elevado de Oficial Celestial. No Império do Sol, os Reverendos Imortais são respeitados como líderes espirituais e guias práticos, mas nunca deixam de carregar consigo a ambição de ascender a algo maior.
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