Capítulo 10 - A ira de Lilian
“Existem leis que transcendem reinos, e Aaron ousou quebrá-las sem compreender as consequências.”
A neve caía silenciosa do lado de fora, cobrindo os jardins do Palácio Hibisco com uma camada branca que reluzia sob a luz da lua. No interior do quarto, o calor da lareira crepitava suavemente; contudo, não conseguia vencer completamente o frio que se infiltrava pelas janelas de vidro mal vedadas. Era um calor inquietante, morno demais para ser confortável, quase como uma presença que não deveria estar ali.
Aaron estava sentado na cama, as pernas cruzadas, os olhos fechados e o rosto contraído em concentração. A energia espiritual fluía por seus meridianos, lenta e pesada, como um rio que tentava romper as barreiras do gelo. Ele sabia que a falha não estava na energia, mas em si mesmo. Sua mente estava desordenada, perdida entre as sombras do passado e as ameaças do presente.
E, como sempre, aquela sombra tinha um nome: Grace.
A imperatriz surgia em seus pensamentos como uma invasora empurrando portas abertas, trazendo consigo o peso de uma presença impossível de ignorar. Não importava o quanto tentasse afastá-la — lá estava ela, firme, implacável, inescapável. Grace, sua mãe. Ainda podia ouvi-la, mas não da forma como desejava. Não era a voz calorosa que havia imaginado na infância, mas sim um som frio e cortante como o gelo, ordenando-lhe que fosse mais forte, mais hábil, mais útil. Ele era para ela algo a ser moldado ou descartado, uma ferramenta imperfeita em um império de ferro.
Aaron apertou os olhos com mais força, tentando sufocar as lembranças que se agarravam a ele como espinhos. Elas não cediam. A primeira vez que a temeu estava gravada em sua alma como uma cicatriz. Mesmo agora, com o peso dos anos e dos erros acumulados, aquele medo permanecia, enterrado sob camadas de determinação, mas sempre à espreita, como um animal faminto.
"Eu quero viver", pensou ele, enquanto sentia a energia se concentrar em seu núcleo. "E, para isso, preciso ser mais forte.”
No entanto, antes que pudesse mergulhar totalmente em sua meditação, um som o arrancou de seus pensamentos. Não era o crepitar da lareira nem o uivo do vento. Era algo mais próximo: uma risada abafada, quase irreverente.
— Por que está rindo? — perguntou ele, mantendo os olhos fechados. A irritação em sua voz era palpável.
— Vi algo curioso — respondeu Ethan, com um tom tingido de diversão.
Aaron abriu os olhos apenas o suficiente para observar o irmão. Ethan estava sentado na mesma posição, com as mãos repousando sobre os joelhos. Um sorriso enigmático iluminava-lhe o rosto.
— Curioso como? — insistiu Aaron, tentando manter o tom desinteressado, mas falhando.
— O quarto está cheio de luzes — respondeu Ethan, quase em um sussurro. — Elas flutuam, como vagalumes. São de todas as cores.
— Tem certeza disso?
Ethan assentiu, mantendo os olhos fechados.
— Sim, mas há algo mais. — Ele hesitou, escolhendo as palavras com cuidado. — Algumas dessas luzes estão desaparecendo. É como se fossem engolidas por uma fumaça negra.
Um arrepio percorreu a espinha de Aaron. Aquilo não fazia sentido. Cada cultivador via luzes diferentes, únicas ao elemento que lhe era destinado. Ele próprio, como cultivador do Sol, via apenas luzes douradas, pequenas como sois, um reflexo de sua ligação com o astro maior. Era assim que deveria ser.
Mas Ethan... Ethan via algo completamente diferente. Não um único elemento, mas vários. Cores diversas dançavam diante dele, um espetáculo tão raro quanto impossível. Se ele podia ver, talvez pudesse cultivar.
— Abra os olhos — pediu Aaron, sua voz firme.
Ethan fez uma careta e balançou a cabeça, relutante.
— Não. Se eu abrir, vou perder a concentração.
Aaron bufou, exasperado. Ethan era tão imprevisível quanto o vento, e argumentar com ele era uma batalha perdida.
— Tudo bem. Então fique aí vendo suas luzes enquanto eu vejo o que há lá fora.
Ele se levantou da cama, sentindo o chão gelado contra os pés descalços. A janela estava fechada, mas isso não bastava para bloquear o vento cortante. Com cuidado, Aaron destrancou o ferrolho e abriu o vidro. O ar frio da noite invadiu o quarto, trazendo consigo o cheiro limpo e penetrante da neve recém-caída. Ele respirou fundo, deixando o ar gélido clarear seus pensamentos e aliviar, ainda que por um instante, o peso em sua mente.
Ethan, hesitante, aproximou-se dele. Seus olhos se arregalaram ao olhar para fora.
— O que vê? — perguntou Aaron, atento.
— O vento... — começou Ethan, sua voz carregada de espanto. — Eu consigo ver o vento. Ele está dançando pelo ar, como um rio flutuante.
Aaron franziu o cenho. Ele olhou para o mesmo jardim, mas não viu nada além do comum.
— Tem mais — continuou Ethan, agora com o semblante grave. — A energia está no solo, alimentando as árvores, pulsando sob a neve. As gotas de água... estão subindo para o céu como pequenas estrelas. E... — Ele parou por um instante, o olhar se tornando sombrio. — Há fogo, mas não sei como descrever. Ele não brilha como deveria. É estranho. Como se algo o consumisse.
Aaron sentiu o peso daquilo como uma espada no pescoço. Ethan não era apenas diferente: ele era perigoso.
— Isso é... impressionante — disse Aaron, por fim, escolhendo as palavras como quem maneja uma faca de dois gumes. Seu sorriso era curto, quase imperceptível, e carregava mais preocupação do que orgulho. — Parabéns, Ethan. Agora você é oficialmente um cultivador.
O sorriso de Ethan foi breve, desvanecendo-se antes mesmo de iluminar seu rosto. Ele olhou para Aaron, com uma intensidade que não combinava com seus dez anos.
— Você sabe o que isso significa?
