• Trinta e cinco: parte um •
Entre todos os mistérios estranhos e inexplicáveis contidos em romances claramente estereotipados, um deles, em particular, sempre atraiu a minha atenção. Será que é realmente possível encarar fixamente um objeto sem no entanto enxergá-lo? Há algumas horas, a minha mente enérgica e racional teria ressoado um grande e firme não. Porém, nesse exato momento, fito com determinação o meu precioso colar de pérola e quatro pétalas, e ainda assim, não consigo vê-lo.
Uma opacidade, escura e densa, parece recobrir a minha visão, enquanto cenas de um relacionamento feliz e duradouro se projetam em meus pensamentos como um sonho desconstruído. Com uma risada de escárnio e uma pitada de descrença, percebo que talvez, apenas talvez, os adorados clichês que tanto critico tenham algum fundo de verdade afinal.
Dirijo os meus olhos à estrada. Uma decisão inútil já que não me interesso por nada em especial. Os veículos e as árvores que outrora reluziam com cores intrigantes e encantadoras aparentam ter perdido o brilho ou a essência, pois se assemelham somente a meros traços tediosos e fatigantes. Se algum ser ousasse sussurrar em meus ouvidos, que o trajeto entre Águas Douradas e Alto do Girassol estava marcado pelo infortúnio, provavelmente, teria permanecido alegremente na Fuji Sushi House. No entanto, a vida caminha exclusivamente adiante. O passado é como um relógio sem ponteiros: é possível vislumbrá-lo, mas jamais ajustar o seu percurso.
Com a visão periférica capto uma movimentação incômoda nos bancos da frente. Mari e Matias se entreolham, preocupados. Não posso julgá-los. Permaneço imersa no mesmo silêncio sepulcral desde que encontrei o meu namor... bom, o Henrique, desfrutando da companhia da tal Emma no restaurante mais luxuoso da região.
Okay, admito que a ausência de palavras nunca foi uma prática comum à minha rotina, no entanto, diante da cena, os meus músculos e cordas vocais pareceram ter enrijecido... ou falecido. Isso é de fato curioso. A ciência alega que frente a situações inesperadas, o ser humano não consegue prever as suas reações. Uma verdade que comprovei na prática, pois supus que choraria, gritaria, lamentaria, entretanto, me limitei a assistir, mortificada como uma múmia, o meu mundo desabar. Não fosse a intervenção externa, possivelmente, ainda estaria no mesmo lugar, contemplando os olhos do homem que partiu o meu coração.
Porém, nutrisse ele ou não essa intenção, no exato momento em que se esquivou do meu contato visual e caminhou até mim, eu simplesmente recobrei os sentidos... e corri. Céus, era de se esperar que dois anos como praticante de corrida me conferissem alguma vantagem, certo? Ledo engano. Mal consegui sair do restaurante, ele me alcançou e segurou o meu braço. Não, eu não tentei me desvencilhar. Não sou mais uma excêntrica adolescente. Está bem, admito, eu fiz pior. Sim, mimetizei uma criança rebelde de cinco anos e cobri os meus ouvidos. Metaforicamente, claro.
Estava determinada a não escutá-lo, quando uma de suas frases lamuriosas mudou a minha decisão. Em um sussurro pesaroso e quase inaudível, ele soltou por entre lábios trêmulos: "Catarina, você me conhece. Eu não mereço um voto de confiança?"
Em meu íntimo, desejei ardentemente gritar que não. Alegar que o privilégio dele havia terminado naquele instante e que ao mentir tinha perdido todos os direitos inerentes ao nosso relacionamento. No entanto, ele estava certo. Aquilo não era típico de Henrique Prinz. E este é o motivo de que embora resignada, eu tenha concordado em deixá-lo se explicar. A contragosto, diga-se de passagem. Me limitei a assentir e caminhei a passos duros até o estacionamento. Suponho que ele tenha informado ao Matias o ponto de encontro, pois aqui estou, bastante chorosa, no banco de trás do carro.
Chegamos à casa do Henry e o meu coração espanca o peito com a força de um terremoto enraivecido. Observo a portinhola da entrada entreaberta e percebo que ele já está a minha espera. Não nutria esperanças do contrário. A única forma de um idoso de cem anos, portador de doença cardíaca grave, falecer enquanto o Matias dirige, é se ele infartar de tédio. O meu querido cunhado desafia a compreensão humana e supera as tartarugas e os caracóis. Não estou brincando. Esses seres fazem fila atrás dele. Me repreendo, imediatamente. Céus, fico ácida quando estou amuada. "Temperamento digno de um anjo", como declara a minha mãe.
Abro a porta, incerta dos meus sentimentos e imersa em pensamentos perturbadores. Sinto a mão da Mari contra a minha.
– Ouça primeiro, Cat. A precipitação possui um sabor amargo de arrependimento. – Assinto e degluto o vazio.
O meu corpo aparenta possuir incontáveis toneladas, enquanto me movo lentamente. Trilho o mesmo caminho de pedras que mais cedo e paro diante da porta. Assisto o Henrique caminhar de um lado para o outro, nervosamente, até notar a minha presença. Ele me encara com um olhar suplicante e melancólico.
– Katzen – seu tom exibe um alívio genuíno, um indicativo claro da sua incerteza quanto a minha aparição. Será que sou realmente tão dramática assim? Por hora, acho mais aconselhável deixar essa resposta em suspenso. – Vamos conversar. Sente-se aqui, por favor – ele aponta para o sofá.
Honestamente, não me orgulho das minhas próximas palavras, mas, infelizmente, não consigo evitá-las.
– Estou bem de pé – declaro com uma voz dura capaz de cortar o aço mais firme.
Seu semblante adquire um misto de aflição e frustração e o vejo suspirar de modo pesaroso. Cruzo os braços e mantenho uma expressão altiva. Sim, eu o magoei. Porém, embora errado, uma parte de mim deseja que ele compartilhe uma amostra do sofrimento que está me causando. Eu sei, uma atitude plenamente imatura, egoísta e cruel.
– Minha pérola, por favor. Eu prometo contar a...
– Verdade? – O interrompo, incrédula. – Ainda sabe como fazer isso? – Carrego cada termo com uma ironia maliciosa.
Sinto o meu peito queimar e, repentinamente, sou tomada por absoluto constrangimento. Por quê? A resposta salta em meu coração no formato de um simples trecho: "Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem, também será usada para medi-los". E vamos de Mateus 7:02 apenas para recordar à qual Reino pertenço. Okay, Deus, mensagem recebida.
Cesso os comentários maldosos, caminho até o sofá e sento, desgostosa. Este momento é o ápice da minha identidade cristã. Jamais havia sido tão difícil expressar o Pai quanto agora. Respiro lentamente, buscando forças celestiais, e me volto para ele, com um convite silencioso para que me acompanhe. Henrique se posiciona ao meu lado, mantendo uma distância segura. Excelente ideia.
– Cat – inicia – eu sei que o quadro parece terrivelmente óbvio, mas eu prometo que posso explicar.
– Então, por favor, explique – me esforço para transparecer equilíbrio e serenidade. Considerando o meu estado emocional, acredito que estou conduzindo a situação perfeitamente bem. – Me diga o que estava fazendo em Alto do Girassol, no meio da noite, com a senhorita Emma, sua ex-namorada, quando afirmou categoricamente que estaria trabalhando em casa. – Talvez, não tão perfeitamente assim. Ele me encara confuso.
– Como sabe que é a Emma?
Paraliso. Céus, esqueci completamente. Henrique ainda desconhecia os verdadeiros detalhes do incidente de dois meses atrás. Permanecia ignorante quanto ao meu discernimento acerca da aparência da criatura em questão. Bom, se estou realmente cobrando honestidade, não posso manter a verdade oculta.
– Eu a vi em uma foto.
– Onde?
Hesito e mordo o lábio inferior.
– Encontrei um porta-retrato na mala do Vinícius, enquanto procurava o presente dado por sua tia. Era uma representação da sua penúltima festa de aniversário.
Ele fecha os olhos e solta um suspiro longo. Seu semblante transparece exaustão.
– O Vinícius ainda guarda essa foto? Eu o aconselhei inúmeras vezes a se livrar dela, e ainda assim...
Ele corre uma das mãos sobre os cabelos macios, e maneia a cabeça, incrédulo. Meu coração acelera. Se ele possui conhecimento sobre a imagem, então, por que... Eu não entendo. Pai, estou oficialmente desorientada.
– Suponho que o meu primo solicitou que guardasse segredo, correto? – Assinto. Ele não parece ofendido ou irritado, apenas triste. – Isso não é justo.
Decido por interrompê-lo antes que o meu cérebro esgote a reserva enérgica restante tentando desvendar frases soltas e sem sentido.
– Henrique, qual a relação entre o Vini e a sua ex-namorada?
Ele se volta para mim com um semblante que mescla constrangimento e surpresa.
– Cat, eu sinto muito se a fiz pensar desse modo, porém, eu jamais travei qualquer relacionamento amoroso com a Emma.
Abro a boca, abismada. Oi? Alguém mais está absolutamente perdido?
– Mas, você disse...
– Por favor, me permita contar a narrativa do início – ele segura as minhas mãos, no entanto, as solta em segundos de modo relutante. – Ao final, acatarei a sua decisão. Seja ela qual for.
Assinto. Embora temerosa, me anima de certa forma que o misterioso quebra-cabeça que me assombra há meses encontrará o seu fatídico término. A despeito dos percalços, posso ouvir um coro angelical ressoar do mais alto céu.
– Bom, os meus pais – Henrique não estava brincando quando alegou que partiria do princípio –, se conheceram em uma pequena Igreja de Vale Negro quando eram adolescentes. Ambos cristãos desde a infância e apaixonados pela Obra do Pai, não viram empecilho em se casarem após pouco menos de dois anos entre namoro e noivado. O meu nascimento somente coroou a sua felicidade, e eu cresci cercado de amor e fé. No entanto... – ele para.
Vislumbro os seus olhos dourados acumularem um mar de água cristalina e percebo o quanto o assunto o magoa. Honestamente, não é difícil supor a temática.
– Infelizmente, aos meus onze anos, a minha mãe foi diagnosticada com um tumor cerebral agressivo. O meus pais tentaram todos os tratamentos, mas não houve um único médico que alimentasse esperanças sobre a sua cura. Eles oraram, incessantemente, porém, o quadro dela se agravava a cada semana de modo rápido e visível. Após oito meses, em um dia qualquer, ela decidiu deixar o hospital, contra os infinitos argumentos do meu pai. Declarou que estava cansada e certa de uma verdade irrevogável: o seu viver pertenceu a Cristo, portanto, o seu morrer seria um ganho imensurável. Estava na hora de encontrar o Pai. Minha mãe permaneceu conosco por mais quatro meses – as lágrimas escorrem por sua face, estranhamente tranquilas. – Durante as suas últimas dezesseis semanas, ela assistiu o pôr do sol, enquanto repetia: "Porque Deus é bom, e o seu amor incondicional dura para sempre."
– Depois que ela partiu, ficamos apenas eu e meu pai. Entretanto, a perda foi capaz de operar uma transformação severa, e o homem alegre, de fé e coração bondoso que eu conhecia, também foi sepultado naquele dia. Ele passou a culpar Deus por seus infortúnios e abandonou a igreja. Alegava que existiam apenas duas opções plausíveis: ou Cristo era cruel, ou não era real. Seja qual fosse a resposta em sua mente, ele decidiu que não moveria mais um único milímetro por uma "divindade fajuta" – Henry pressiona os lábios, como se buscasse absorver o poder penetrante daquelas palavras.
Sinto o meu sangue congelar dentro dos vasos e embora empática, não posso sequer imaginar a dor que o preenche.
– Entretanto, diferente dele, eu me prendi com mais firmeza aos caminhos do Pai. Ele se converteu na minha única fonte de alegria e paz. Passei a frequentar a igreja quase diariamente, acompanhado da minha tia. Um ponto positivo, já que eu não encontrava mais, na minha própria casa, um lar. O meu pai perdeu por completo o interesse por mim. A minha tia alegava que a profunda semelhança física existente entre mim a minha mãe, tornava a situação insustentável para o homem amargurado. Aceitei a explicação, mas a cada oportunidade que ele me procurava exclusivamente para verificar o meu rendimento escolar e me oferecer dinheiro, eu sentia o abismo que nos separava ser alargado. – Ele suspira e me apiedo da sua condição.
Acaricio o seu ombro na tentativa de confortá-lo e assisto um sorriso singelo de gratidão curvar os seus lábios.
– Bom, foi exatamente nesse cenário caótico que a Emma surgiu em minha vida.
Puxo a minha mão, determinada. O doce instante passou com uma brisa em meio ao deserto.
– Nos conhecemos quando crianças, afinal, os nossos pais eram amigos e pertenciam ao mesmo corpo denominacional. No entanto, foi apenas durante o luto que ela se mostrou uma verdadeira companheira. Nos conectamos a ponto de não ocultarmos qualquer segredo um do outro. Emma me apoiou, se fez continuamente presente, e junto ao Vini, me auxiliou no enfrentamento das etapas do sofrimento e da perda. Tudo caminhava perfeitamente bem, até o meu aniversário de quatorze anos. Fazia pouco mais de um ano da morte da minha mãe. Como presente, os meus tios me preparam um aniversário no templo.
– Como esperado por todos, exceto por mim, o meu pai compareceu junto a nova namorada. A jovem garota, provavelmente a sexta ou a sétima da sua longa lista de pretendentes, possuía, no máximo, a idade necessária para ser considerada a minha irmã mais velha. Aquilo foi um duro golpe ao meu coração. Entretanto, mal sabia eu que aquela atitude cruel somada a palavra ministrada, mudaria a minha vida para sempre. – Ele se interrompe, pensativo.
Sério, Henrique? Qual a necessidade de aplicar uma pausa dramática nesse momento estarrecedor? Sinceramente, se eu não estivesse absolutamente tensa, reviraria os olhos, sem dúvidas.
– Bom... – retoma, após um minuto. Atormentador, diga-se de passagem. – O pastor falou sobre relacionamento, e pela primeira vez, eu consegui enxergar a importância e seriedade de estar ao lado de alguém que compartilha os seus princípios e a sua fé. Assistir o meu pai ser enlaçado por um sistema de compensação e ressentimento, em que ele buscava travar um compromisso baseado nas necessidades emocionais de alívio e prazer temporários, provocou em mim um intenso desejo de encontrar no casamento um propósito divino. E nesse exato momento, decidi que iria esperar pacientemente pelo sim do Alto. – Imediatamente, a minha mente reproduz as palavras do Vinicius.
No nosso primeiro encontro, ele chamou o primo de escolhi esperar. Uma alusão ignorada por mim, mas bastante conhecida por ambos. Mais uma peça encaixada com sucesso. Sinto que finalmente enxergarei o quadro completo.
– Para a minha indiscutível alegria, a oportunidade de cumprir essa promessa surgiu oito anos depois. Durante a celebração da minha formatura, eu dançava valsa com a Emma, quando senti o meu coração acelerar como um trem desgovernado. Naquela noite, descobri que estava profundamente apaixonado por ela, e nutria fortes indícios de que o sentimento era recíproco.
Por um momento eu esqueci como respirar e perdi o fôlego. Absorta na história, não me dei conta de que esse era o caminho natural da narrativa. Pois bem, a despeito de ter solicitado que ele me explicasse a verdade, admito que esse detalhe em particular feriu a minha alma como flechas envenenadas. Suspirei e ele afagou os meus cabelos. Os seus olhos me encararam com serenidade e compreensão, e de modo inexplicável, o meu interior foi tranquilizado. Com um sinal silencioso, o estimulo a prosseguir.
– Eu decidi que oraria a respeito, muito embora, detivesse uma firme convicção de que a resposta seria positiva, afinal, a Emma era uma boa amiga, cristã e de personalidade amável. Dizem, entretanto, que Deus nos surpreende. E foi assim que me senti ao receber uma negativa celestial. Claro como um relâmpago em meio a noite escura, ouvi do meu Pai que eu estava errado. Não era ela – Henrique se interrompe e me observa com um cenho franzido. – Katzen, você está respirando?
Solto o ar que desconhecia estar aprisionado em meus pulmões e ele ri.
– Por que não se limita a permanecer na história?
Corada, cruzo os braços exibindo um semblante indiferente. Certo, eu admito que fiquei extasiada pela descoberta, no entanto jamais, durante toda a minha existência sobre o plano terreno, deixarei esse fato escapar dos meus lábios.
– Está bem – ele ergue os braços em rendição. – Como eu dizia, não posso alegar que entendi a razão para tal resolução, ou que fiquei radiante com a decisão, porém, após duas semanas, simplesmente a aceitei. Aprendi com a minha mãe que, mesmo alheio a compreensão humana, o Pai sempre possui planos perfeitos, mais altos e seguros que os nossos. Não precisamos explicá-Lo, somente obedecê-Lo. Assim, decidi que conversaria com a Emma naquela noite – ele leva a mão a nuca, nervoso.
Não parece que o diálogo se assemelhou exatamente a um campo florido.
– Infelizmente, para o meu completo desalento, ela trouxe até mim uma resposta diferente. – Como? – No entanto, eu não acolhi a permissão. Era incontestável ao meu coração a negativa do Senhor Eterno. Era improvável que eu houvesse me precipitado, assim como era impossível que Ele nos apontasse caminhos distintos. Tentei explicá-la, entretanto foi em vão. Emma me taxou como mentiroso, arrogante e egoísta. E assim que ela me deixou, eu soube. Podíamos compartilhar da mesma religião, mas não da mesma fé. Ela ignorou a verdade e a nossa amizade havia encontrado o seu fim da pior forma possível.
Certo, eu não estava perdida no início. Porque absolutamente nada pode se comparar a como me sinto agora. A minha mente é um mar de dúvidas e incertezas.
Deus, a que lugar o Henrique pretende me levar?
E então, ansiosos para a parte dois? Eu estou, so let's go!!
Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?!
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