Capítulo 11 - Confissões e Conflitos
“Verdades têm um preço, e a maior delas é que poder nunca é dado sem que se exija algo em troca”
As portas duplas de carvalho esculpido cederam com um gemido longo e pesaroso. O ar gelado que irrompeu do jardim interior foi um golpe traiçoeiro, uma mão invisível que arrancou o fôlego de Aaron. Ele puxou o manto de lã grossa contra o corpo, mas o frio era impiedoso, deslizando entre as fibras como serpentes gélidas que se enroscavam em seus ossos.
Diante deles, o jardim parecia morto. Não era uma morte serena ou gentil, mas algo áspero e cruel, como se a própria terra tivesse sido amaldiçoada. Árvores esqueléticas erguiam seus galhos retorcidos para o céu cinzento, parecendo mãos deformadas implorando por um calor que tardaria a retornar. Os arbustos, outrora moldados com precisão quase obsessiva, agora mais lembravam túmulos negligenciados. No centro, o lago permanecia congelado; sua superfície de gelo irregular refletia a luz pálida como um espelho rachado por um punho furioso. Cada detalhe clamava por beleza e ordem, mas tudo o que Aaron via era decadência e uma resistência inútil contra a força implacável do inverno.
Enquanto caminhavam, os passos deles eram amortecidos pela neve recém-caída, produzindo um som abafado que, paradoxalmente, ecoava no vazio ao redor. As criadas seguiam a uma distância respeitosa, suas cabeças inclinadas e mãos ocupadas em gestos disciplinados. Entretanto, Aaron percebeu algo estranho na postura delas: um desconforto pairava no ar como um espectro invisível. Não era o frio que as perturbava, disso ele tinha certeza.
Ethan caminhava à frente, calado como uma sombra. O silêncio do irmão era mais opressor do que qualquer palavra que ele pudesse proferir. Sempre que Ethan se calava por tanto tempo, Aaron sabia que algo estava fermentando em sua mente.
Então, Ethan parou. O movimento foi tão abrupto que Aaron quase colidiu com ele, interrompendo seus pensamentos dispersos. As criadas pararam também, trocando olhares rápidos e ansiosos.
— A partir daqui, iremos sozinhos. — A voz de Ethan soou clara, mas havia nela uma doçura ensaiada. Ele se virou para as criadas com um sorriso gentil, quase reconfortante, que parecia ensaiado demais para ser sincero.
Aaron estreitou os olhos, desconfiado. Algo estava errado. O comportamento do irmão não combinava com os olhares que ele havia lançado durante o retorno do gabinete.
As criadas hesitaram, seus olhares encontraram-se em um instante de silenciosa confusão. Por fim, a mais velha fez uma reverência tão baixa que parecia temer alguma punição invisível.
— Como desejar, alteza — respondeu ela, com uma voz medida e quase cerimoniosa, antes de recuar com as outras, desaparecendo no corredor.
Assim que as criadas se foram, o sorriso de Ethan desapareceu, como se nunca tivesse existido. Seu rosto, por conseguinte, tornou-se rígido; os lábios cerraram-se em uma linha dura, enquanto seus olhos, que antes traziam um brilho amável, agora estavam frios e avaliadores, fixando-se em Aaron com uma intensidade quase desconcertante.
— O que deu em você? — perguntou Aaron, franzindo a testa.
Ethan não respondeu de imediato. Ele apenas o fitou, como se tentasse enxergar algo além do que seus olhos poderiam revelar. Quando finalmente falou, sua voz era baixa, quase um sussurro, mas carregada de uma gravidade que fazia Aaron sentir-se pequeno, como um menino diante de um pai impiedoso.
— O que deu em mim? — Ethan repetiu, avançando um passo. Seus olhos, escuros e insondáveis, eram como poços profundos que sugavam a luz ao redor. — Não, irmão. A pergunta certa é: o que deu em você? Será que… suas lembranças retornaram?
O estômago de Aaron revirou. Ele não esperava aquela pergunta, nem a intensidade que a acompanhava.
— M-minhas lembranças? — gaguejou ele, sem saber o que responder.
“Por que essa pergunta agora?” pensou Aaron.
Ethan cruzou os braços, mas o gesto não parecia ser de proteção ou hesitação. Em vez disso, era como se ele estivesse se contendo, forçando-se a não avançar ainda mais.
— Sim — continuou Ethan, o tom ainda calmo, mas carregado de algo mais, algo que fazia a pele de Aaron arrepiar. — Tenho te testado desde o primeiro dia em que você se recuperou da sua quase morte. Acredite, você não tem se saído bem. E o que aconteceu hoje só comprova minhas suspeitas.