A pergunta pairou entre eles como uma sombra. Aaron respirou fundo, tentando afastar a angústia que começava a se acumular em seu peito.
— Diga você — respondeu, mantendo a voz neutra. Mas ele sabia que Ethan sempre via mais do que deixava transparecer.
O garoto hesitou. Seus olhos, antes tão vivos, pareciam agora refletir uma carga que era grande demais para ele carregar. Quando falou, sua voz era baixa, quase um sussurro, como se as palavras carregassem um segredo que nem o vento deveria ouvir.
— Não podemos mais meditar sozinhos. Não depois disso. Nós vimos o que você foi capaz de fazer na floresta. Precisamos de um mestre do cultivo para nos guiar.
O chão gelado parecia mais duro sob os pés descalços de Aaron. Ele cruzou os braços, não para afastar o frio, mas para conter a tempestade que rugia dentro de si. O que Ethan dizia fazia sentido. Fazia todo o sentido. E era exatamente isso que o aterrorizava.
Um mestre do cultivo significava exposição. Significava contar a alguém sobre o que Ethan era capaz de ver, sobre o que ambos eram capazes de fazer. O príncipe herdeiro jamais permitiria que um talento como aquele permanecesse livre. Nem os rebeldes hesitariam em transformá-los em armas. E uma vez que fossem arrastados para o tabuleiro de poder, não haveria como voltar atrás.
Aaron sentiu os olhos do irmão sobre si. Ethan sempre sabia quando ele estava inquieto.
— Um professor... — murmurou, as palavras saindo mais como uma pergunta para si mesmo do que uma resposta para Ethan. Ele desviou o olhar, fixando-o na janela.
A neve caía lá fora, em flocos pesados e silenciosos. O mundo parecia calmo, mas Aaron sabia melhor. Ele sabia que o silêncio só escondia as engrenagens da guerra, girando lenta e inexoravelmente.
— Não se preocupe tanto — disse Ethan, quebrando o silêncio. Sua voz era leve, mas carregada de algo mais, uma maturidade que contrastava com sua idade. — Vamos pensar em como isso pode nos ajudar.
E enquanto Ethan permanecia ao seu lado, seus olhos carregando mais perguntas do que respostas, Aaron teve a sensação de que algo muito maior se movia à espreita. Algo inevitável.
Uma decisão estava para ser tomada, e ele sabia que, quando o momento chegasse, não haveria caminho de volta.
***
O corredor parecia um ventre gelado, amplo e implacável, iluminado apenas pela luz pálida que atravessava as altas janelas arqueadas. O brilho da neve acumulada nos beirais do jardim refletia-se no chão de pedra polida, lançando sombras tênues que oscilavam com os passos de quem passava. Os pilares de mármore negro erguiam-se como sentinelas silenciosos, cada um medindo dez passos exatos, como se marcassem o ritmo de um ritual antigo, cujas origens haviam sido há muito esquecidas.
O ar estava pesado, carregado pelo calor abafado que não conseguia dissipar o frio que se insinuava sob as portas de carvalho e pelas frestas das janelas. Cada porta guardava dois homens, imóveis como estátuas, suas lanças reluzindo sob a luz invernal. Não falavam, mas seus olhos, ocultos por sombras projetadas pelos elmos, acompanhavam os príncipes como predadores ocultos na floresta. Aaron sentia aqueles olhares como punhais encostados à sua pele, esperando o momento certo para perfurar.
À frente, a criada caminhava com a firmeza de quem conhece seu lugar no mundo, sem nunca olhar para trás. Suas duas companheiras seguiam logo atrás, tão caladas quanto sombras projetadas pela luz oscilante.
— Nervoso? — murmurou Ethan. A palavra chegou a Aaron como o sussurro de um corvo, carregada de algo mais profundo do que curiosidade.
Aaron virou a cabeça apenas o suficiente para encarar o irmão. Ethan tinha aquele olhar característico: olhos negros, profundos como poços, que refletiam a luz pálida do corredor com um brilho astuto. Ele sabia o que fazia; sempre soubera.
— Nem tanto — mentiu Aaron, ajustando o casaco e limpando o suor que ameaçava trair sua calma cuidadosamente ensaiada.
Mas ele estava nervoso. Não pela audiência em si, mas pelo que ela representava. A imperatriz não era uma mulher dada a concessões. Suas palavras eram como armadilhas escondidas em doces, e Aaron sabia que uma vez no tabuleiro do poder, a única saída seria pela derrota ou pela vitória.
O silêncio se prolongou enquanto caminhavam, seus passos ecoando pelo corredor vazio. Aaron enfiou as mãos nas mangas do casaco, tentando conter os dedos que se moviam inquietos, como se antecipassem a sentença que ainda não fora proferida.
"Ela vai nos pressionar," pensou ele. "Vai ter mais argumentos, mais razões para nos tirar os ovos. Ou talvez nem seja sobre eles... talvez ela já tenha decidido.”
— Kaylus vai ser difícil de convencer — disse Ethan, quebrando o silêncio. Seu tom era casual, mas Aaron sabia ler nas entrelinhas. — Mas se mostrarmos que somos responsáveis, ele pode mudar de ideia.
Aaron soltou uma risada curta, sem humor.
— E se ele não mudar?
Ethan parou e virou-se para ele, a mão pousando firmemente sobre o ombro de Aaron. Havia algo no toque que parecia reconfortante, mas o olhar de Ethan traía outra coisa. Era duro, calculado, como o olhar de alguém que avaliava possibilidades e descartava fraquezas.
— Então encontraremos outra maneira. Não podemos recuar agora. Já fomos longe demais.
Havia uma intensidade nas palavras de Ethan que Aaron raramente via, mesmo nele. Era como se o irmão estivesse tentando convencer a si mesmo tanto quanto a Aaron.
— Você é o mais interessado nisso, afinal. Eu só entrei nessa confusão porque você insistiu nos ovos. Por que está tão quieto agora?
Aaron não respondeu de imediato. Ele sabia que Ethan tinha razão. Sua obsessão pelos ovos era o centro de tudo. Mas não era uma questão de sentimentalismo. Era algo mais profundo, quase visceral.
