• Quarenta e um: parte dois •
Encaro o Arthur com olhos absolutamente atentos. Mas com atenção genuína, e não aquelas encontradas no fundo de um pacote de café. Minha concentração está em um nível tal, que caso uma borboleta desaviada resolva passar na minha frente, sou capaz de calcular a sua trajetória de voo e prever o seu destino. Falando francamente, se canalizasse esse foco para a faculdade, seria superdotada ao invés de super atarefada e super desesperada.
– Como mencionei anteriormente, durante o período noturno, possuía um compromisso com alguns amigos da igreja, que dista poucas horas de Vale Negro.
– Achei que você frequentasse a igreja da sua mãe.
– Não exatamente. Bom...
– Mas você não comentou que se tornou membro da igreja que ela faz parte?
– Apenas nas primeiras semanas. Depois me mudei para um templo no interior, onde me adaptei melhor.
– Mas eu pensei que...
– Vai me deixar terminar a história ou não, Sherlock?
Assinto. Céus, não se pode mais fazer uma pergunta hoje em dia.
– Então, o Sr. Hansen, de quem gosto muito, havia me convidado para conh...
– Espera! – Não é possível. – Você disse Hansen?
– Disse, Catarina.
– Mas esse é o outro sobrenome do...
– Henrique. – Deus Eterno! Me preparo para dividir com o mundo todo o choque que estou sentindo, quando o Art empurra o dedo indicador contra os meus lábios. – Eu prometo que se me interromper novamente, vou colar a sua boca com uma fita. Fui claro?
Seu tom sombrio não abre margem para discussão. Me limito a assentir e ele sorri, satisfeito. A bíblia que está certa: nos últimos dias, o amor de muitos esfriará.
– Pois bem, como eu dizia, o Sr. Hansen me convidou para conhecer o neto que chegava de viagem. No momento que entrei na fazenda, me deparei com o Henrique recostado em uma cadeira de balanço, conversando com o avô. E antes que pergunte – eu? Jamais –, os avós do Henrique também frequentavam a mesma igreja que ele. No entanto, após a morte da Sra. Maya, eles não aguentaram as infinitas lembranças e mudaram de cidade, assim como de templo.
Não posso julgá-los. Não consigo sequer imaginar a dor da perda de um filho. Suponho que de forma alguma agiria diferente.
– Quando compartilhamos a coincidência, todos se divertiram. Foi nesse ambiente de gargalhadas, que o Sr. Hansen deu início a um pequeno culto de gratidão pela chegada do neto. Após o jantar, nos reunimos ao redor da fogueira para desfrutar de marshmallows com chocolate quente. Terminei sentado ao lado do Henrique e conversamos por uma hora ou duas, até o momento da partida. No instante que me preparava para deixar a fazenda, o Henrique me interceptou.
"Arthur, por quanto tempo me aconselharia a viver preso ao passado?"
– E lá estava a expressão serena, mas firme, que minha mãe havia descrito.
"Acha realmente que esse truque vai funcionar duas vezes?"
– Ele não se abalou com a devolutiva.
"Depende."
"Depende do que?"
"Da resposta. Você seria capaz de me dar uma resposta diferente?"
– Ele permaneceu com os olhos fixos aos meus, então decidi optar pelo único caminho que supus ter o poder de demovê-lo: a verdade.
"Ainda não estou pronto para voltar."
– E para minha surpresa, ele soltou uma risada. Sério, uma aberta e genuína risada.
"E é aí que reside o problema, não é mesmo? Por um lado você não se sente pronto, mas em contrapartida, ora insistentemente para que Deus lhe revele o momento certo de retornar para casa."
"Como você..."
"A verdade é que que jamais seremos fortes o bastante para mover uma montanha. Porém, isso não impediu Cristo de dizer que iremos. Por quê? Porque não depende de esforço próprio, mas de fé. O primeiro passo é fruto da crença que temos em Deus, os próximos são simplesmente fruto da crença que Ele tem em nós."
– Com uma expressão séria, ele se aproximou e colocou a mão sobre o meu ombro.