Aaron abriu a boca para protestar, mas nenhuma palavra saiu. Ele se sentia como um animal encurralado, embora soubesse que não deveria. Ethan era uma criança — ou deveria ser. Mas naquele momento, Aaron sentiu o peso de algo maior que os separava, algo que ele não conseguia nomear.
— Você não sabe de nada — A voz de Ethan era baixa, mas cada palavra carregava o peso de uma acusação. — Nem sobre si mesmo, nem sobre o que nos cerca. Você sequer se lembra do que fizemos no dia em que roubamos os ovos.
— Isso não é verdade — retrucou Aaron, tentando manter a voz firme; no entanto, o leve tremor em seu tom traiu sua insegurança. — Eu só... estou confuso.
Ethan riu, mas o som estava desprovido de humor. Era amargo, quase cruel. Antes que Aaron pudesse reagir, Ethan avançou. Suas mãos pequenas, porém firmes, agarraram o manto do irmão e o puxaram com uma força inesperada, surpreendendo-o.
— Confuso? — rosnou ele, as palavras gotejando fúria. Ele puxou Aaron para mais perto, os rostos tão próximos que o outro podia sentir a respiração quente em sua pele. — Você acha que sou tolo? Eu sei muito bem que você está fingindo.
Aaron tentou recuar, puxando o corpo para trás a fim de se desvencilhar, mas o aperto de Ethan era inabalável.
— Você está delirando. Talvez o frio tenha congelado sua cabeça. Quem mais eu poderia ser? — disparou Aaron, na tentativa de escapar tanto do confronto físico quanto do peso das palavras do irmão.
— No dia em que roubamos os ovos, fizemos um pacto com as feras mágicas. Esse pacto foi concretizado, e naquele momento os filhotes se tornaram nossos. E agora você age como se não soubesse de nada! — Ethan arfava, a irritação transbordava em sua voz, era quase um grito. — Tínhamos um plano, e você estragou tudo!
Por um instante, o rosto de Aaron vacilou. A dor atravessou-lhe os olhos como uma sombra fugaz antes de desaparecer. Mas foi o suficiente para Ethan perceber. Aaron afastou as mãos do irmão com um movimento brusco, mas sem a força que ele gostaria de demonstrar.
Quando finalmente ergueu os olhos, não havia mais incerteza ali. Nada que pudesse ser chamado de vulnerabilidade. Seus olhos estavam vazios, frios e impenetráveis como o gelo que cobre um lago profundo.
— Então me diga, Ethan — disse Aaron, sua voz agora tranquila, controlada, mas com uma ponta de algo ácido. — O que exatamente você quer de mim?
Ethan cerrou os punhos, e seu rosto, normalmente sereno, ficou vermelho de raiva. A fúria competia com o desespero que se acumulava em sua expressão, transformando-o em algo que Aaron quase não reconhecia.
— O que você fez com meu irmão? — gritou Ethan, os olhos arregalados, cheios de algo próximo ao pânico. — Responda, caso contrário, eu o entregarei à minha mãe!
Aaron deixou escapar uma risada baixa e seca, carregada de sarcasmo.
— Eu o matei. — a declaração de Aaron soou baixa, quase um sussurro.
Ethan estremeceu, recuando ligeiramente, mas sem conseguir desviar o olhar. Seus olhos, arregalados, estavam repletos de confusão e medo, mas ele não disse nada. Permanecia imóvel, com a respiração ofegante, tentando compreender o significado daquelas palavras.
— Aaron Albélia morreu, junto com sua ingenuidade estúpida — Aaron continuou, sua voz ganhou firmeza, cada palavra era carregada de algo profundo, arrancado das profundezas de sua alma.
— Do que você está falando? — perguntou Ethan, mas havia algo diferente em sua voz agora. A raiva ainda estava lá, mas era acompanhada por uma hesitação que ele não conseguia esconder.
— Você quer saber como é, Ethan? — Aaron deu um passo à frente, os olhos fixos no irmão, que agora dava um pequeno passo para trás, quase imperceptível. — Ser moldado até que cada traço de quem você era seja esmagado? Até que você se torne apenas o que esperam que você seja? Ser forçado a carregar algo tão grande, tão insuportável, que consome cada pedaço da sua alma até não restar mais nada?
Ethan recuou outro passo, mas Aaron avançou novamente, forçando-o a ficar onde estava. Ele não precisava levantar a voz; cada palavra vinha com o peso de uma avalanche.
— Lituris. — A palavra foi dita como veneno escorrendo de seus lábios, cheia de uma fúria fria — A Espada Sagrada. Ela traçou um caminho para mim, um caminho de dor e sofrimento. Cada momento que vivi desde então, cada escolha que fiz, cada passo que dei... tudo foi culpa da maldita espada.