Um dos ovos era Agnes. Ele sentia isso em cada fibra de seu ser, como se um fio invisível os conectasse, um vínculo que o tempo e a morte não conseguiram quebrar.
Mas o outro... O outro o deixava inquieto. Não era apenas a falta de ligação emocional; era o vazio que sua ausência deixava em suas memórias. Como podia tê-lo esquecido? Ele se lembrava claramente de Agnes, de como sua presença era uma extensão de sua própria vontade, mas o segundo ovo era um mistério, uma sombra que pairava sobre sua infância sem nunca se revelar completamente.
— Vou anunciá-los, príncipes. Por favor, aguardem aqui. — A criada inclinou-se levemente, sua voz interrompeu os pensamentos que Aaron mal conseguia organizar.
Ela parou diante da porta dupla, suas mãos enluvadas ajustando o avental antes de fazer um gesto para os guardas. As portas se abriram com um ranger baixo, revelando um vislumbre do gabinete além: a luz dourada de um fogo crepitante na lareira, sombras projetadas em tapeçarias que se moviam como espectros dançando, e o brilho opaco de ouro decorando as bordas de móveis que pareciam feitos para reis.
Os garotos permaneceram imóveis enquanto a criada entrava. O som de suas botas ecoou na sala antes de desaparecer. Um instante se passou. Outro. Cada segundo parecia se arrastar, o silêncio encheu o corredor como o prenúncio de uma tempestade.
Quando a criada retornou, ela inclinou a cabeça levemente e fez um gesto para que entrassem.
— A imperatriz os aguarda.
Os guardas empurraram as portas novamente, revelando o gabinete em toda sua grandiosidade. Aaron e Ethan avançaram lado a lado, mas Aaron sentia o peso do momento como uma pedra no peito. Seus passos ecoaram suavemente no piso de pedra polida, o som pequeno demais para um lugar tão imponente.
O gabinete da imperatriz era um testemunho de poder e beleza opressora. No fundo, próximo a uma janela, uma mesa de madeira escura dominava o espaço. As bordas ostentavam intrincados detalhes em ouro que brilhavam com uma ferocidade quase viva. Sobre a mesa, penas finamente trabalhadas e um tinteiro repousavam ao lado de papéis espalhados como se fossem relíquias de segredos guardados.
Acima, um lustre de cristal pendia como uma constelação aprisionada, suas luzes flutuantes projetavam sombras que dançavam nas paredes cobertas de tapeçarias. Nessas paredes, histórias de guerra, conquista e tragédia eram narradas por mãos habilidosas, mas os rostos nas cenas bordadas pareciam olhar para Aaron, como se sussurrassem segredos que ele não era digno de ouvir.
Aaron tentou absorver a sala, mas sua atenção foi capturada por algo muito mais vivo.
No canto, uma criatura repousava sobre uma almofada bordada. Era um tigre — mas não como qualquer outro que Aaron já havia visto. Sua pelagem era tão branca quanto a neve do inverno mais cruel, entrecortada por listras prateadas que ondulavam como água em movimento. Os olhos, de um púrpura intenso, fixaram-se neles com uma atenção quase inquietante. Não eram olhos de fera; eram humanos, antigos, e cheios de uma sabedoria que nenhuma criatura deveria carregar.
Mais perturbador ainda era o chifre que despontava de sua testa. Era um espiral vermelho, pulsando com um brilho que oscilava entre o suave e o ameaçador, como se abrigasse dentro de si o coração de uma estrela.
Ethan deu um passo à frente, os olhos arregalados, incapaz de desviar o olhar da criatura.
O tigre ergueu a cabeça lentamente, com uma preguiça estudada, mas cada movimento era impregnado de atenção. A cauda grossa balançou uma vez, o som lembrava seda roçando contra pedra. Não houve rosnado ou qualquer sinal de agressividade, mas sua presença parecia dominar o gabinete, tornando o espaço menor, mais claustrofóbico.
Ethan continuou avançando, os passos cuidadosos, como quem pisa sobre gelo fino. Quando ele finalmente parou, estava diante da mulher que se reclinava ao lado da fera.
— Mãe!
Grace ergueu os olhos. Sua figura era um quadro vivo de autoridade. O vestido de cetim vermelho-escuro caía em pregas perfeitas, como sangue coagulado escorrendo de uma ferida antiga. Os lábios, tingidos no mesmo tom do vestido, destacavam-se contra a pele pálida, tão fria quanto o mármore de uma estátua. Seus olhos, porém, suavizaram quando pousaram em Ethan, uma luz rarefeita substituindo por um breve instante a frieza que normalmente ali residia.
— Ethan. — Seu nome escapou de seus lábios como um suspiro, um som breve, mas carregado de algo indescritível. Ela se levantou, graciosa, mas contida.
Ethan curvou-se de leve, um gesto formal que as criadas haviam lhe ensinado. No entanto, antes que ela pudesse recuar, ele quebrou o protocolo e lançou-se em seus braços.
Por um instante, Grace ficou imóvel, como se abraçá-lo fosse algo que ela não soubesse fazer. Mas então suas mãos pousaram nos ombros do filho, hesitantes, mas não sem ternura.
Ethan olhou para Aaron por cima do ombro, seus olhos brilhavam de expectativa, quase implorando que ele se juntasse. Mas Aaron hesitou. Ele observava a cena como se fosse um intruso, um espectador de algo que não lhe pertencia.
Finalmente, com passos lentos e pesados, ele se aproximou. Cada passo ecoava em sua mente como um lembrete de tudo o que Grace era — e tudo o que não era. Quando parou diante dela, ele abaixou os olhos, incapaz de encará-la diretamente. Seus dedos alcançaram a barra do vestido, sentindo a textura rica e opressiva do tecido. Não era só cetim; era poder, um lembrete silencioso da distância que os separava.
— Dormiu bem, querido? — perguntou Grace, sua voz gentil, mas carregada com uma autoridade que nunca a abandonava.
Aaron assentiu lentamente, como se estivesse medindo cada gesto.
— Sim, mãe.
— E o café da manhã? Estava do seu agrado?
— Estava, sim.
