– É fundamental deixar registrado, entretanto, que o ravioli recheado com queijo e ervas do Boaventura é simplesmente imbatível e carrega o sabor das melhores trattorias italianas – o tom caloroso usado por meu pai, somado aos olhos marejados de emoção, torna impossível a qualquer ser humano normal conter as risadas.

O almoço com a minha família transcorre tranquilamente. Conversamos acerca da igreja e do orfanato, minha mãe constata as maravilhas de uma manhã no spa, meu pai comenta sobre o escritório, falamos de amenidades como o clima e finalizamos elogiando a incrível refeição servida no Divino Sabor, quando Lucas surge com a estrela da tarde: o melhor tiramisù da cidade.

Chego em casa às 14:30h, sozinha. Meus pais retornaram ao trabalho e Mari à faculdade. Subo as escadas, rapidamente, e sento na escrivaninha portando caderno, caneta e bíblia. Durante as palavras da minha irmã, Deus me concedeu uma nova estratégia e preciso colocá-la em prática até às 16:30h, quando inicia a minha aula de Desenho Artístico. Termino de escrever e oro ao Senhor. Peço coragem e serenidade, e agradeço pela vida da Elise e do Arthur. A despeito das circunstâncias atuais, eles são importantes para mim e sempre serão. Especialmente, o... Com um exalar profundo, recordo que pode não ser fácil, mas é necessário.

Troco a minha vestimenta florida por uma blusa de malha com mangas e uma saia de veludo, ambas na cor preta, ideal para o meu compromisso noturno. Às 16:15h entro no carro e me encaminho para o Estúdio Fazendo Arte. Desenho e pintura sempre fizeram parte do meu mundo. Quando criança, fiz dois cursos destinados ao público infantil e produzi uma tela, que a minha mãe exibe com muito orgulho, diga-se de passagem, no banheiro do seu quarto, único lugar que permiti a livre exposição da minha obra.

Após adentrar no universo da Arquitetura, ficou claro a necessidade de aprimorar as minhas habilidades. Bel comprou a ideia animadamente e iniciamos as práticas ainda no primeiro período. Durante o estágio, o Tales foi convencido a compor o grupo. Muito embora, o fato não possa ser computado ao meu enorme poder de persuasão ou aos meus belos olhos castanhos. Definitivamente, ele apresentava razões superiores.

Passo pelo hall e o Tales me aguarda com uma expressão esperançosa, infelizmente, sou portadora de más notícias. Comunico que a Bel está viajando e seu semblante se torna um misto de descontentamento e sofrimento. Ele é apaixonado pela minha melhor amiga desde que a conheceu na comemoração da minha aprovação no estágio, há seis longos meses. Tristemente, o sentimento não é recíproco.

A bem da verdade, ele nunca chegou a dispor em palavras a veracidade do seu coração, pelo menos não para a Isabel. No entanto, eu escutei inúmeras vezes declarações de amor não endereçadas a mim. E em mais de uma ocasião, procurei estimulá-lo a ser sincero, porém, o medo da rejeição sobrepujou o meu conselho. Então, quando se encontram, emoções e intenções permanecem suspensas no ar, contudo, não passa disso. Sento ao seu lado e tento minimizar a ausência de sua amada. Bel viajou até a cidade do pai com o intuito de conhecer o seu novo irmãozinho. Entretanto, já possui o seu retorno agendado para domingo, ou seja, apenas mais três dias. Considerando a frágil relação que detém com a madrasta e o pai, é um tempo bastante significativo. Ela está tentando.

A aula abrange a técnica do desenho a carvão, o método artístico mais antigo que se tem conhecimento, assim como o mais simples e frágil. Recordo que há dois anos, depois de horas produzindo o meu primeiro trabalho de qualidade, esqueci de fixar a imagem e deixei o estúdio chorando, com as roupas e as mãos sujas, um desenho manchado e um desejo imensurável de arremessar aquele pequeno pedaço de pau contra a parede. Porém, o Arthur atraiu o retorno do meu equilíbrio emocional com um Icy Tsunami. Segundo ele, eu parecia uma criança recém fugida das minas de carvão. Ele sempre me fez rir. Sentirei falta disso. Encerramos, pontualmente, às 18:00h.