Ethan congelou, a fúria que dominava seu rosto foi engolida por algo mais profundo: surpresa, quase espanto. A palavra "Lituris" parecia ecoar em sua mente, apagando momentaneamente o peso da discussão anterior. Ele piscou, confuso, as sobrancelhas se franzindo em descrença.
— Estou aqui porque ela decidiu que eu estaria. — Aaron continuou, e suas palavras saíram com uma dureza que Ethan nunca ouvira antes. — Porque ela achou que seria divertido me quebrar e ver o que eu poderia me tornar. Lituris me ofereceu uma segunda chance, mas nada que ela dá é de graça. — Aaron inclinou a cabeça, as palavras saindo num tom frio. — Não sabia o que ela havia pego até despertar naquela cama, moribundo e ouvindo conspirações.
— Suas memórias. — A voz de Ethan era baixa, mas havia algo na forma como ele pronunciou as palavras que fez o estômago de Aaron se revirar. — Aaron, me diga… como ela é? A espada.
Aaron sentiu o corpo enrijecer. Não queria falar sobre aquilo. Não queria se lembrar. Mas as palavras vieram, como se fossem arrastadas para fora de sua mente contra sua vontade.
— A Espada Sagrada… — ele começou, sentindo como se o frio ao seu redor tivesse encontrado um caminho para dentro dele. — Não é como as armas comuns. Quando você olha para ela, é como se estivesse vendo algo que não deveria existir. Algo feito para um deus.
Aaron engoliu em seco, uma onda de desconforto o atingiu. Ele desviou o olhar, mas as palavras continuaram saindo.
— Quando ela te toca — Ele parou, as mãos involuntariamente fechando-se em punhos.
— O que acontece? — Ethan perguntou, a voz ansiosa.
Aaron fechou os olhos, como se isso pudesse afastar as memórias que vinham à tona. Ele podia sentir a pressão da espada contra seu corpo, o frio que queimava sua pele, a aura que parecia envolver seu corpo como um manto sufocante.
— Ela faz você se lembrar. — A resposta saiu num sussurro, carregada de uma dor que Ethan não podia compreender.
— Lembrar de quê? — insistiu Ethan, a curiosidade transformando-se em algo mais próximo do medo.
— De tudo. — Aaron abriu os olhos, mas seu olhar estava vazio, como se ainda estivesse preso nas lembranças. — De cada erro, de cada falha, de cada momento em que você não foi digno.
O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Ethan parecia prestes a dizer algo, mas Aaron o interrompeu.
— Não importa o que você faça, ela pesa mais do que você pode suportar. Não importa quão forte você seja, a espada… ela te julga. E ela faz você pagar.
Aaron parou, respirando fundo como se tivesse acabado de escapar de um lugar sufocante. Mas era uma mentira. As memórias ainda estavam lá, vivas e implacáveis.
— Esta… é realmente Lituris. — As palavras de Ethan saíram lentas, como se carregassem um peso maior do que ele pudesse suportar.
— Você a conheceu? — perguntou Aaron, seu cenho franzido.
Ethan hesitou, e naquele pequeno instante, Aaron pôde ver algo nos olhos do irmão. Não era apenas curiosidade. Era conhecimento, um brilho que não deveria estar ali.
— Sim. — Ethan finalmente respondeu, a voz tão baixa que quase se perdeu no ar gelado. — Quando estava prestes a morrer, por causa do envenenamento… ela apareceu para mim.
Ethan respirou fundo, como se estivesse reunindo coragem.
— Ela me fez uma proposta. Não me lembro de tudo… eu estava muito fraco… — Ele passou a mão pelos cabelos negros, ainda salpicados de neve. — Mas ela falou que poderia me salvar, só que haveria um preço.
Aaron estreitou os olhos, o desconforto crescia em seu peito. Isso era típico de Lituris. Ela nunca dava algo sem antes pedir algo em troca.
— E você aceitou? — A pergunta saiu antes que ele pudesse se conter.
Ethan levantou o rosto, seus olhos encontrando os de Aaron. Por um momento, eles ficaram em silêncio, uma tempestade invisível se formando entre os dois.
— Adivinha quem tomou o antídoto?
— Então não houve acordo…
— Você o tomou, Aaron.
O vento voltou a soprar, carregando consigo pequenos redemoinhos de neve. Ethan parecia aliviado por ter falado, mas Aaron estava mais inquieto do que nunca. Ele conhecia Lituris bem o suficiente para saber que, se ela se aproximara de Ethan, havia algo que ela queria.