"Amanhã retornarei à Águas Douradas no primeiro voo da manhã, sem a Bel. Aguardarei você no portão cinco do Aeroporto. Não me decepcione."
– Me limitei a assentir em silêncio e caminhei em direção ao portão.
"Arthur" – virei e ele me encarava com um sorriso irônico –, "caso precise de um sinal mais específico do que Deus ter enviado o seu maior rival romântico como menino de recado, peça uma seta em neon da próxima vez. Já que aparentemente, Ele não foi claro o suficiente. Tenha uma boa noite."
– E aqui estou eu. Ah, só para constar: acredito que Ele foi deveras convincente. Não deixou dúvida.
Abro e fecho a boca algumas vezes, permitindo que cada frase assente em meu íntimo. Após poucos ou infinitos minutos, que claramente não sei precisar, Art decide continuar independente de mim, já que aparentemente eu havia engolido as palavras e, talvez, a língua.
– Para ser justo, eu não estava infeliz em Vale Negro. Apenas sentia em meu coração, que aquele não era um lugar de permanência, mas de passagem. Como se existisse algo novo, ainda em construção, só aguardando que eu esteja pronto, entende?
Seus olhos transparecem vivacidade e expectativa. E como não seria desse modo? Quando estamos com Cristo, se é vale ou se é monte pouco importa diante da plenitude da Sua presença.
Aperto sua mão, em parte emocionada, em parte contagiada pela sua confiança no Pai.
– Sim Art, eu entendo. E fico grata por você ter decido permanecer aqui.
Repentinamente, ele ajusta a postura, como se estivesse desconfortável. Isso ou a cadeira está repleta de farpas.
– A bem da verdade, reconheço que Águas Douradas represente a minha linha de chegada, apenas não acredito que já estou no fim do percurso. Sinto como se experimentasse uma estação de repouso em meio a uma longa corrida.
– Então você vai embora? – Questiono, surpresa.
– Claro que não.
Okay, posso não ser a melhor intérprete de comportamento, mas essa negativa foi mais forçada do que quando tento vestir as minhas roupas após o jantar de ano novo. E somente para deixar registrado: nunca convence.
– Minha mãe ficou extremamente abalada com a minha partida, enquanto o meu pai exigia o meu retorno imediato todos os dias, a cada longo intervalo... de cinco minutos. Não sei se é certo deixá-los. Me sinto como aquelas crianças em briga de guarda compartilhada.
Ele entrelaça as mãos sobre a nuca e encosta a testa contra a mesa. Subitamente, uma chama domina o meu coração. Céus, todas as vezes que isso acontece torna-se uma situação levemente constrangedora... para mim.
– Você está errado – declaro, um tanto histérica, sem motivo aparente.
– O que? – Ele ergue a cabeça, surpreso.
Bem-vindo ao clube. Meu roteiro atual tem um total de zeros palavras não programadas.
– Você está errado – repito com a voz já regulada para um tom mais aceitável aos seres humanos normais.
– Sobre? – arrisca, embora eu saiba que no fundo está silenciosamente questionando a minha sanidade mental.
– Já basta de usar os seus pais como escudo ou como desculpa – ele abre a boca, abismado.
É oficial, prevejo internação hospitalar em instantes. Espírito Santo, uma ajudinha para amiga aqui?
– Cat, o que...
– Arthur, você já não é mais criança para ser motivo de disputa entre os seus pais. Você consegue imaginar Salomão ameaçando dividir um jovem barbudo de vinte e cinco anos? Qual o sentido disso? – Nenhum, Catarina. Continue antes que cometa mais alguma heresia contra outro marco bíblico. – Será que não percebe que toda essa situação remete a um ciclo vicioso?
Okay, entendo que soou duro e que pareço relativamente louca, porém, infelizmente, é a verdade. Por maior amor que os pais detenham pelo Art, ambos derramaram tsunamis emocionais controversos sobre ele. De um lado, a imposição de um afastamento punitivo, do outro, a autoflagelação por culpa.