Tales e eu decidimos ir ao Icy Power, a famosa sorveteria que oferece o maravilhoso Icy Tsunami, um milk shake de 900ml, que sem dúvidas é obra do Criador. O sorvete de creme é batido com uma calda de chocolate belga, e disposto em camadas alternadas com pequenos cubos de chocolate meio amargo, chocolate branco ao leite e morangos. A enorme taça é recoberta por deliciosos fios de caramelo, e ainda acompanha batatas fritas. Uma dupla capaz de aliviar as dores mais profundas da alma. E hoje, em especial, o Tales merece esse conforto.

– Sinceramente, esse milk shake é sensacional – as palavras competem por seus lábios com um canudo de grosso calibre. – A Bel adoraria este programa.

– Sim! Quando ela retornar à cidade, pode convidá-la – solto animadamente, tentando, pela milésima vez, convencê-lo a expor os seus sentimentos.

– Cat – ele se interrompe, inconsolável. Ao prosseguir, sustenta uma voz embargada. – E se ela me rejeitar? Pior, e se optar por afastar-se de mim? Eu não quero perdê-la – seus olhos aparentam estar consumidos por uma dor profunda –, eu não posso – conclui em um tom quase sussurrado.

O silêncio reina entre nós, e os minutos transpassam como uma eternidade. Meu coração é repleto de compaixão, enquanto a minha mente pinta os rostos do Arthur e da Elise. Estaria eu sendo egoísta e excessiva com os meus amigos? Estou mesmo disposta a deixá-los ir?

– É curioso – a voz do Tales atrai a minha atenção. Ele gira, calmamente, uma batatinha entre os dedos. – Declaramos que Deus nos chamou para a liberdade, mas permanecemos, muitas vezes, aprisionados á opiniões alheias. Decidimos que a admiração e a estima das pessoas devem ser mantidas, ainda que em detrimento daquilo que o Pai desenhou como propósito. E caso permaneçamos fiéis às nossas crenças e valores? Exagerados, antiquados, fanáticos, fingidos, somos ofendidos de inúmeras formas, e em todas, precisamos responder com o amor dEle. Chamam de coragem e ousadia quebrar regras em um mundo que não possui nenhuma, quando a verdadeira valentia está em seguir o caminho determinado por Cristo, desconhecido por tantos e desrespeitado por muitos – ele finaliza o discurso e sorri de modo singelo.

Aperto a sua mão em resposta. Ele está certo. O Senhor me criou para fazer escolhas baseadas no que acredito, e não no que os outros julgam ser mais adequado para mim. Não permitirei que estabeleçam no que devo confiar, como devo agir ou quem devo amar. E isso é ser livre. Segunda mensagem do céu hoje. Recebida, Deus.

Saímos da sorveteria felizes e reflexivos, simultaneamente. Deixo o Tales na sua igreja, Árvore da Vida, e sigo para a Fruto do Espírito. Ao chegar, coloco o crachá e me ponho em frente às portas, a fim de receber os membros. Meus pais estacionam cinco minutos depois. Sorrio calorosamente e informo que irei para casa um pouco mais tarde. Meu pai acena e minha mãe responde com uma piscadela. Como responsável por trazer a mensagem hoje, ela subirá no local que possibilita a visão mais ampla do templo, portanto, não nutro esperanças de que a presença do Art lhe passe despercebida. Mari entra ladeada pelo Matias. Abraço a ambos, e peço que a minha irmã retorne comigo ao final do culto. Ela exibe um olhar confuso, que se desvanece em minutos com o encantador boa noite que reverbera atrás de si.

Com o intuito de perturbar a minha existência, o Arthur decidiu vestir uma jaqueta de couro preta, sobre uma camisa social azul royal, calça jeans de lavagem escura e botas. Os cabelos balançam com o vento da noite e seus olhos exibem um profundo verde esmeralda. Sim, ele está lindo e, com a graça de Deus, sozinho. Ele cumprimenta o feliz casal e se volta para mim. Mari e Matias ocupam a última fileira. Minha querida irmã parece determinada a me socorrer, caso necessário. Família é realmente uma dádiva.

– Boa noite, Cat – o seu sorriso sedutor está mais afiado do que o habitual. Ele parece duplamente disposto a me desafiar hoje. Que alegria. – Como tem passado?