— E então? — perguntou Ethan, quebrando o silêncio. — Você acredita em mim?
Aaron não respondeu de imediato. Ele desviou o olhar, fixando-o no horizonte, onde as árvores se curvavam sob o peso da neve.
— Eu acredito. — As palavras saíram lentas, carregadas de relutância. — Mas… o que você deu em troca de sua vida?
Ethan inclinou a cabeça, seu olhar suavizando por um momento, mas ainda carregado de cautela. Ele levou a mão ao ombro de Aaron, apertando-o levemente.
— Desculpe, não posso comentar sobre isso. Faz parte do acordo.
Aaron sentiu o toque do irmão, mas não respondeu de imediato. Ele mordeu o lábio, ponderando suas próximas palavras. Ethan o olhava com expectativa, mas havia algo mais ali — uma fagulha de dúvida, talvez até de medo.
Eles estavam expondo suas cartas. Ethan havia oferecido algo, mesmo que não dissesse exatamente o que. E agora, era justo que Aaron retribuísse.
Finalmente, ele falou:
— O que aconteceu comigo é bem mais complexo do que imagina. — A voz de Aaron saiu baixa, quase um murmúrio, mas carregada de um peso que parecia dobrar seus ombros. — Eu... eu conheço o futuro.
Ethan estreitou os olhos, mas não disse nada.
Aaron respirou fundo, lutando para manter o controle enquanto as palavras saíam.
— Não estou falando de sonhos ou visões, Ethan. Estou falando de algo real. Eu vivi o futuro. Cada segundo dele. Cada escolha que fiz, cada erro... Vi reinos caírem, vi sangue nas ruas e ouvi gritos que nunca cessavam.
Ele fez uma pausa, os olhos se desviando para o lago congelado à frente, sua superfície refletindo um céu cinzento e opaco. Quando voltou a falar, sua voz estava mais firme, mas carregava uma amargura palpável.
— Vi mortes que não consegui impedir, traições que nunca perdoei. Vi tudo ruir, como se o próprio mundo fosse feito de pó. Mas... em lugar algum eu vi você. Ethan, nesse lugar, você não existia.
O silêncio que se seguiu era tão denso quanto o frio ao redor deles. Ethan o encarou, mas seus olhos, geralmente cheios de expressividade, estavam agora tão indecifráveis quanto uma parede de gelo.
Aaron sentiu o peso das próprias palavras, mas não desviou o olhar. Ele esperava uma reação — qualquer coisa — do irmão, mas Ethan permaneceu imóvel.
***
A Imperatriz nunca fazia nada sem um propósito. Aaron sabia disso melhor do que ninguém. Para ela, compaixão era uma máscara conveniente, usada apenas quando servia a uma causa maior. Deixá-los permanecer no Palácio Hibisco, mesmo que por algumas semanas, não passara de uma escolha prática.
Os corredores do palácio ainda guardavam o cheiro metálico do sangue, não importava quantas vezes tivessem lavado as paredes ou queimado os tapetes. O ataque dos rebeldes não era apenas uma memória; era uma cicatriz aberta, visível em cada pedra e em cada silêncio desconfortável entre os servos. Mas Grace não acreditava em cicatrizes. Para ela, lembranças eram ervas daninhas, e o único caminho sensato era arrancá-las pela raiz, não importa o custo.
Kaylus se oferecera para levá-los pessoalmente de volta ao Palácio Gardênia, um gesto que Aaron considerara suspeito desde o início. O irmão nunca fazia nada sem razões ocultas, e Aaron sabia que não era apenas cortesia. Grace, no entanto, recusou quase de imediato. Em vez disso, ela escolheu mandá-los ao Palácio Lótus, sob o pretexto de que Lilian seria a protetora ideal para os dois.
Aaron podia sentir o verdadeiro propósito por trás da decisão, mesmo que ninguém tivesse ousado dizê-lo em voz alta. Mandá-los ao Lótus era mais do que uma simples escolha logística. Era uma jogada.
Kaylus era um peão valioso, mas Grace nunca confiava plenamente em ninguém. O príncipe, que havia retornado temporariamente das terras próximas à Muralha Fronteiriça, agora receberia mais uma tarefa. Cuidar dos gêmeos, enquanto deveria estar planejando sua volta ao fronte.
Para Kaylus, era um teste de lealdade. Para Aaron, era um castigo disfarçado de preocupação.
Aaron apertou o casaco contra o corpo enquanto olhava para a porta entalhada do escritório de Kaylus. O frio do Palácio Lótus parecia se infiltrar nas paredes de mármore, tornando o ar pesado e implacável, mesmo sob o calor suave dos núcleos de luz.
