• Cinco •
A loja do Sr. Oliveira não fica distante do restaurante e em poucos minutos eu já estaciono. Proprietário da Livraria mais antiga da cidade, ele sustenta esse orgulhoso título com uma placa dourada e azul pendurada na fachada: Livraria Caminhos de Ouro, desde 1932. Os seus pais participaram da fundação da cidade e abriram a loja dois anos depois.
A bem da verdade, no ano em que Águas Douradas foi estabelecida, eles colocaram uma mesinha com os poucos livros que possuíam, mais precisamente vinte, exatamente onde fica o estabelecimento hoje. Aos poucos, foram aumentando o estoque até que conseguiram capital suficiente para abrir a loja. O Sr. Oliveira costuma contar que basicamente nasceu sobre uma estante, sempre trabalhou com os pais e, quando estes faleceram, herdou a propriedade e a profissão com muita honra.
– Boa tarde, Sr. Oliveira! Como está se sentindo hoje? Perdão o atraso – afirmo rapidamente depois que passo pela porta às 14:10h. Dez minutos após o combinado.
– Estou bem, minha filha, obrigado por perguntar. Já avisei que não precisa se desculpar, especialmente quando está aqui me fazendo um favor e, sinceramente, dez minutos não é atraso. Vocês jovens estão cada mais estressados e impacientes. Sempre correndo de um lado para o outro, como se isso fosse capaz de alterar o curso natural da vida. Como se pressa e excesso de trabalho impedissem a velhice... ou a morte – ele ri de maneira serena e despreocupada. Eu amo a forma como ele enxerga a vida. Todas as vezes que ele fala ou me aconselha, eu me sinto 50% mais rica e 50% mais viva.
– A propósito, chegaram romances novos ontem, minha querida Cat. Talvez você e a doce Mari queiram dar uma olhada. Na verdade – inicia, tentando a todo custo não se mostrar muito entusiasmado, mas falhando miseravelmente nessa missão –, eu tomei a liberdade de separar alguns para você, sem exageros, grandes desgraças ou términos fatídicos, no padrão que você gosta. Infelizmente, após a minha análise criteriosa, restaram apenas duas opções. Mas quem sabe um delas não a agrade? – Questiona com os olhos brilhando de emoção e ansiedade.
– Eu não retenho a menor dúvida de que me apaixonarei por ambos. O último dado pelo senhor se tornou um dos meus livros de cabeceira. – Ele ri de prazer e vai buscar os exemplares. Caminho até o fundo da loja e me sento em uma cadeira de balanço azul celeste que fica próxima à sessão de livros infantis. O local favorito da Sra. Oliveira.
Ela amava a cor azul. Comumente alegava que se Deus tinha decido pintar algo tão imenso e bonito com essa cor, então deveria existir algo de especial nela. Eu sorrio com a lembrança. Quando a Sra. Oliveira faleceu, há três anos, todos sentiram que foi como o apagar de uma estrela. Ela emanava a verdadeira luz de Cristo, e disseminava o Seu amor e bondade com palavras sábias e atitudes gentis. Por um segundo lembro da conversa que tive com a Bel. Como eu gostaria que a Sra. Oliveira estivesse aqui para me aconselhar.
– Cat, Cat, Cat, querida...
Ergo a cabeça e o Sr. Oliveira me encara com preocupação.
– Perdão, eu não ouvi o senhor me chamar – declaro com um semblante corado de vergonha. – Estava distraída, eu... lembrava da Sra. Oliveira – afirmo um pouco vacilante.
– Sim, minha amada Rosa, como me faz falta – sua voz é tomada por uma tristeza genuína. – Porém, fico imensamente feliz quando vejo bons amigos, como você, recordarem dela com tamanho amor. Isso me faz reconhecer que ela viveu exatamente como desejava, marcando com carinho e cuidado a vida daqueles que a cercavam – completa, recobrando o ânimo.
– Bom, aqui estão os livros que separei para você. Desejo sinceramente que goste! Agora preciso ir, o meu grupo de gamão deve estar nervoso pela ausência do seu melhor jogador e líder – afirma com uma postura convencida. – Fique à vontade, sabe precisamente o local de cada objeto e sinta-se livre para soltar a sua mente. E mais uma vez, obrigada pela disposição, minha querida.
– Se eu não tenho que me desculpar, o senhor não precisa me agradecer. É uma honra ser considerada qualificada o bastante para cuidar dessa porta para o mundo dos sonhos.
O Sr. Oliveira enxuga discretamente uma lágrima, passa a mão sobre a minha cabeça delicadamente, e sai animado pela porta vestido de vermelho. O seu time, Coração de Dragão, mantém-se invicto no campeonato de gamão deste ano. As competições, assim como os treinos, ocorrem às terças-feiras á tarde. No entanto, como desde que se casaram, os Oliveira prometeram jamais fechar a Caminhos de Ouro, exceto aos domingos, após o falecimento da Sra. Oliveira, Mari e eu nos oferecemos para cuidar da livraria durante os jogos. Não queríamos que depois de perder a esposa, ele também perdesse o esporte que tanto ama.