Durante anos, assisti o meu amigo viver sobre a corda bamba: fazer demais e se importar de menos. O primeiro, pelos outros, o segundo, consigo mesmo. A razão? Sempre a mesma: instabilidade emocional. A necessidade de aceitação e o desejo de afeição externa, o fez buscar rotas tortuosas e caminhos por vezes sombrios. E qual o resultado? Ele culpado ou ferido, trilhando os mesmos passos e recomeçando o ciclo. Isso precisa de um basta!
– Me pergunto, até quando você permitirá que o passado interfira no seu presente e desenhe o seu futuro? É fato que o Pai possui algo novo, mas você precisar deixar que ele alivie esse fardo pesado que te prende à autocobrança intensa e expectativas alheias. Você já foi capaz de perdoar o seu pai e a sua mãe, por que não pode fazer o mesmo por si? "Afinal, o primeiro passo é fruto da crença que temos em Deus, os próximos são simplesmente fruto da crença que Ele tem em nós."
Repito as palavras do Henry e ao deglutir o vazio, ele me informa de que estou no caminho certo.
– Art, você deve honra e respeito aos seus pais, mas acredite, eles ficarão bem longe de você. – Tomo a sua mão entre as minhas e suavizo a voz até que ela se torne não mais do que um sussurro afável. – Eu ficarei bem longe de você.
Ele me encara em absoluto choque, e sou dominada pela convicção de que tal reação se refere mais à minha última frase do que a todo discurso anterior.
– Me perdoe pelo meu pequeno – não tão pequeno – episódio levemente melodramático – não seria escândalo? – de mais cedo. Estou ciente de que fui egoísta e imatura – para não dizer teatral e patética.
Vergonha não mata, mas humilha de modo deveras eficiente.
– Como sua amiga, é meu dever ser um ponto de apoio, não um obstáculo. Por isso, eu prometo que estarei ao seu lado. Prometo que sempre te impulsionarei a ir mais longe. Mas acima de tudo – certo sim, fácil nunca –, prometo que essa é a última vez que peço para você ficar.
– Porque não precisa mais de mim, certo?
– Céus, Arthur, a pessoa oferece a mão, e você já busca o pé? Não precisa ir tão longe.
Reviro os olhos e ele sorri. De um sobressalto, ergue o corpo e me puxa para o seus braços.
– Obrigado, Cat.
E na simplicidade dessas palavras, experimento o seu afeto e permito que o meu coração seja inundado por ele. Porque pela primeira vez desde que nos aproximamos, sinto que finalmente conseguimos elevar a nossa amizade a um patamar saudável e equilibrado... para ambos.
– Cuidado senhorita, ou posso terminar apaixonado por você. – E fim. O encaro com olhar homicida e ele devolve uma expressão de falso arrependimento. – Muito cedo?
– Absolutamente. – O empurro e ele se diverte.
Novidade aos navegantes: o Art continua o mesmo egocêntrico e exibido de sempre, para felicidade geral de ninguém. Que alegria.
Maneio a cabeça, a fim de demonstrar toda a minha desaprovação, e torno a sentar elegantemente, pronta para desfrutar a última porção da minha sobremesa – sim, a deliciosa parte do meio que habitualmente as pessoas inteligentes guardam para o final –, quando o incircunciso, que um dia chamei de amigo, rouba a minha fonte de alegria e joga na boca, sem a menor empatia pelos meus sentimentos.
– Qual é o seu problema, Arthur? Quantos anos você tem?
Surpreendida pelo meu tom nada sereno, a Sweets & Books se volta inteiramente para mim, levemente abalada pela minha ausência de finesse. Art ri abertamente, como se não fosse o próprio, a razão dos meus cabelos brancos. Céus, quase sinto falta do modo apaixonado rejeitado que o mantinha sob controle. Ah, era tanta paz.
Ainda me recupero do vexame, quando sinto um leve toque sobre o meu ombro esquerdo.
– Desculpe interromper o... diálogo – o pobre garçom não ousou dizer acesso de loucura –, mas aqui está a sobremesa do Star Wars que a senhorita solicitou para a viagem.