– Muito bem, obrigada – respondo automaticamente. Penso na conversa com a Elise, nas palavras do Tales e da Mari, e no meu sono nenhum pouco reparador, porém, decido manter os meus dois dias de angústia em absoluto sigilo e sigo com a minha expressão mais animada. – A Lis não pôde vir? – Questiono com o intuito único de compreender até que ponto ele tem domínio do nosso relacionamento atual.

– Eu não a convidei, na verdade – fala de maneira despreocupada, um indicativo do seu desconhecimento do caso. – Gosto quando estamos sozinhos, apenas eu e você – completa com uma voz aveludada e o meu coração ameaça romper o peito. Respiro, lentamente, a fim de fazer o meu sangue circular para um lugar que não seja o meu rosto.

– Arthur – inicio de modo calmo, preciso manter o controle da situação –, vamos conversar após o culto, está bem? Tenho algo para você – ele assume um semblante curioso, mas se limita a assentir e sorrir.

– Está bem. Esperarei por você... pacientemente. – Céus, como passei a desgostar dessa maldita frase. Ele pisca e passa pelas enormes portas de madeira, no exato momento em que o meu pai agradece ao grupo de louvor.

Ouço-o dar boas-vindas a todos e... fim. A minha mente desconecta da realidade e começo a repassar o roteiro desenhado á tarde. O estampido da chuva me puxa da terra dos sonhos. Finalmente, um pouco de normalidade. Em meio ao outono, o céu está desabando em Águas Douradas. Após dez minutos, a noite tempestuosa não oferece indícios de que pretende ceder. Abraço o meu corpo com a queda abrupta da temperatura e fecho os botões do casaco.

Estou terminantemente decida a também cerrar as portas, quando, ao longe, enxergo um vulto se movendo rapidamente em direção ao templo. Um rapaz de aproximadamente 1,75m e cabelos claros, sobe as escadas loucamente e para na minha frente, totalmente encharcado, como se houvesse decidido tomar banho vestido.

– Boa noite! Você não teria uma toalha para emprestar a um irmão necessitado, teria? – Questiona alegremente, a despeito do clima tenebroso.

– Na verdade, sim. Crianças costumam precisar sempre – solto em tom de brincadeira e ele ri. O temporal não parece ter o poder de influenciar o seu bom humor.

– Perfeito! É maravilhoso saber que podemos contar com nossos iguais. Agradeça a elas por mim – completa com um sorriso irônico. Pego uma toalha no departamento infantil e entrego em suas mãos.

– De onde você é? – Pergunto, enquanto ele tenta, sem sucesso, salvar suas roupas ensopadas. Ele me lança um olhar de confusão fingida.

– Como pode deter tamanha convicção de que não sou um orgulhoso cidadão das abençoadas terras de Águas Douradas?

– Estamos no outono, e todo douradiano que se preze sabe que as chuvas são um marco nessa época do ano. Não vejo um guarda-chuva em suas mãos – finalizo de modo triunfante, com um arquear de sobrancelha.

– Okay, eu admito, você está certa – com os braços elevados, ele mimetiza um sinal de rendição. – Na verdade, sou de Vale Negro. A propósito, senhorita, meu nome é Henrique Prinz – gentilmente, ele estende a mão em minha direção.

– Muito prazer, senhor Henrique! Seja muito bem-vindo à Águas Douradas e à Fruto do Espírito. Eu me chamo Catarina, mais conhecida como Cat – declaro em um tom caloroso, conforme as leis da boa recepção. Para a minha surpresa ele solta uma risada aberta e prazerosa.

– Cat... como gato em inglês? – Ele não parece empenhado em ocultar as risadas.

– Sim. E boa sorte em criar uma piada com esse fato, que eu ainda não ouvi. Só para constar, essa igreja possui mil membros e eu sou a filha do pastor principal.

– Bom, se está me desafiando, prometo me esforçar – declara de maneira irônica. Minha mãe inicia a ministração. – Pois bem, acredito que agora estou apto a entrar no templo... talvez. Nos vemos depois, little Cat? – ele arqueia uma sobrancelha, divertido. Aceno positivamente e ele sorri uma última vez, enquanto caminha em direção aos bancos.

Conhecer o Henrique foi uma boa distração, considerando o que terei que fazer após o culto. Mas, infelizmente, o meu encontro com o Art irá acontecer, e não será nada fácil.

Não sei vocês, mas estou mooorta de ansiosa para esse reencontro.

Se está gostando dessa estória que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?