Os corredores eram amplos, com tetos altos adornados por frisos detalhados e candelabros suspensos, cada um sustentando esferas mágicas que pulsavam com uma luz constante e quente, sem chama. Os núcleos flutuavam dentro de estruturas douradas, emitindo um brilho branco com tons sutis de âmbar, que suavizavam a opulência do mármore polido e dos tapetes espessos que cobriam parte do piso.
Ethan estava calado. Não era o silêncio confortável de dois irmãos que entendiam um ao outro sem palavras. Era o tipo de silêncio que pesava, carregado de pensamentos que Aaron não conseguia alcançar.
— Bata na porta. — Aaron quebrou o silêncio, cruzando os braços enquanto olhava para o irmão.
Ethan permaneceu imóvel por um momento, com os olhos fixos nos entalhes detalhados da madeira. Havia algo em seu olhar que Aaron não gostava, uma concentração teimosa que parecia mais sobre evitar algo do que observar.
— Ethan. — Aaron insistiu, o tom mais afiado agora. — Bata na porta. E com força, para que ele saiba que estamos aqui.
Ethan finalmente olhou para o irmão, os olhos ligeiramente estreitados, mas sem raiva aparente. Era mais como se estivesse decidindo se valia a pena discutir.
— Ele não está lá. — A resposta veio calma, mas carregada de uma certeza que Aaron achou irritante.
— Como você sabe? — perguntou Aaron, inclinando a cabeça levemente, como se desafiasse a lógica do irmão.
Ethan deu de ombros.
— Porque hoje Kaylus retomará sua missão. Esqueceu? Ele só voltou para conversar com a mãe sobre os ovos.
Aaron soltou um suspiro pesado e se aproximou da porta.
— Não importa. Bata de qualquer jeito.
Ethan não se moveu. Ele apertou os lábios e desviou o olhar novamente, mas Aaron conhecia aquele gesto. Não era hesitação; era teimosia.
— Você acha que ele vai se importar? — Ethan perguntou finalmente, sua voz baixa, quase um murmúrio.
Aaron apertou os lábios, estudando o irmão. Ele não sabia exatamente o que Ethan queria dizer com aquilo, mas havia algo em seu tom que o incomodava profundamente.
— Não importa se ele se importa ou não — respondeu Aaron, depois de um momento. — Estamos aqui para falar com ele, e ele vai ouvir.
Ethan riu, mas não foi um som alegre. Foi seco, breve, quase amargo.
— Então bata você.
Aaron não hesitou. Levantou a mão e bateu na porta com força. O som ecoou pelo corredor vazio, um trovão que parecia deslocado naquele ambiente frio e controlado.
Ethan encostou-se à parede ao lado da porta, os braços ainda cruzados, e lançou a Aaron um olhar exasperado.
— Ele não vai responder.
— Ele vai — Aaron afirmou, cruzando os braços novamente enquanto esperava. — É pelo nosso futuro Ethan. Não podemos desistir agora.
Antes que Ethan pudesse fazer outro comentário, o som de uma tranca sendo girada cortou o ar. A porta se abriu lentamente, revelando Kaylus.
Seu cabelo estava bagunçado, e sua camisa de linho branca tinha os botões parcialmente abertos, como se ele tivesse dormido com ela. As sombras sob seus olhos sugeriam cansaço, e sua postura, ligeiramente inclinada, reforçava a impressão de exaustão.
Kaylus os encarou por um momento, os olhos semicerrados, antes de finalmente murmurar, a voz rouca e arrastada, carregando traços de cansaço e irritação:
— O que estão fazendo aqui?
Aaron hesitou. Sob o olhar do irmão mais velho, ele sentiu como se estivesse sendo examinado, despido de qualquer defesa. O peso daquele olhar de águia parecia maior do que ele poderia suportar sozinho. Ele deu um pequeno passo para o lado, cutucando levemente a cintura de Ethan em busca de apoio.
— Precisamos da sua permissão para visitar a capital — Ethan disse, sua voz firme, mas com um toque perceptível de desconforto. Ele mantinha a postura ereta, tentando aparentar mais confiança do que realmente sentia. — É muito importante para nós. Queremos conhecê-la e talvez... comprar algumas coisas.
Kaylus ergueu uma sobrancelha, intrigado. — Que tipo de coisas?
Ethan umedeceu os lábios, hesitando. — Livros, ervas mágicas, e...
Aaron percebeu a hesitação do irmão e sussurrou rapidamente:
— Poções.
— P-poções! — Ethan repetiu, a palavra escapou de seus lábios com certa pressa.
Kaylus soltou um suspiro profundo, empurrando a porta para abri-la completamente enquanto saía para o corredor. Ele cruzou os braços sobre o peito, seus lábios curvaram em um sorriso irônico.