Após a saída do alegre jogador, caminho até o desenhado balcão de madeira, que fica no início da loja, guardo a minha bolsa em uma prateleira e sento no banquinho azul-mar a espera de clientes. No momento em que fico sozinha, a minha mente sente-se livre o suficiente para tentar processar e absorver as últimas novidades.
Como assim o Arthur está apaixonado por mim? Será que apenas eu estou percebendo a loucura disso? E por que, em nome do Pai, a Bel acredita que esse romance tem alguma probabilidade maior do que zero de acontecer? É impossível! Eu posso não ter um milhão de razões para evitá-lo, mas sei que possuo uma incontestável.
Eu e o Arthur nos tornamos amigos aos quatorze anos, quando ele e o pai passaram a morar em uma casa próxima a minha. Sempre estudamos juntos, mas só travamos uma amizade real, após uma noite constrangedora na casa da Elise, uma das minhas melhores amiga e a moça com quem ele compartilhou as suas intenções amorosas... absurdas, diga-se de passagem. Ela também é nossa vizinha e decidiu comemorar o seu aniversário com todos os moradores da rua, incluindo nós dois.
Depois dos abraços, conversas, comidas e felicitações, os adultos foram embora e os jovens ficaram para aproveitar o restante da noite. Sentamos para assistir um filme, mas logo o plano foi interrompido e substituído pelo jogo "verdade ou consequência". Decidi que era hora de ir para casa, não estava nenhum pouco inclinada a participar da brincadeira, mas devido à grande insistência da aniversariante, resolvi permanecer apenas como espectadora.
O jogo iniciou e as perguntas e os desafios foram definidos e obedecidos. Depois de cinco rodadas, chegou a vez do Arthur. Ele segurou a garrafa e ao invés de rodá-la, apontou-a diretamente na minha direção. Todos se voltaram para mim e permanecem em silêncio, nutrindo grandes expectativas acerca de suas próximas palavras.
– Verdade ou consequência, Cat? – perguntou com um sorriso prepotente.
– Nenhum dos dois. Eu não sei se o seu enorme ego atrapalhou a sua visão, mas como pode observar, eu não estou jogando – rebati com uma expressão séria. Um coro de vozes chocadas se espalhou por toda a sala.
– Tão doce. E ainda afirma ser cristã, não me parece muito gentil – o seu tom era puramente irônico. – Vamos, Cat, vai ser interessante. Qual o problema? Está com medo? – questionou, tentando me desafiar. Que péssima ideia.
– Não é medo – falei com a expressão mais serena que consegui, dada a raiva que estava sentindo. – É simplesmente porque a verdade da minha vida não lhe diz respeito, e qualquer desafio que você me sugira será, no mínimo, tão absurdo e ridículo quanto a sua atitude de agora, então não estou interessada. Lis, muito obrigada pelo convite, eu me diverti muito, porém, agora já está tarde e preciso ir, não quero deixar os meus pais preocupados. Tenham todos um boa noite, com licença.
Ouvi passos e vozes atrás de mim, mas não me virei para conferir quem era ou o que falavam. Cruzei a porta apressadamente, e só parei quando cheguei à minha casa. Queria esquecer aquela noite, e principalmente, o idiota que ocasionou toda a minha exasperação.
No dia seguinte, eu estava tomando café da manhã com a Mari, quando bateram à porta. Arthur estava parado em frente a ela, com uma caixa de bombons e uma rosa branca nas mãos, sustentando uma expressão gentil com um toque de nervosismo. Ele cumprimentou a minha mãe e disse que gostaria de conversar comigo. A noite tinha sido um bom remédio para acalmar a minha raiva, mas não o bastante para extingui-la. Mesmo assim, por questão de educação, resolvi falar com ele.
Sentados no sofá, ele me entregou os presentes e implorou o meu perdão. Ostentava um semblante extremamente constrangido quando declarou que tinha sido cruel e estúpido. Se comprometeu a nunca mais tentar algo semelhante, assim como prometeu que desse dia em diante seria um bom amigo e um guardião leal, se eu o permitisse. O pedido me pareceu sincero.
Aceitei as desculpas, e disse que também sentia muito pela resposta atrevida. Ele riu e sussurrou que tinha merecido. Petulante, acenei em sinal de concordância. Minha mãe surgiu na sala ao ouvir as risadas e o convidou para tomar o café da manhã conosco. Ele assentiu alegre, e essa cena se repetiu inúmeras vezes nos últimos nove anos.
Veja, somos amigos, melhores amigos, por que isso precisa mudar?
Há coisas que não precisam mudar... Ou será que precisam?!
Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?
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