Assinto, e recebo o belo embrulho já certa do que está por vir.
– Mimando o namorado, Cat?
E aí está o comentário maduro e irônico que todos aguardávamos. Quando se tem um amigo como o Arthur, a esperança não morre... é assassinada.
– Eu poderia responder. Mas não é da sua conta – retribuo com a expressão altiva.
Ele cruza os braços e recosta na cadeira, com um sorriso lateral brincando em seu rosto.
– Você não costumava ser tão romântica na minha época.
– Eu não tinha namorado na sua época.
Reviro os olhos e passo a arrumar a fita vermelha que envolve a pequena caixa branca e dourada.
– De fato. – Ergo os olhos rapidamente. Não, com certeza não foram as palavras que atraíram a minha atenção, mas o tom sério. Estranhamente profundo e igualmente raro. – Vê-la assim me faz compreender a razão de ter escolhido o Henrique.
Ele se apoia sobre a mesa e se aproxima, como se estivesse prestes a contar um segredo.
– No momento que pisei em Águas Douradas percebi que você estava... levemente diferente.
Diferente? "Ah, Cat, é reconfortante saber que você continua a mesma. Ou quase." Suas palavras emergem em minha mente, altas e súbitas.
– A cada instante que passamos juntos, no entanto, esse fato tornou-se mais evidente. É notório que você aprendeu a ceder, a expor e explorar os próprios sentimentos. De alguma forma, sinto que o Henrique... mudou você. Algo que tentei durante anos, ele conseguiu em meses. Não sei como, mas aí está.
Ele dá de ombros, enquanto o meu cérebro vira uma gelatina estranha e disforme. Como assim, o Henry me mudou?
– Enfim, parece que você tem um coração, afinal.
Como é?
– Só para deixar claro, saiba que o único motivo de você permanecer vivo, reside no fato de que ainda estou processando a informação, e ponderando se mais me elogiou ou ofendeu nesse discurso.
Ele solta uma gargalhada aberta. Rio para acompanhar, embora jamais tenha sido tão honesta.
– Nesse caso, deixarei a senhorita envolta nessa dura missão e partirei rumo ao meu lar.
Olho para o relógio: já passa de meio dia. Céus, esse foi literalmente o café da manhã mais longo da minha vida.
– Tudo bem, eu levo você. Preciso apenas pagar e...
– Bobagem, sei que está ansiosa para reencontrar o seu príncipe. E não adianta revirar os olhos, Catarina, está escrito na sua testa e no vermelho intenso das suas bochechas.
Estaciono os meus preciosos olhos a meio caminho do seu destino e repreendo os meus vasos sanguíneos, mentalmente. Às vezes é irritante o tanto que ele me conhece. Decido erguer o nariz e cruzar os braços, para fins de registrar o meu posicionamento.
– E como pretende ir para casa? De jato?
– Ótima ideia, mas hoje irei caminhando. Quero absorver um pouco da minha cidade.
Oi?
– Nos longos e intermináveis quinze minutos que distam a sua casa?
– Na verdade, preciso pensar um pouco e...
– Ficar sozinho? – Ele assente. Não posso julgá-lo. – Está bem. Quando precisar, sabe onde me encontrar, certo?
Ele sorri e me abraça afetuosamente. Com um toque suave na ponta do meu nariz, se dirige a saída.
– Cat... – Ergo os olhos e ele me encara com um sorriso travesso. – Nos vemos hoje à noite.
Assinto, enquanto o vislumbro partir.
É estranho pensar em como o Art está diferente. Porém, mais do que isso, é difícil imaginar que a curta presença do Henry tenha sido capaz de operar mudanças reais em meu interior.
Para ser franca, não observei nada de novo. A menos que... Levanto da cadeira, decidida. Tomo a fita vermelha em uma mão e a chave do carro na outra, e me preparo para encontrar o meu namorado.
Expor e explorar. Vamos ver até onde o projeto de detetive está certo.
Expor e explorar... a vida alheia?!!
AAA DDD OOO RRR OOO!! Hehehe
Partiu próximo capítulo, autora?
Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?!
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