— Ethan virou um porta-voz? — Sua voz carregava uma mistura de curiosidade e divertimento. Ele então voltou-se para Aaron. — Você não precisa ter medo de falar comigo. Eu sempre soube que os ovos estavam com vocês. Não é a primeira vez que me aprontam, e duvido que seja a última.
Aaron desviou o olhar, o rosto tingido de leve embaraço. Ele começou a contorcer os dedos, um hábito nervoso que o denunciava.
— Você esteve me ignorando nos últimos dias — disse ele, a voz baixa e hesitante. — Se não fosse por isso, eu já teria vindo falar com você.
Kaylus inclinou levemente a cabeça, estudando Aaron como se estivesse tentando decifrá-lo. Depois de um momento, soltou uma risada curta, desprovida de qualquer traço de humor.
— Isso não é sobre você, pestinha. — Sua voz endureceu, mas havia um toque de exaustão em suas palavras. — Não estive ignorando vocês. Só não tive tempo. Estive preso em algumas reuniões com a imperatriz e seus conselheiros, tentando resolver as pendências deixadas por Leila.
Ele inclinou o queixo levemente, os olhos fixos nos dois irmãos, como se quisesse garantir que suas palavras fossem completamente entendidas.
— Quanto a essa ideia de visitar a capital, já pararam para pensar na segurança de vocês? Ainda estamos trabalhando para identificar os infiltrados. O que farão se algo acontecer enquanto estiverem fora?
Aaron apertou os punhos, frustrado. — Não aguentamos mais ficar aqui! Não há nada para fazermos além de comer, dormir e passear. Estamos entediados! Queremos fazer algo diferente!
— Não peçam minha ajuda. — A voz de Kaylus veio grave e cortante. Ele inclinou levemente a cabeça, os olhos semicerrados, enquanto uma sombra de exaustão dançava em seu rosto. — Não vou quebrar as regras por vocês. Já me colocaram em problemas o suficiente.
Ele fez uma pausa, deixando as palavras ecoarem pelo espaço frio do corredor, como se o peso delas fosse mais importante do que qualquer resposta que pudesse vir. Quando voltou a falar, havia um toque de amargura em seu tom, sutil, mas impossível de ignorar.
— A imperatriz deixou bem claro que estou abaixo dela, e que acima de mim estão seus preciosos filhos. — Ele riu, mas o som não tinha calor, era apenas um eco seco. — Isso significa que não precisam da minha permissão para nada.
Seus olhos, escuros e intensos, desviaram-se para o chão, onde a luz suave das esferas mágicas refletia no mármore polido.
— Acho que até a minha proteção já não é necessária. Afinal, o Palácio Gardênia agora está seguro. — A palavra "seguro" foi pronunciada com um tom de sarcasmo afiado, quase venenoso. — Todos os servos foram substituídos, e a barreira de proteção foi reerguida.
Aaron sentiu o desconforto apertar seu peito como uma mão invisível, fria e implacável. Não era apenas o tom amargo na voz de Kaylus que o incomodava, mas o fato de ele ter levado tão a sério as palavras da imperatriz. A mãe tinha um talento cruel para moldar as pessoas ao seu redor, e Kaylus, com toda sua capacidade e força, havia sido humilhado sem direito a resposta.
Enquanto isso, Ethan desviou o olhar para o interior do escritório. Por uma fresta da porta ainda aberta, ele viu algo suspeito. Era rápido demais para identificar com clareza, mas o gesto furtivo de Kaylus ao fechá-la aumentou sua curiosidade.
— Enfim, vocês não precisam visitar a capital — declarou Kaylus, sua voz carregada de autoridade. — Uma nova governanta já foi escalada ao Palácio Gardênia. Eu a informarei sobre suas necessidades.
— Não se incomode, Kaylus — Ethan interveio, a voz fria, mas controlada. Ele agarrou a mão de Aaron e começou a puxá-lo pelo corredor. — Nós viemos aqui para pedir sua permissão, mas como não precisamos dela, só estamos perdendo tempo. Vamos embora, Aaron!
— M-mas, Ethan... — Aaron tentou protestar, olhando para trás, com os olhos arregalados e a voz hesitante.
Kaylus deu alguns passos à frente, parando no meio do corredor. Ele os encarou enquanto se afastavam, a frustração transparecia em seu tom:
— Eu já disse que é perigoso! — Sua voz ecoou pelo corredor vazio. — Esses teimosos…
Ethan caminhava sem olhar para trás, os passos rápidos e determinados como se quisesse deixar Kaylus e sua indignação para trás o mais rápido possível. Aaron apressou-se para acompanhá-lo, mas seu semblante carregava uma confusão que ele não conseguia disfarçar.