Houve um silêncio breve, pesado, antes de Aaron finalmente encontrar coragem para perguntar:
— Chegamos cedo demais? Onde está Kaylus?
— Ele está a caminho.
— A caminho de onde? — perguntou Aaron, os olhos estreitando ligeiramente. Ele conhecia Grace bem o suficiente para perceber o leve franzir de seus lábios, o único traço que traía sua irritação. Kaylus estava atrasado. E se ele a fazia esperar, não era por descuido.
Era uma pergunta perigosa, e Aaron sabia disso. Grace não tolerava ser pressionada, nem por seus filhos. Ainda assim, em vez de repreendê-lo, ela desviou o olhar para uma pequena mesa ao lado de sua poltrona. Aaron seguiu seus olhos e viu as cartas empilhadas ali, seus selos intactos. Um deles, em particular, chamou sua atenção: o brasão de Kaylus, gravado em cera escarlate.
O ar no gabinete pareceu mudar. Aaron sentiu o peso daquele selo como se fosse uma corrente amarrada ao tornozelo. Aquela correspondência não era trivial. Era algo que exigia a atenção total da imperatriz.
— Eu dei uma missão a ele — disse Grace, sem tirar os olhos das cartas.
Aaron sentiu o coração acelerar. Sua mente começou a trabalhar, desenhando cenários, imaginando o que Kaylus poderia estar fazendo.
Grace o observou com um leve sorriso nos lábios. Era um sorriso maternal, mas carregado de algo mais: um orgulho quase cruel, como se soubesse exatamente o que estava passando pela cabeça do filho.
— Antes que comece a questionar, é uma missão secreta. Apenas guerreiros têm permissão para saber.
A frustração subiu pelo peito de Aaron, apertando como uma mão invisível. Ele desviou o olhar, fingindo desinteresse, mas as perguntas queimavam em sua garganta. Ele lançou um último olhar furtivo às cartas, como se pudesse arrancar delas os segredos que Grace não compartilharia.
O gabinete estava mergulhado em um silêncio pesado, quebrado apenas pelo ocasional crepitar da lareira e pelo som da fera mágica ajustando sua posição na almofada. O tigre observava tudo com seus olhos púrpura penetrantes, como se o simples fato de existir fosse um lembrete de que aquele lugar pertencia a Grace e a mais ninguém.
Ethan, sentado ao lado de Aaron no sofá, tamborilava os dedos nos joelhos, o ritmo errático denunciava seu tédio crescente. O garoto lançava olhares furtivos para a fera no canto, como se esperasse que ela fizesse algo mais interessante do que respirar.
Grace, no entanto, parecia alheia a tudo isso. Suas mãos elegantes ergueram uma das cartas da mesa, e seus olhos dourados a analisavam com a precisão de uma navalha. A calma dela era quase insultante. Aaron desviou o olhar, fixando-o no tapete sob seus pés. Um padrão intricado de vermelho e dourado, fios de seda que pareciam tão antigos quanto o próprio palácio. Ele sabia que não deveria encará-lo por tanto tempo, mas o fazia mesmo assim, tentando encontrar algum conforto no ritmo ordenado de suas linhas.
"Que missão seria tão importante para ela confiar a Kaylus?" pensou Aaron. A dúvida ecoava em sua mente como um sino distante, insistente e impossível de ignorar. O silêncio se esticava, os minutos transformavam-se em horas no peso da tensão.
Então, finalmente, o som de passos ecoou pelo corredor do lado de fora. O ritmo era firme e deliberado, como o de um homem que sabia exatamente onde estava indo. Ethan endireitou-se no sofá, os olhos brilhando com um interesse renovado. Aaron não conseguiu evitar fazer o mesmo, embora suas mãos continuassem entrelaçadas no colo.
A porta se abriu com um rangido discreto, e a criada que os guiara até ali entrou, fazendo uma reverência que parecia ensaiada até nos mínimos detalhes.
— O senhor chegou, Vossa Graça.
Grace ergueu os olhos da carta. Por um instante, um brilho de expectativa atravessou seu olhar, mas desapareceu tão rápido quanto surgiu. A criada recuou, e as portas se abriram completamente.
Kaylus entrou no gabinete como um vento de outra estação, trazendo consigo o cheiro da poeira e do deserto. Seu manto bege estava jogado de forma descuidada sobre os ombros, preso por um broche de bronze em forma de sol. As roupas sob o manto eram simples e leves, mais apropriadas para o calor escaldante do que para o frio invernal que reinava ali. Suas botas de couro estavam cobertas de poeira, e o cansaço de uma longa viagem marcava cada linha de seu rosto.
Aaron mordeu o interior da bochecha para evitar sorrir. Kaylus nunca se incomodava com as formalidades, e sua pressa em atender à audiência claramente o impediu de trocar de roupa. Ele era o irmão mais velho, mas parecia tão deslocado quanto uma chama solitária em meio à neve.
Ethan, ao contrário, não conseguia esconder a curiosidade. Ele abriu a boca, pronto para algum comentário, mas Aaron levantou uma mão sutil, um aviso para que ficasse quieto.
Aaron observou Kaylus mais de perto, seus olhos estreitando-se. Algo estava errado.
"Por que ele estaria usando isso?" pensou ele, os olhos percorrendo o traje poeirento.
Ele sabia reconhecer roupas feitas para o deserto: tecidos resistentes ao calor e à areia, mas frágeis contra o frio. Kaylus tinha viajado, e não para um lugar próximo. Seu traje dizia tudo o que sua boca ainda não havia revelado.
"Será que ele esteve na Muralha Fronteiriça?"
A ideia enviou um calafrio pela espinha de Aaron. Ele olhou para Grace, em busca de alguma pista. O sorriso que ela dera aos filhos havia desaparecido por completo, substituído por uma expressão de frieza calculada. Apenas seus olhos brilhavam, um reflexo de satisfação contida.
Kaylus parou no centro do gabinete, limpando a poeira das mãos contra as calças, como se estivesse em um mercado e não diante da imperatriz. Ele inclinou a cabeça ligeiramente em saudação, mas o gesto foi breve, quase desdenhoso.
— Vossa Graça.
