• Trinta e dois •
Honestamente, se eu me deparasse com o Vinícius transitando aleatoriamente pelas ruas, seguramente desconfiaria do seu parentesco com o Henry, dada a semelhança física entre ambos. A bem da verdade, eles apresentam compatibilidade em quase tudo. Na altura, no porte, na cor da pele, no sorriso encantador, até mesmo na aptidão à ironia e no ar de mistério. As poucas diferenças estão relacionadas, principalmente, ao tom do cabelo e dos olhos, que são ambos mais escuros no Vinícius, assim como nos contornos faciais, que são mais suaves e amenos no Henrique.
No entanto, para ser justa, a disparidade mais profunda reside nos traços menos visíveis. Enquanto o Henry transmite leveza, descontração e tranquilidade, o Vinícius, embora igualmente simpático e atencioso, aparenta conter uma cicatriz irreparável. É como se, em seu interior, ele tentasse continuamente estancar um ferimento que jamais cessa o sangramento. Por motivos inexplicáveis, sinto uma grande compaixão e empatia por ele. Deus, o que está havendo?
Cruzamos as portas da Fruto do Espírito e é como se o tempo parasse. Todos os olhares, que não são poucos, se voltam para nós imediatamente. Com um semblante que flutua entre descrença e vergonha, assisto inúmeras jovens desfilarem em nossa direção com trajes e visuais dignos de um baile da realeza britânica. A Bel não estava brincando quando falou em desespero. Vinícius responde ao incontáveis cumprimentos, gentilmente.
– Irmão – ele sussurra ao Henry entre um sorriso e um aperto de mão –, por que não me disse que os jovens da sua igreja eram tão elegantes?
– Bom, geralmente é bem mais... simples. – Constrangido, ele espalma o suéter preto, que usa sobre uma camisa de botão azul. – Deve ser alguma ocasião especial. Sempre confundo as datas – ele encara a calça jeans e os tênis, desgostoso.
Me esforço para conter o riso e decido intervir. Caso contrário, nenhum convidado conseguirá chegar ao culto, dada a concentração megalomaníaca de moças que se instalou na entrada.
– Henry, por que não apresenta o Vini aos nossos líderes? Tenho certeza de que ficarão animados em conhecê-lo.
Como forma de incentivo, e de dispersão das alucinadas de plantão, empurro os dois na direção do púlpito. Com a saída do Vinícius, a entrada fica liberada em segundos. Céus, a partida veloz do enxame é assustadora, para dizer o mínimo. Ainda encaro a cena, quando o Tales se aproxima de mim.
– Sinceramente, eu não sabia que tínhamos tantas jovens na igreja.
– Não temos – declaro, abismada. – Algumas eu reconheço de outros templos.
– Por que elas foram atraídas até aqui? – Com um maneio de cabeça, aponto para o Vinícius, o novo centro das atenções da cidade. – Okay, reformulando a minha pergunta: Como elas souberam que ele viria hoje?
– Informação privilegiada. Devem ter alguma espiã ou informante aqui dentro.
– Elementar, meu caro Watson.
Com a mão sobre queixo e os olhos semicerrados, ele mimetiza um perfeito Sherlock Holmes. Rio em parte pelo comentário, em parte por sua presença. Tales é sinônimo de leveza e calmaria. Estar em sua companhia é exatamente assim: simples e fácil. Não há exigências. Motivo pelo qual foi tão natural nos aproximarmos durante o processo seletivo do estágio. Ele é detentor de qualidades notáveis.
Particularmente, o considero bonito, com seus olhos amendoados, cabelos negros encaracolados e sorriso gentil. No entanto, a Bel afirma que tenho o hábito frequente de avaliar a beleza das pessoas com o coração. É a nossa discussão eterna, e finaliza sempre do mesmo modo: comigo declarando que o importante é a aparência interior, e ela contra-argumentando que ninguém anda por aí com o corpo ao avesso. A mesma desde que éramos adolescentes.
Segundo a escala feição e porte, criada pela própria, o Tales ocupa um nível 5. Em outros termos: ele não se aproxima do Arthur, mas também não se compara ao seu Luís, o padeiro de dentes tortos e nariz pontudo que ocupa a casa ao lado da sua. E claramente, a minha amiga não possui tendência ao exagero, correto?