— Por que está agindo assim? — perguntou, quase ofegante. — Ethan, Kaylus estava certo. Nós causamos problemas. Ele tem motivos para estar irritado.
Ethan parou abruptamente, virando-se para encarar o irmão com uma expressão sombria. Seus olhos brilhavam, não de raiva, mas de uma determinação obstinada que Aaron raramente via nele.
— Talvez ele tenha razão sobre algumas coisas. — A voz de Ethan era baixa, mas carregava uma força quase perigosa. — Mas não sobre o que é melhor para nós. Eu sei o que precisamos fazer, e não é ficar aqui esperando que ele nos ajude.
Aaron piscou, surpreso com o tom firme do irmão, mas um sorriso involuntário curvou seus lábios. Ethan era previsível. Bastava ser provocado para que tomasse alguma atitude, mesmo que isso fosse contra suas próprias convicções.
Enquanto os dois avançavam pelo pátio, os olhos atentos dos guardas acompanharam cada passo. Aaron sentiu o peso dos olhares sobre si, mas Ethan parecia alheio, movendo-se com uma confiança que o irmão invejava e temia em igual medida.
— Para onde estão indo, Altezas? — perguntou um dos guardas do portão, com um olhar curioso e um tanto desconfiado.
— Estamos retornando ao nosso palácio — respondeu Ethan, sem nem se dar ao trabalho de olhar para o homem. Sua voz era firme, quase desafiadora.
O outro guarda franziu a testa, claramente desconfortável. — O príncipe Kaylus não nos notificou sobre isso.
— Algo me diz que ele não vai se importar. — Ethan respondeu, puxando Aaron pela mão enquanto cruzavam a estrada de pedra lisa, cujas bordas eram quase invisíveis sob a neve acumulada.
Os flocos caíam suavemente, dançando ao vento, cobrindo as marcas de rodas e pegadas que indicavam a passagem recente de carroças. Os irmãos caminharam em direção à trilha que se escondia sob a camada branca, um caminho estreito e sinuoso que serpenteava em direção à floresta adiante.
— Você realmente quer visitar a capital? — Ethan perguntou, virando a cabeça ligeiramente para olhar Aaron.
Aaron não tinha certeza do que esperava encontrar na capital, mas havia algo na ideia de visitá-la que o atraía, algo que ele não conseguia colocar em palavras.
Talvez fosse exatamente esse fascínio que o movia: o desejo de ver algo diferente, algo melhor. Aaron mal se lembrava das poucas vezes em que estivera na capital de Marguentano¹, e as memórias que possuía eram enevoadas e desprovidas de encanto. Ele já havia caminhado entre vilarejos destruídos, sentido o cheiro acre de cinzas onde outrora existiram florestas, e ouvido os lamentos de um povo que não tinha mais nada além de ódio.
A capital, porém, prometia algo além da decadência e do desespero. Pelo menos, era o que ele esperava. Havia relatos de torres que perfuravam os céus, com cúpulas adornadas em ouro reluzente; mercados tão grandes que pareciam labirintos, repletos de cores, sons e aromas que evocavam terras distantes; e, acima de tudo, pessoas — milhares delas, vivendo vidas que pareciam, de alguma forma, menos sombrias do que as dos Reinos Inferiores.
Mas talvez fosse apenas isso: uma esperança ilusória, uma promessa que Marguentano¹ não poderia cumprir. Aaron não sabia ao certo o que buscava, mas em seu íntimo, ele sabia o que desejava evitar. Ele queria fugir dos rostos marcados pela guerra, das ruas cheias de lama e da frieza dos corredores do palácio. Queria escapar do peso de ser quem era.
Ainda assim, havia um vazio estranho em seu peito. Por mais que a capital pudesse ser magnífica, parte de Aaron não conseguia se desprender da sensação de que nada jamais seria bom o suficiente.
— Eu quero… só que… será que temos dinheiro suficiente para comprar alguma coisa? — Aaron perguntou, a voz vacilando entre a incerteza e um raro vislumbre de empolgação.
— Esse é o de menos. Nosso palácio pode não ser tão grandioso quanto os outros, mas não é como se não tivéssemos nada. — Ethan virou o rosto, um sorriso quase imperceptível brincava em seus lábios antes de responder.
Aaron arqueou as sobrancelhas, incrédulo. — Temos algo?
A ideia parecia absurda. Ele não conseguia imaginar aquele palácio miserável tendo sequer ouro suficiente para manter as paredes de pé, quanto mais para luxos.