— Kaylus. — A resposta de Grace foi tão afiada quanto um pedaço de vidro quebrado.
Aaron sentiu a tensão na sala como uma corda sendo esticada até o limite. Não era apenas a presença de Kaylus ou o olhar implacável de Grace, mas algo mais. O ar parecia mais denso, como se carregasse o peso de palavras não ditas e verdades perigosas que pairavam como sombras.
No canto, o tigre ergueu a cabeça de seu descanso preguiçoso, as orelhas girando na direção de Kaylus. A criatura mágica o observava com atenção, os olhos púrpura brilhando com uma intensidade que Aaron não conseguia ignorar. Não era um olhar casual; era o olhar de um predador avaliando sua próxima presa.
— Por que demorou? — perguntou Grace, sua voz tão calma quanto um lago congelado, mas com uma nitidez que parecia cortar o ar.
Aaron se encolheu ligeiramente, mesmo sabendo que a pergunta não era dirigida a ele. Grace tinha o dom de fazer suas palavras atingirem todos na sala, mesmo quando pretendia acertar apenas um.
Kaylus permaneceu impassível. Ele inclinou levemente a cabeça, um gesto de respeito que parecia quase desdenhoso vindo dele.
— Minhas desculpas, imperatriz — disse ele, sua voz baixa, mas firme. — Mas nem mesmo o Alquimista Imperial pode conter os vermes de areia que habitam o deserto.
Aaron sentiu seu coração acelerar. Vermes de areia. As palavras reverberaram em sua mente como um eco de algo que ele conhecia intimamente. Não eram apenas histórias distantes ou lendas assustadoras contadas em noites de inverno. Ele havia visto essas criaturas com seus próprios olhos, nas expedições que marcaram sua juventude.
As memórias surgiram como uma tempestade, varrendo sua mente com imagens que ele preferia esquecer. O sol escaldante do Reino de Úrsula, a vastidão infinita das dunas movediças, o calor sufocante que transformava até mesmo a respiração em uma tarefa exaustiva. Ele lembrou-se do cheiro acre do deserto queimado pelo dia e das sombras dançando ao longe, formas disformes que revelavam sua verdadeira natureza tarde demais.
O rugido. Ele nunca esqueceria aquele som. Era como se o próprio deserto rugisse, uma declaração de que tudo ali pertencia a ele, ao monstro que emergia das areias. Os vermes de areia eram mais do que colossais; eram catedrais vivas de escamas e dentes. Ele lembrava do brilho metálico dos anéis segmentados enquanto captavam o sol, e os dentes... lâminas curvas que transformavam qualquer coisa em sua trajetória em uma pilha de destroços. E havia o som das escamas contra a areia, uma cacofonia áspera que fazia a pele arrepiar.
Kaylus falava agora dessas criaturas com uma calma que incomodava profundamente Aaron. Talvez fosse a indiferença com que o irmão descrevia algo tão destrutivo, ou talvez fosse a memória vívida de como, em um instante, um verme de areia podia transformar os habitantes do império em poeira e ossos esquecidos.
Aaron desviou o olhar para o chão, tentando acalmar a pulsação acelerada. Aquele lugar, aquele tempo... havia sido uma outra vida, mas os vermes de areia não eram algo que se apagava da memória.
Grace inclinou ligeiramente a cabeça, os olhos estreitando-se em um gesto que Aaron conhecia bem. Ela não estava irritada; estava avaliando, pesando as palavras de Kaylus, procurando as verdades escondidas nas entrelinhas.
O silêncio que se seguiu era insuportável. Aaron quase desejou que Grace o quebrasse com um grito ou uma reprimenda cortante. Qualquer coisa era melhor do que aquele vazio opressivo. Mas a imperatriz nunca desperdiçava palavras.
— Sente-se.
O comando foi simples, mas soava mais como um decreto. Kaylus obedeceu sem protestar, movendo-se com uma confiança desleixada que parecia tão natural quanto respirar. Quando passou pelos gêmeos no sofá, no entanto, ele fez uma pausa.
Ethan e Aaron o observavam com olhos arregalados, cada um à sua maneira. Ethan, sempre curioso, inclinou-se ligeiramente, como se pudesse arrancar alguma resposta apenas estudando o rosto do irmão mais velho. Aaron, por outro lado, permaneceu imóvel, o cenho franzido, mas o olhar atento.
Kaylus estendeu a mão e, com um movimento rápido e despreocupado, bagunçou os cabelos de ambos.
— Pestinhas — disse ele, sorrindo de canto. — Estou surpreso que conseguiram ficar quietos por tanto tempo.
Ethan fez uma careta, afastando-se e tentando alisar os cabelos com os dedos. Aaron, no entanto, apenas ajeitou os fios de forma metódica, lançando um olhar breve para Grace.
A reação da mãe foi imediata. Suas sobrancelhas arquearam em uma expressão que combinava irritação com desdém. Não precisava de palavras para mostrar sua desaprovação. Kaylus notou, mas não parecia se importar. Ele apenas sorriu, quase desafiador, antes de se jogar na cadeira que Grace havia indicado.
Ele cruzou os braços sobre o peito e recostou-se como se estivesse no controle de toda a situação. Mas Aaron notou o brilho nos olhos do irmão, uma faísca de algo mais. Cansaço? Provocação? Ou talvez um segredo que ele ainda não estava disposto a compartilhar.
Os olhos de Aaron captaram algo na túnica de Kaylus, um borrão prateado contra o tecido claro. Ele estreitou o olhar, inclinando-se levemente para frente, como se confirmar o que via fosse tão importante quanto o próximo suspiro. Não era poeira, nem areia. Era líquido. Seco agora, mas ainda brilhante sob a luz tremulante do lustre.
Sangue.
Seu coração acelerou, cada batida ecoando nos ouvidos como um tambor de guerra. Sangue lunar. Aaron reconheceu o tom prateado imediatamente, mesmo antes de sua mente formar a palavra. Aquele brilho metálico, semelhante a mercúrio, era inconfundível. Ele o havia visto antes, muitas vezes, em sua vida passada. O sangue dos lunares.
Os habitantes do Império da Lua. Inimigos antigos do Império do Sol.
Aaron sentiu o calor no peito se transformar em gelo. O que lunares estariam fazendo ali? Nas terras solares? E, pior, por que o sangue deles manchava as vestes de Kaylus?
Grace notou a mudança na expressão de Aaron e seguiu o olhar do garoto até a mancha prateada na túnica de Kaylus. Seu rosto permaneceu inexpressivo, mas havia algo em seus olhos — um brilho frio e avaliador, como se estivesse catalogando cada detalhe para usar mais tarde.
“O que Kaylus fez para voltar coberto de sangue lunar?”
A pergunta não foi feita em voz alta, mas pairava no ar entre eles, tão palpável quanto o cheiro do incenso perfumado.
Kaylus permaneceu recostado na cadeira por um momento, como se estivesse deliberando se valia a pena permanecer sentado. Sua atenção finalmente se desviou para a pequena mesinha de centro, e ele endireitou a postura. Os ovos repousavam sobre a almofada negra bordada em ouro, pequenos, do tamanho de punhos infantis.
O primeiro ovo era perolado, brilhante como o interior de uma concha marinha, refletindo a luz em tons suaves e iridescentes. Ele parecia frágil, delicado, como algo que poderia se estilhaçar com o menor toque. Mas Aaron sabia que aquilo era uma mentira.
O outro era diferente. Um ovo negro, opaco, com uma superfície que parecia composta de escamas de obsidiana. Ele não refletia a luz, mas a devorava, transformando tudo ao seu redor em sombras. Aaron teve a impressão de que, se olhasse por tempo demais, veria algo se movendo dentro dele. Algo vivo. Algo à espreita.
Kaylus permaneceu em silêncio, mas seu olhar era fixo, intenso. Aaron o observava de perto, notando o pequeno tremor na ponta dos dedos do homem, o modo como suas mãos apertavam os braços da cadeira, como se precisassem de um ponto de ancoragem. Não era um gesto de nervosismo comum; era algo mais profundo, um esforço para manter o controle de um peso que poucos compreenderiam.
— Então eles estão aqui — murmurou Kaylus, quase para si mesmo. Sua voz era baixa, mas havia algo nela, uma nota de reverência que fez a sala parecer ainda mais silenciosa.
De dentro da manga de sua túnica, deslizou uma criatura de corpo longo e elegante, que lembrava uma serpente em sua forma sinuosa, mas havia algo na criatura que desafiava comparações simples. Sua pele brilhava como jade polido, refletindo a luz em tons verdes profundos, enquanto pequenas garras finas a ajudavam a se mover com graça.
Cada movimento era preciso, como se o espaço ao seu redor lhe pertencesse. Chifres curvados, semelhantes aos de um cervo, emergiam de sua cabeça, conferindo-lhe uma aparência régia e sobrenatural.
A criatura movia-se com a fluidez de um riacho serpenteando por pedras lisas, suas garras pequenas, mas afiadas, beliscavam levemente a pele de Kaylus enquanto subia pelo braço dele até alcançar a mesa. Kaylus sequer piscou, como se estivesse acostumado com o toque ligeiramente incômodo. Quando a fera mágica alcançou a mesa, ela inclinou a cabeça, inspecionando os ovos com uma curiosidade calculada. Com movimentos lentos, ela começou a envolvê-los com o corpo, cada volta era uma declaração silenciosa de posse.
Kaylus observou a cena, e então sorriu. Não o sorriso de um homem alegre, mas algo mais suave, íntimo.
— Está feliz agora? Você finalmente os encontrou — perguntou ele, sua voz carregava um toque de ternura.
Lilian não respondeu, mas o bufo que soltou ao pressionar o focinho contra o ovo de obsidiana foi o suficiente. Uma fumaça escura escapou de suas narinas, espalhando-se no ar como uma sombra efêmera.
No sofá, Ethan e Aaron observavam em silêncio. O brilho nos olhos de Grace era mais eloquente que qualquer palavra. Não era apenas um olhar de expectativa; era uma ordem não dita, uma vontade que atravessava o espaço entre ela e os gêmeos sem necessidade de explicação.
Ethan foi o primeiro a se mexer. Ele olhou para Aaron, buscando coragem no irmão gêmeo, mas encontrou apenas hesitação. Aaron não se moveu, sua mente havia se tornado um turbilhão de pensamentos contraditórios. Depois de um instante que pareceu se estender por uma eternidade, Ethan respirou fundo, levantou-se e caminhou até a mesinha.
Aaron suspirou baixinho, resignado. Ele não queria se levantar, não queria curvar-se, mas sabia que não tinha escolha. Não sob o olhar de Grace. Ele seguiu o irmão com passos pesados, o peso de sua própria dignidade arrastando-se atrás dele como correntes.
Os dois ajoelharam-se diante da almofada, as cabeças inclinadas como em um altar. Ethan abriu a boca primeiro, sua voz soou hesitante e baixa.
— L-Lilian... Sentimos muito. Por favor, não fique irritada. Não tínhamos más intenções.
Aaron demorou mais. Ele não gostava de pedir desculpas. Nunca gostou. E a presença de Grace, com seu olhar implacável e inabalável, tornava aquilo ainda pior. Mas ele sabia o que era esperado dele.
— Nós não queríamos causar problemas — disse ele, finalmente. Sua voz era controlada, fria, como uma parede erguida contra a humilhação. Mas havia sinceridade em suas palavras, mesmo que forçada.
Lilian levantou a cabeça ligeiramente, os olhos brilhando como duas pedras preciosas molhadas. Ela bufou novamente, o som como o de uma pequena fornalha sendo acesa, e mais fumaça escapou de suas narinas. Mas ela não fez nenhum movimento agressivo.
— Vocês têm ideia do que poderia ter acontecido? Esses ovos não são brinquedos. São vidas — disse Kaylus, enquanto observava os dois. Sua voz não era ríspida, mas carregava uma reprovação clara.
Ele deu um passo adiante, a túnica oscilando ligeiramente com o movimento, e inclinou-se para os dois garotos. Seu olhar era fixo, implacável, e parecia atravessar as defesas de ambos com facilidade.
— Não é só o perigo de quebrá-los — continuou, a voz agora mais grave. — Durante o ataque dos rebeldes, esses ovos poderiam ter sido levados, ou pior, destruídos. O que vocês acham que teria acontecido? Eles seriam usados como armas contra nós. Contra vocês.
Ethan sentiu o peso das palavras como pedras sendo empilhadas sobre seus ombros. Ele engoliu em seco, tentando formular uma resposta, mas os lábios apenas tremeram. Aaron, por outro lado, manteve-se firme. Sua expressão era uma máscara, mas o músculo de sua mandíbula pulsava com uma tensão que traía sua luta interna.
— Vocês entenderam agora? — Kaylus perguntou, sua voz cortante. Seus olhos alternavam entre os dois, fixando-se por mais tempo em Aaron.
Ethan foi o primeiro a ceder. Ele suspirou, baixando a cabeça como um soldado derrotado.
— Nós entendemos... — murmurou, a voz quase inaudível.
Aaron permaneceu imóvel por um momento, o silêncio carregado ao seu redor. Mas algo estava borbulhando dentro dele, uma mistura de determinação e uma inquietação feroz. Ele ergueu os olhos, sua mente já decidida.
“Desde o início, eles não tinham a intenção de entregar os ovos para nós. Viemos apenas para pedir desculpas”
Sem dizer nada, ele ergueu a mão e levou o polegar aos dentes. O gesto foi rápido, mas o corte foi fundo o suficiente para abrir a pele. Um filete de sangue escorreu lentamente, quente e espesso. O gesto foi rápido e decidido, mas não passou despercebido. Ethan arfou ao seu lado, arregalando os olhos em surpresa. Grace e Kaylus se endireitaram imediatamente, mas não disseram nada — ainda.
O silêncio no gabinete era quase ensurdecedor enquanto Aaron estendia a mão ensanguentada na direção da almofada onde Lilian estava enroscada com os ovos.
A criatura ergueu a cabeça num movimento rápido, os olhos amarelos brilhando com uma intensidade quase sobrenatural. A tensão em seu corpo era palpável: a cauda chicoteando contra a almofada, as garras afiadas afundando no tecido. Aaron sentiu o calor aumentar ao redor de si, mas continuou.
Seus dedos tocaram a superfície do ovo perolado. A casca era áspera e morna, uma sensação que parecia viva, pulsante. O sangue de Aaron escorreu pelos seus dedos, espalhando-se pela casca como se fosse absorvido pela própria essência do ovo.
O mundo pareceu parar por um instante, e então a luz começou.
Um brilho dourado emanou do ovo, tão forte e quente que inundou o gabinete, apagando momentaneamente todas as sombras. As paredes pareciam refletir o brilho como espelhos imperfeitos, enquanto os rostos de todos os presentes eram iluminados pelo mesmo fulgor.
Kaylus congelou, seu rosto era uma máscara de incredulidade. Grace apertou o braço da poltrona com tanta força que suas juntas ficaram brancas, mas, mesmo assim, manteve-se imóvel, os olhos fixos no filho ajoelhado.
— Aaron... — sua voz cortou o ar, baixa e fria como o aço.
Kaylus, no entanto, já estava se movendo. Ele deu um passo à frente, com a mão estendida como se pretendesse arrancar o ovo das mãos do garoto.
— Você perdeu o juízo? — rosnou ele, a voz cheia de incredulidade e raiva. — Solte isso agora mesmo!
Aaron, no entanto, não obedeceu. Ele segurou o ovo com firmeza, sentindo o calor crescer em suas mãos. Mas sua atenção estava em Lilian. O dragão estava de pé agora, a cabeça erguida e os olhos fixos nele. O rosnado baixo que escapava de sua garganta fazia o gabinete inteiro vibrar, e sua cauda chicoteava de um lado para o outro com uma força que fez a mesa tremer.
— Não. — A palavra saiu baixa, mas carregada de convicção. Ele ergueu o olhar para Kaylus, mas não com medo. Havia algo mais ali, algo que nem ele mesmo compreendia totalmente.
Aaron respirou fundo antes de falar novamente, desta vez mais alto:
— Agnes. Eu a nomeio como Agnes. Ela será minha companheira de alma. Não importa quantas vidas eu viva, estaremos ligados. E juntos... mudaremos tudo.
Kaylus explodiu primeiro.
— Você forçou o vínculo! — A voz dele estava cheia de fúria. — Isso não é um pacto, é uma prisão! Você roubou a escolha que deveria ter sido dela!
Aaron não soltou o ovo.
O calor que irradiava dele não era desconfortável, mas havia algo nele que parecia estar puxando-o para dentro, como se cada batida de seu coração fosse sincronizada com o pulsar da casca em suas mãos. Ele sentia o peso da fúria ao seu redor, crescendo como uma tempestade.
Lilian.
A criatura que antes parecia tão contida agora estava mudando diante de seus olhos. O rosnado baixo que saía de sua garganta tornou-se um grito de desafio, uma nota reverberante que fez os ouvidos do garoto zumbirem. Suas escamas verdes brilharam com intensidade sob a luz dourada que ainda emanava do ovo. E então, aos poucos, ela começou a tomar forma.
Os gêmeos se levantaram de um salto, instintivamente recuando. Aaron manteve o ovo firmemente nas mãos, mas sua respiração estava rápida, e ele sentiu o suor escorrer pela nuca. Ethan estava imóvel ao seu lado, com os olhos arregalados enquanto observava a transformação.
Roupas surgiram onde antes havia apenas pele escamada, semelhantes às de uma rainha guerreira — tecidos esvoaçantes e adornados com detalhes que lembravam asas e fogo, moldados para se moverem com o corpo. O brilho do jade em suas escamas se espalhava pelo pescoço e pelas bochechas, traçando caminhos irregulares que pareciam quase simbólicos, como se marcassem sua ancestralidade dracônica.
Seus olhos, amarelos como o âmbar mais claro, encararam Aaron com uma intensidade que o fez sentir o peso de cada escolha que o havia levado até aquele momento. As fendas verticais em suas íris se contraíram, tornando-a menos humana a cada segundo.
— Você ousa tomar aquilo que pertence ao sangue de dragões? — Sua voz era baixa, mas carregada de uma fúria que parecia prometer destruição.
Aaron não respondeu. Ele sabia que não havia palavras que pudessem mudar o que estava acontecendo. Mesmo assim, suas mãos não se moveram. Ele sentiu o ovo pulsar novamente, como se estivesse vivo, como se estivesse respondendo à presença dela.
Foi então que o tigre se moveu.
O movimento foi um borrão de listras prateadas. Aaron ouviu antes de ver, o som das patas atingindo o chão como trovões abafados. No ar, sua forma mudou. Não havia hesitação ou lentidão; a transformação foi tão fluida quanto a de Lilian, mas muito mais direta.
Quando os pés de Helena tocaram o chão, ela já estava de pé, uma espada reluzente estava em suas mãos. Seus cabelos, trançados com perfeição, reluziam como prata à luz dourada do ovo. A armadura que usava refletia tons púrpura e cinza, ajustada ao seu corpo com uma precisão que apenas o tempo e a guerra poderiam esculpir.
— Não dê mais um passo. — A voz de Helena era firme, cortante como a lâmina que agora ela mantinha entre Lilian e os garotos.
Lilian parou, inclinando a cabeça levemente enquanto avaliava Helena.
— Você sempre foi rápida para proteger os fracos — disse Lilian, sua voz carregada de desprezo. — E sempre tão desnecessária.
— Eu protejo quem merece — respondeu Helena, sem desviar os olhos. — E você sabe muito bem que não sou eu quem deve temer essa lâmina.
A tensão na sala era quase palpável. Aaron olhou de Helena para Lilian, o coração batendo tão rápido que parecia ecoar em seus ouvidos. Ele queria dizer algo, qualquer coisa, mas as palavras não vinham.
— Eu não vou repetir — continuou Helena, seu tom ainda mais frio. — Controle-se. Ele é apenas um garoto.
Lilian riu, um som baixo que parecia mais um rugido abafado.
— Um garoto? — respondeu ela, a voz cheia de veneno. — Um ladrão, isso sim. Ele ousou forçar um vínculo. Ele violou uma lei que transcende reinos.
Helena levantou a espada, e o brilho da lâmina parecia um aviso claro.
— E você está prestes a violar outra — retrucou Helena, com calma, mas havia um fio de aço em suas palavras. — Controle-se, Lilian. O que foi feito, foi feito.
Aaron sentiu a tensão aumentar como o peso de uma tempestade prestes a desabar. O calor do ovo em suas mãos era quase insuportável agora, mas ele se recusava a soltá-lo.
Lilian rosnou novamente, sua forma ainda pulsava com energia dracônica. As escamas em suas bochechas brilharam, refletindo a luz dourada do ovo, enquanto sua respiração se transformava em nuvens de fumaça escura. Mas ela não avançou. Seus olhos continuaram fixos em Aaron, como se tentassem decidir se ele era digno de ser destruído ou poupado.
Helena deu um passo à frente, bloqueando completamente a visão de Lilian sobre Aaron.
— Se você matar o garoto, nunca saberemos o que o filhote escolheu. Pense bem, Lilian. Você realmente quer destruir aquilo que já começou?
Por um momento, tudo ficou em silêncio. O brilho do ovo diminuiu levemente, mas o calor ainda permanecia. Aaron sentiu o suor escorrer por sua testa enquanto olhava de Helena para Lilian, esperando, rezando silenciosamente para que a explosão não viesse.
Finalmente, Lilian recuou. Suas mãos caíram ao lado do corpo, e a luz em seus olhos amarelos pareceu diminuir.
— Ele não entende o que fez. Mas isso não o absolve. — Suas palavras eram cortantes, mas controladas agora. Ela virou-se lentamente, com sua forma oscilando entre o humano e o dracônico, antes de voltar para o ovo obsidiana.
Helena olhou por cima do ombro para Aaron, sua expressão era difícil de decifrar.
— Você é corajoso — disse ela, finalmente. — Ou estúpido. Talvez os dois.
Aaron não respondeu. Ele sabia que ainda não estava seguro, mas também sabia que não podia soltar o ovo. Não agora.
E então, no silêncio que se seguiu, ele percebeu que tudo havia mudado.
Caros leitores,
Que momento intenso e carregado de decisões irreversíveis! O capítulo que acabamos de vivenciar nos mergulhou profundamente no universo complexo e emocional desses personagens, revelando mais camadas de suas motivações, medos e ambições.
Aaron, ao tomar a ousada decisão de forçar o vínculo com Agnes, não apenas desafiou as expectativas de sua família, mas também cruzou uma linha que pode mudar completamente o equilíbrio de poder no cenário em que se encontram. Sua determinação inabalável contrasta com a fúria de Kaylus e o olhar calculista de Grace, que permanecem como forças opostas em uma dinâmica carregada de tensão e imprevisibilidade.
O brilho do ovo, a reação de Lilian e o silêncio quase sufocante que se seguiu só reforçam o peso dessa escolha. Aaron não apenas reivindicou algo para si; ele abriu mão de possibilidades futuras, enfrentando o desconhecido com uma convicção que beira a insensatez. A pergunta que paira agora é: a que custo?
Além disso, o capítulo nos presenteia com mais do que um simples conflito familiar. Ele nos dá um vislumbre das forças maiores que moldam esse mundo — sejam os mistérios dos ovos, as antigas rivalidades com os lunares, ou o papel de Grace como uma figura de poder que parece manipular as peças em silêncio.
E você, leitor, o que faria no lugar de Aaron? Teria coragem de desafiar o destino e forjar um vínculo tão arriscado? E qual será o verdadeiro impacto dessa decisão na relação com Kaylus, Grace e até mesmo com Ethan, que observa tudo com um misto de lealdade e receio?
Enquanto seguimos nessa jornada, preparem-se para mais reviravoltas, segredos revelados e consequências que, como vimos aqui, não são fáceis de prever. O brilho dourado de Agnes pode muito bem iluminar o caminho... ou lançar sombras ainda mais profundas.
Que os ventos do destino continuem soprando.
Até o próximo capítulo!
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