Infelizmente, quando afirmo que as suas palavras são fruto de inclinações românticas, ela ri abertamente. A triste, porém verdadeira notícia é que o Tales caiu na chamada zona da amizade. Ela não o vê de outra forma, pelo menos não por hora. Entretanto, as suas chances podem mudar agora que o nosso estimado amigo integra o corpo da Fruto do Espírito.
Tales iniciou a sua caminhada conosco no início de março, quando motivado pelo falecimento do pastor, a sua antiga igreja fechou. Ele se adaptou rapidamente e já integra o ministério responsável pela mídia digital do templo, liderado por Nobu Akira. Inclusive, eu e Nobu nos reaproximamos bastante nos últimos meses e retenho firmemente a premissa de que a partida do Art apresente um valor relevante nessa decisão. Outra chegada que alegrou o meu coração foi a da minha colega de estágio, Alicia Velle. Nossa estimada companheira de escravidão escolheu seguir a Cristo em fevereiro e desde então tem aprendido sobre o amor do Pai.
Observo o Tales abrir um sorriso radiante e me volto à entrada, certa da presença com a qual irei me deparar. Trajada elegantemente em um vestido de renda roxo vibrante, optando por cores neons como é de seu costume, e saltos 15cm, Bel caminha suavemente até nós. O seu cabelo ruivo está disperso em uma trança lateral e os fios soltos enfatizam as suas muitas e encantadoras sardas.
– Onde ele está? – É a sua primeira pergunta ao nos ver.
– Boa noite, senhorita Isabel. Deixou a educação no escritório?
– Sim, os meus chefes consumiram junto ao chocolate quente – ela me lança um olhar astuto. – Tales, você já tirou alguma foto?
– O culto ainda não começou.
– Mas a fofoca sim. Como ele é? Bonito?
– Na minha concepção, ele é bem normal – Tales declara entre dentes, com os braços cruzados. – Aliás, eu ainda não compreendo a razão de ele usar o sobrenome Prinz. Se ele é filiado ao Henry por laços maternos, por que copiar o seu nome de origem paterna?
Parabenizo o meu amigo mentalmente. Poucas pessoas curiosas notaram esse fato. Um delas, claro, é o ser humano que vos fala.
– Bom, de acordo com o Henry, foi um pedido do próprio Vitório Prinz. Ao que tudo indica, ele sempre dispôs todas as ferramentas e recursos necessários à formação do Vinícius. Inclusive, eles são conhecidos no meio médico como Prinz ao quadrado.
– E isso não incomoda o Henrique?
– De forma alguma. Henry me contou que o Hospital Geral Maya Prinz, pertencente ao seu pai, é extremamente conceituado. Portanto, seria egoísta de sua parte privar o amado primo dos benefícios e influência que o sobrenome carrega.
– Quando você diz conceituado...
– Bom, digamos apenas que o Dr. Camilo ofereceu uma vaga de emprego ao Vinícius antes mesmo de ele colocar os pés em Águas Douradas. Declarou ao Henry que seria uma honra clinicar ao lado de um membro do HGMP, ainda que temporariamente.
– De fato, é impressionante. Sendo assim, é completamente justificável o Vinícius usurpar a vida destinada ao seu querido primo – ele ergue uma sobrancelha e carrega o tom com uma ironia ácida e cruel.
É oficial, ele está decido a declarar guerra ao novo membro da cidade. Pai Eterno.
– Não seja ridículo, Tales! Está sendo absolutamente injusto com o rapaz, quando sequer o conhece – com os braços cruzados, ele revira os olhos, cético. – Você não concorda, Bel? – me volto para a minha amiga, que estranhamente assistia a discussão em silêncio, e sou surpreendida por sua postura.
Bel está recostada sobre a parede, com a cabeça inclinada para a direita. Mais pálida do que a face da lua, como se todo o sangue do seu rosto houvesse se esvaído, ela aparenta concentrar toda a sua energia em manter-se de pé. Seus braços estão caídos, seus lábios entreabertos e descorados, e a sua respiração fraca. Seguro a sua mão e chamo o seu nome, mas ela permanece de olhos fechados, sem apresentar qualquer esboço de reação. Céus, o que está havendo?
– Tales, me ajude com a Bel. Ela parece estar prestes a... – E fim.
Não consigo concluir a frase. Minha amiga desaba como uma fruta madura. Com reflexos rápidos, Tales a ampara antes que o seu corpo toque o chão. Ele a deita com delicadeza e ergue os olhos em minha direção. Leio facilmente o seu questionamento silencioso: e agora?
Repentinamente, como um raio em meio a tempestade, uma ideia me ocorre. Claro! Corro em direção ao púlpito. Os jovens conversam alheios a cena, embora não por muito tempo. Independente da minha descrição, eu convocarei o nome mais famoso da noite. E não, para a minha plena vergonha e legítima inquietação, não estou falando do Pai tal como deveria.
– Vini – ele me encara com um sorriso radiante, no entanto, diante do meu semblante abatido, sua expressão torna-se séria –, pode me ajudar, por favor? Uma moça não está se sentindo bem. – Certo, eu poderia dizer desfalecida, mas deixemos que o médico tire as suas próprias conclusões.
Ele assente e me acompanha rapidamente, seguido de perto pelo Henry e, infelizmente, por uma multidão curiosa. Honestamente, eu não compreendo o ser humano. Se há algo que reúne um grupo enorme em segundos é um quadro de desgraça. Santo Deus, ao invés de se afastarem para fornecer espaço aos profissionais e a vítima, eles se amontoam como animais famintos em busca de informações e especulações.
Ao chegar à cena, Vini solicita que todos se distanciem, uma necessidade óbvia, diga-se de passagem, ajoelha ao lado da Bel e inicia os cuidados médicos. Verifica o pulso e a respiração, ajusta a sua cabeça e eleva as suas pernas com uma almofada.
– Cat – seu tom é firme e controlado. Não é possível vislumbrar qualquer semelhança com o rapaz descontraído e disperso que conversava há pouco. – Qual o nome da jovem?
– Isa... bel – gaguejo, nervosa.
– Isabel. Isabel, consegue me ouvir?
Para a minha absoluta alegria, vislumbro a minha amiga dar mínimos indícios de movimento. Meu coração salta e sinto que consigo respirar novamente. Aos poucos, Bel move a cabeça, pressiona os lábios e abre os olhos. Ela aparenta estar totalmente confusa e perdida. Quando percebe estar no chã tenta erguer o corpo, porém, o Vini restringe a sua ação com delicadeza.
– Acalme-se, Isabel. Você sofreu um pequeno desmaio e precisa se recuperar. O meu nome é Vinicius Prinz, eu sou médico e cuidarei de você, tudo bem? – Ela assente. – Ótimo. Sua amiga me contou que o seu trabalho é um tanto estressante, é verdade? – Bel solta um pequena risada de escárnio. – Certo, tomarei isso como um sim. Nesse caso, quando foi a última vez que se alimentou?
Assisto as engrenagens da sua mente girarem incessantemente em busca de uma resposta.
– Na verdade, eu não sei – seu tom ainda é fraco.
– Bom, longos períodos de jejum somados à exaustão, certamente contribuem para situações como essa. Eu não sei como dizer isso, Isabel, mas... acho que a senhorita precisa de um médico – ela ri. Ele é realmente bom no que faz. – Vamos tentar assim: durante os dias de trabalho, irá programar alguns despertadores para lembrá-la de consumir alimentos e água. O que me diz? Parece uma estratégia prática e acessível?
– Tudo bem, acho que eles não me privarão de comer. Embora não possuam uma alma, o fato de não poderem me torturar da prisão certamente deve ser estímulo suficiente.
Diante do seu comentário exagerado, o Vinícius dá uma risada divertida e melódica. Repentinamente, Bel exprime uma face séria e surpresa. Oh céus. Após a sua melhora, ela acaba de perceber quem realmente está na sua frente. Vejo o seu rosto corar dois tons.
– Excelente. Posso respirar aliviado agora – ele sorri e a ajuda a se sentar. – Cat, por favor, tranquilize a todos e informe que a programação pode continuar normalmente. Irei me certificar pessoalmente sobre a recuperação da senhorita Isabel.
– Não é necessário, doutor, eu já estou ótima – ela ergue o corpo rapidamente... Que péssima decisão. Diante de uma tontura, tropeça nas próprias pernas, e o Vini se torna o único obstáculo entre ela e o chão.
– Perdão se me expressei errado, Isabel, mas não foi uma pergunta.
Ele a apoia com os braços, a acompanha até a cadeira mais próxima, e senta ao seu lado. O culto começa e me acomodo junto ao Henry. Os minutos correm e durante a realização das dinâmicas, percebo facilmente a interação entre os dois. Depois de engolir alguns biscoitos e recobrar a consciência, Bel encontra-se em sua melhor forma e conversa animadamente com o Vini. Sorrio com a cena. A despeito da situação constrangedora e tensa, não podemos negar o fato de que ela conseguiu exatamente o que desejava: a atenção do mais novo e célebre residente da cidade. E embora ela pareça feliz, não posso afirmar que este é um sentimento geral.
Suspiro pesadamente. Sinto muito Tales, mas acho que no tabuleiro do amor, você acaba de voltar três casas. Bem-vindo ao ponto de partida, amigo... de novo.
Deito na cama e reviro inquieta, em busca de um sono perdido. E mais uma vez, a minha mente insiste em rememorar a conversa com o Vinícius. Uma, duas, três... a recordação me persegue em loops infinitos.
Estávamos na casa do Henry para comemorar a chegada do seu amado convidado. A noite após o culto parecia tranquila, na ausência de mais emoções como o quase encontro, presencial, com Deus da minha amiga. Decido que a serenidade experimentada oferece o momento mais oportuno para cobrar uma certa explicação. Uso o ambiente saturado como pretexto e convido, coloquemos assim, o Vinícius para o jardim. Em minha singela concepção, ele precisava saborear o ar restaurador de Águas Douradas.
– Bom, Vini... – paro.
Talvez eu tenha dedicado integralmente a minha atenção a armar uma estratégia para atraí-lo sem suscitar suspeitas, porque, honestamente, a minha mente tornou-se uma completa folha em branco. Mordo o lábio inferior em silêncio, orando por uma luz sobre os meus pensamentos, quando a sua voz ressoa em meio ao farfalhar das folhas.
– Cat, eu sinto muito – o seu semblante exprime uma tristeza genuína. – Eu não deveria tê-la colocado naquela situação constrangedora, implorando que escondesse algo do meu primo. Por favor, você pode me perdoar? – Meu coração fica pesado. Ele parece estar sendo sincero. Assinto e toco o seu braço em uma tentativa de confortá-lo. – Eu estava tão preocupado em poupar o Henry, que não pensei direito.
– Então, por que...
– Eu guardo a foto? – ele me retribui um sorriso melancólico. – Para reviver momentos em que os dias eram mais simples, fáceis e felizes – seu olhar é nostálgico. – Se eu pudesse teria feito tudo diferente. No entanto, o passado é um senhorio poderoso e mesquinho. Magoa, alegra, humilha, exalta, mas jamais retorna. – Repentinamente, assim como chegou, o instante passou. O brilho retorna ao seu semblante e um sorriso sereno toma os seus lábios. – Nesse caso, a melhor opção é viver o presente e aguardar por um futuro glorioso, concorda Cat? E estou repleto de expectativas por ambos. Agora vamos entrar, ouvi dizer que há uma torta sensacional a nossa espera – ele me lança uma piscadela e adentra as portas, animado.
Frustrada, bato as pernas contra a cama uma dúzia de vezes e cruzo o braços. Como uma criança mimada, suspiro exasperada. Não consigo entender o que aconteceu e me sinto obrigada a dar um passo para trás e acompanhar o desenrolar da trama sem interferências.
Paciência e confiança, Catarina. É oficial, preciso ter mais cuidado com o que peço ao Deus Eterno. Estou treinando exatamente os meus desejos... Quanta diversão. Sento na cama e converso com o meu Pai. Sinto o meu coração desacelerar e a alegria me preencher, enquanto um único questionamento palpita em meu íntimo: Senhor, o que realmente está havendo?
É só a Cat, ou vocês também estão "encucados" com esses babados todos? Autora, autora, não vejo necessidade de tantos mistérios... Mude isso! beijos (rsrsrs)
Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?!
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