Ethan parou e virou-se para encará-lo, seus olhos brilhavam com algo que Aaron não via frequentemente nele: orgulho.
— Eu sempre guardo uma parte quando nossa mãe envia dinheiro para a manutenção. Pode-se dizer que é o nosso pequeno tesouro… para emergências.
Aaron cruzou os braços, o frio mordia seus dedos através das luvas finas, enquanto processava a revelação.
— Você guarda? Não era Leila quem controlava o dinheiro?
A pergunta saiu mais como uma provocação, pois ele já sabia a resposta. Ethan era mais astuto do que demonstrava, um príncipe que preferia o subterfúgio à confrontação direta. Se estava escondendo dinheiro, é porque havia percebido os roubos e, com a sutileza de um ladrão em plena luz do dia, lidado com o problema à sua maneira.
Ethan suspirou, inclinando-se levemente para frente, como se o peso de suas palavras exigisse equilíbrio.
— Isso não importa agora. — Sua voz tinha uma firmeza incomum, uma determinação que fez Aaron erguer a sobrancelha. — Kaylus pode estar certo sobre os riscos, mas precisamos assumir alguns. Não podemos ficar parados enquanto os filhos das concubinas nos ultrapassam. Eles estão perto do imperador, compartilhando de seu favor, sussurrando nos corredores certos, enquanto nós fomos relegados a este canto esquecido do território imperial. Cada dia que passamos aqui é um dia em que eles ganham terreno e constroem alianças. E nós? Vamos assistir isso acontecer?
Aaron não respondeu de imediato. A neve rangia sob seus pés enquanto retomavam a caminhada pela trilha branca e imaculada, o som abafado contrastava com o peso das palavras de Ethan. O frio intenso transformava suas respirações em pequenas nuvens de vapor, enquanto as árvores nuas ao redor estendiam seus galhos congelados como dedos acusadores.
Caros leitores,
As relações entre irmãos são sempre complicadas, e aqui não é diferente. Após a revelação sobre suas experiências com a Espada Sagrada, Ethan parece mais à vontade com Aaron. Talvez seja o início de algo novo, ou apenas uma trégua temporária. Mas alianças entre irmãos raramente são tão simples quanto parecem, não é?
E então, o pacto com as feras mágicas… uma surpresa que, como muitas outras, levanta mais perguntas do que respostas. A desconfiança de Ethan em relação a Aaron faz sentido, afinal, como confiar plenamente em alguém que não estava presente para viver as mesmas experiências? O roubo dos ovos aconteceu antes do renascimento de Aaron, e isso colocou os dois em caminhos distintos.
Quanto a Kaylus, suas frustrações podem parecer exageradas, mas quem em sua posição não ficaria igualmente irritado? Talvez ele esteja errado… ou talvez ele veja algo que os outros não percebem.
À medida que seguimos por este mundo de pactos, revelações e escolhas, lembrem-se: ninguém é apenas aquilo que parece ser à primeira vista.
P.S.:
Em breve, trarei algo que talvez lhes ajude a navegar melhor pelo vasto mundo de Coroa do Sol. Um mapa. Cada montanha, rio e fronteira, cada cidade que sussurra histórias de glórias passadas e guerras iminentes estará ali, esperando por vocês. Pois, em um mundo como este, saber onde se está pode ser tão importante quanto saber para onde se está indo.
Espero que apreciem cada detalhe — e cada segredo que ele pode conter.
Até o próximo capítulo, onde mais segredos podem vir à tona.
Com apreço,
S.Y Ravena.
GLOSSÁRIO:
¹Marguentano: Um dos Reinos Superiores do Império do Sol. O que define um Reino Superior é a abundância de energia espiritual, presente em suas terras. Em Marguentano, essa energia é particularmente densa, o que favorece o cultivo mágico e espiritual de seus habitantes, tornando o reino um polo de poder e desenvolvimento. Consequentemente, Marguentano é uma terra próspera, com uma economia vibrante e uma sociedade que atrai cultivadores de diversas partes do império.
Embora cada Reino Superior seja governado por um rei, todos eles estão subordinados à autoridade do imperador, Derick Albélia. Ele atua como a figura central de poder, com os reis funcionando mais como vassalos do que como governantes autônomos. Essa estrutura de governança pode ser comparada a uma espécie de parlamento autoritário, onde o imperador detém a palavra final em questões de estado, mas os reis ainda desempenham papéis importantes na administração local.
Marguentano não é apenas o lar da elite do cultivo; é também o coração cultural e político do império. Suas muralhas e palácios refletem a grandiosidade do império, enquanto suas florestas e montanhas vibram com a energia que sustenta o poder de muitos cultivadores de alto nível.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro