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• Quarenta e quatro: parte um •

Encaro a imensidão azul e inspiro lentamente. É difícil se manter alheia a magnitude da natureza quando se está de frente para ela.

Entretanto, não é curioso como a grandiosidade que enxergamos, na verdade é fruto da união entre ínfimos detalhes, que são perfeitos pela singularidade, justamente pelas imperfeições que possuem?

Nobu limpa a garganta e acordo do meu torpor. Com certo constrangimento, percebo que provavelmente estive mergulhada nos labirintos do "Catverso" por um tempo indefinido, porém, infinito. Confiante no Pai, me volto para o homem que me aguarda com uma atenção imperturbável, e permito que as palavras brotem livres do meu coração, sem as amarras do medo e da incerteza.

– Lembro da primeira vez em que estivemos aqui – inicio com a fluidez emprestada das águas. – Eu tinha oito anos e você, dez. O seu pai nos deixou brincando na areia, enquanto negociava com o Sr. Hiroshi. Passamos a madrugada caçando aventuras e tesouros perdidos, até que, por fim, encontramos uma concha especial, perolada com raias azuis, escondida sob algas e pedras.

– Assim que os meus olhos pousaram sobre ela, fiquei encantada com o quanto brilhava frente às outras. Me recordo de segurá-la com tamanho zelo e firmeza, que ainda hoje não compreendo como ela escorregou entre os meus dedos. O fato é que uma pisada foi o suficiente para parti-la em duas, assim como o meu coração. Céus, como chorei. Tal era o meu nível de sofrimento, que não me surpreende terem questionado ao Sr. Akira se algum membro da minha família havia falecido.

Dramática? Jamais.

– Lembro de retornar para casa, amuada, me jogar contra a cama e dormir. Quando acordei, havia um embrulho marrom sobre os meus lençóis. Dentro dele, residia a minha concha, absolutamente íntegra, e um bilhete muito interessante:

"Para: Akachan
Da próxima vez não precisa chorar, é só me dizer o que você quer.
Ass: Nobu"

Cruzo os braços e arqueio a sobrancelha.

– Bom, pode-se notar que sempre fui um tanto prático, não?

Ele sorri com a mão sobre a nuca, reduzindo os olhos à uma linha quase tão reta quanto o horizonte. Um protótipo exato da nossa infância.

Céus, como eu vou dizer... Okay, não faça rodeios. Apenas seja você mesma... Só que melhor. Cristo!

Vamos, Catarina, abra a boca.

– Eu voltei – solto, um tanto histérica.

Certo, admito que na minha mente pareceu mais suave. Tudo bem, só reajuste o microfone, respire e recomece.

– Na tarde que você deixou Águas Douradas, eu voltei à sua casa... voltei por você, mas era tarde demais.

O sorriso desaparece. Ele remexe contra o muro, claramente desconfortável. É fácil constatar que entre as temáticas cogitadas, essa definitivamente não integrava a sua lista de hipóteses prováveis. Bom, não posso julgá-lo.

– Durante todos esses anos, evitei pensar ou mencionar aquela noite. Aquele fatídico minuto em que dei as costas à nossa amizade, à nossa história e ao sentimento que nos unia. Nos últimos oito anos, reprimi qualquer mera lembrança que pudesse me transportar novamente ao momento da nossa separação. Mas, infelizmente, não existem esquivas eternas, certo? – Penso no trajeto levemente constrangedor à Alto do Girassol e na conversa reveladora com o Vini. – Um passado mal resolvido é exatamente como um bumerangue: sempre retorna. Resta apenas saber quando e onde.

Sinto o meu sangue latejar contra as veias e a minha respiração, rápida e intensa. Ao final de cada frase sou imediatamente conduzida à próxima, como se o  meu coração, por vontade própria, lutasse para arrancar as ervas daninhas do seu quintal.

– Sabe, por muito tempo imaginei que me sentia apenas culpada pelo que houve entre nós. No entanto, estava errada. – Okay, autodescoberta interessante. – Não foi culpa que experimentei ao saber da sua partida. – Não? – Foi arrependimento. – Verdade, Deus? – Porque, sendo bem honesta...

Me interrompo de súbito.

Não, é impossível! Cristo, não posso acreditar que... Isso seria tão imaturo e... Então, por que eu...

Uma após a outra, a despeito da minha intensa resistência, todas as peças se encaixam. A fuga da sua proposta, a substituição imediata da sua amizade, a relutância em procurá-lo... Céus, como pude ignorar na época, algo que hoje é tão explicito? O que mudou?

Bom, eu. No caso, a minha visão, para ser mais precisa. Há alguns meses, não possuía uma referência real para... Deus da Glória. Em um instante, a imagem final se torna completa: óbvia, clara e nítida.

Absolutamente chocada, finalmente percebo que nos últimos anos, a minha mente apenas se esforçou em ocultar a verdade que o meu coração sempre soube.

– Então, acho que eu era apaixonada por você, afinal.

E é isso. Se alguém por aí nutre o desejo oculto de surpreender Nobu Akira, saiba que a partir de hoje o seu limiar de espanto sofreu uma boa valorização: uns dez mil pontos na "escala pasmem". E dada a circunstância, não posso dizer que me encontro em um estado diferente. Graças ao Pai, estou sentada. Amém.

O encaro de soslaio: nada. Nenhum sinal de que há vida nesse corpo. Nobu não emite uma única palavra. Por um tempo indefinível, se limita a sustentar uma expressão limpa, vazia. Em alguns momentos, abre a boca, mas fecha logo em seguida. Seus olhos se fixam em objetos aleatórios, enquanto aparenta desenvolver uma nova fórmula matemática, dado o seu nível de abstração.

Pois bem, após atestar que ele permanecerá por séculos, ou eras, nessa dita posição, decido prosseguir. Caso contrário, criaremos raízes aqui. 

– Quanto mais profundo mergulho no passado, mais compreendo que não estava fugindo de você, e sim de mim mesma. A verdade é que jamais planejei ter na minha vida, algo que não suportasse perder.

Céus, acho que isso explica o meu comportamento ligeiramente sociopata. E eu quase acreditei que portava um psicológico questionável. Mas vejo que sou perfeitamente nor... Melhor não entrar nesse mérito.

– Portanto, admitir os meus sentimentos implicava obrigatoriamente em reescrever as minhas convicções e expor uma vulnerabilidade cuidadosamente camuflada.

Lembro do caminho, não exatamente pacífico, que trilhei até o Henry.

– Ainda hoje, não é fácil. Mas, aos dezesseis anos, sequer parecia possível. Eu não estava pronta.

Sorrio, mas ele permanece sério. É nesse exato milésimo de segundo que um questionamento sopra aos meus ouvidos como uma brisa primaveril – leve, porém persistente –, e dou voz a ele sem sequer processar o seu conteúdo.

– E você, Nobu? Estava? – Ele ergue olhos indecifráveis. – Estava pronto para mim?

E mais uma vez: sem retorno. Que novidade. Não havia um momento mais oportuno para cumprir o estereótipo oriental, homem?

Nobu cruza as mãos e passa a encará-las, como se estas contivessem a reposta que procura. É inexplicável, mas não posso abandonar a sensação de que a cada reflexão, ele visita uma fenda do nosso passado que desconheço.

Após um tempo que deve se localizar entre um oitavo e um quarto de infinito – para a minha absoluta surpresa, diga-se de passagem –, ele nega. Como assim, Deus?

– Ao que parece, Nobu, eu não podia ser quem você queria e você não podia me dar o que eu precisava, certo? – E embora seja uma pergunta, em meu íntimo soa como uma certeza.

Bom, não sou a única. Nobu não concorda ou discorda, apenas se limita a contemplar o horizonte, mergulhado em um silêncio lúgubre. Por alguns instantes, me deixo envolver pelo som opaco da areia translúcida sendo arrastada pelo vento, até que a sua voz branda, reverbera curiosamente potente.

– É de fato intrigante como a vida se desenha. A cada ponto da caminhada, somos convocados a tomar decisões inevitáveis. Alheios ou não ao princípio do retorno, somos continuamente alertados de que não há semeadura sem colheita, ou escolha sem consequência. Tudo o que fazemos esculpe o futuro, cruza o presente e marca o passado. – Finalmente, ele se volta para mim. Seus olhos estão tristes e seus lábios curvados em um sorriso melancólico e sem cor. – Foram tantos erros e desencontros, que me pergunto se as nossas lembranças não são apenas uma nota mental do que deveríamos esquecer.

E fim. Enquanto as suas palavras assentam entre nós, experimento um misto de pesar e angústia me invadir. Certamente, deve ser muito doloroso almejar apagar um capítulo da sua vida.

E então, claro como os raios da manhã, minha alma murmura que já desejei o mesmo. Um dia – não exatamente longínquo –, almejei voltar no tempo para consertar tudo o que estava quebrado, partido. Respiro profundamente e fecho os olhos.

A bem da verdade, não podemos alterar o passado. Entretanto, a beleza habita justamente no fato de que não precisamos. Olhar para trás é como encarar um espelho: o segredo não reside na imagem que se forma, mas na visão do observador. Supomos – erroneamente, vale ressaltar –, que o reflexo depende do exterior, quando na verdade é uma cópia precisa do interior. Afinal, é como escreve Provérbios 23:07, "como imagina em sua alma, assim ele é." Portanto, o passado será belo, à medida que decidirmos visitá-lo com um pincel colorido.

E embora esculpida com possíveis erros, arrependimentos e frustrações, a nossa história se assemelha a imensurável natureza que nos assiste: são as pequenas imperfeições que a tornam perfeitamente única. 

"Tinha que ser aqui", repito mentalmente a frase que disse ao Nobu, enquanto compreendo a razão por trás da minha pequena viajem à Mar Azul: a paisagem da minha infância já continha as resposta, somente aguardava a minha coragem para fazer as perguntas. Ergo os olhos. Deus, o Senhor não cansa de cuidar de mim, certo?

Sorrio, e lágrimas densas aquecem as minhas bochechas. Imediatamente, o rosto do meu companheiro assume um tom preocupado e arrependido.

– Me perdoe, Akachan, eu não queria...

Sem reservas, me jogo sobre ele e o envolvo em um abraço apertado.

– Obrigada, Nobu. – Apenas seja você mesmo, Catarina. E dessa vez, não precisa mudar nada. – Obrigada por me presentear com as lembranças mais ternas e felizes da minha infância. Obrigada por ser a fonte de sentimentos assustadoramente maravilhosos. Obrigada por ser a única razão que me moveu a renunciar ao meu precioso sono da madrugada, durante anos. Obrigada por ser a aventura que eu buscava em Mar Azul. E obrigada por marcar a minha vida. Não importa o que tenha ocorrido, não há um único segundo da nossa trajetória juntos que eu deseje esquecer.

Sinto os seus braços me acalentarem e a sua mão afagar o meu cabelo, gentilmente.

– Nesse caso, considere gravado com tinta permanente – sussurra, afável. Lentamente, ele se afasta e passa a me encarar de forma profunda como se transpassasse o agora. – Eu não seria mesmo capaz de esquecer você.

O meu coração falha uma batida após a outra. À medida que o aroma salgado das ondas invade às minhas narinas, sou convidada a recordar quantos anos se passaram desde a última vez em que estivemos assim: verdadeiramente unidos.

Decido que finalmente chegou o momento certo.

Me ajuda, Senhor Eterno.

Momento de quê, criatura?!?!?!?
Fiquem ligadinhos que a próxima atitude da Cat vai mudar algumas pedras de lugar...

Enfim, pensem a respeito enquanto essa autora busca o próximo capítulo, okay? Hehehe

Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?!

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