9. Massa com Vegetais - Theo
O dia transcorria particularmente terrível, saber que nesta data poderia ser o meu sexto aniversário de casamento com Clara se as coisas tivessem sido diferentes, me assombrou segundo por segundo. A solidão seria minha única companhia durante o restante da noite e eu começava a ter dúvidas se aguentaria olhar para a foto recolocada sobre a estante, após me lamuriar até Klaus devolvê-la.
O encontro com Laís no elevador veio em má hora, eu só desejava ignorar aquele sorriso sem explicação mantido no rosto dela, apesar dos cabelos bagunçados como se nada a preocupasse. Mas então ela se calou. De alguma forma, eu quebrei aquela alegria e deixei-a visivelmente incomodada com minha presença.
Estou tão desamparado assim que até ela foi afetada? Eu conseguiria resistir ao desejo de não acordar no dia seguinte? Meu coração palpitou em angustia.
Talvez devesse ligar para Klaus, contudo ele estava com Eunice e seus filhos e isso seria mais deprimente do que ficar sozinho com o olhar de uma foto.
- Laís! - Chamei-a em desespero quando ela se afastava pelo corredor com passos ligeiros. Que outra escolha eu tinha? - Eu realmente gostei do frango grelhado, gostaria de me fazer companhia de novo? - os lábios descarregaram, tremiam em súplica para que repetíssemos o momento de distração com conversas aleatórias sobre nosso assunto em comum, o hospital.
Seus olhos transpareciam confusão. Ela não aceitará dessa vez, devia estar farta de minha oscilação de humor, pensei. Olhei temeroso para baixo em busca do que faria a seguir para sobreviver à noite de aniversário de meu casamento.
- Meu cabelo está um pouco estranho para ir jantar. - Laís respondeu com um sorriso tímido. Eu teria lhe dito que era só impressão, apenas para ela não desistir, mas ela falou mais rápido. - Se importaria se eu passasse em casa primeiro?
- Sem problema. - suspirei agradecido. Eu a acompanhei silencioso até o estacionamento com as mãos nos bolsos, ansiava que os ponteiros corressem ligeiros em direção ao outro dia. Parei à frente de meu carro, mas ela continuou andando distraída. - Bem... Eu te espero no restaurante?
- Se preferir. - disse. Então me fitou pensativa e abriu a boca algumas vezes como se fosse falar algo para em seguida puxar o ar e soltar quase num sussurro. Ela vai desistir, vai me deixar com minha solidão. - Quer muito comer frango grelhado, ou pode ser uma massa com vegetais?
- Pode ser. - soltei aliviado. Qualquer refeição do restaurante serviria, eu só queria ficar o máximo de tempo na rua.
- Faço uma ótima massa com vegetais e já havia deixado semipronta, é só colocar tudo na panela e ferver. - Os olhos de Laís me estudavam inseguros a espera de minha resposta.
Seu convite me pegou de surpresa, observei-a com cautela. Laís mantinha seu habitual sorriso, embora tivesse uma pitada de acanhamento em suas bochechas rodadas. Ela dava em cima de mim?
Seus gestos pouco demonstravam, eu não compreendia suas intenções. Dei de ombro, seus motivos não me importavam novamente como não importavam no jantar anterior. Eu estaria longe das recordações sofridas e isso bastava. Tentei um sorriso, mas tive certeza de soar como uma careta:
- Massa com vegetais está ótimo.
Iniciamos nossa marcha pela quadra do hospital. E no segundo passo, Laís adquiriu seu jeito despreocupado da sala de atendimento 12, como se nós fossemos amigos há longo tempo. E era exatamente o que eu precisava por algumas horas, puxei o ar confiante.
- Não parece uma boa troca: frango grelhado por massa com vegetais, mas verá que a massa é muito saborosa. - Ela riu sincera. - Eu preferiria pizza, mas estou sempre em dieta de algum tipo e acabei me agradando da massa com vegetais.
Acenei educado ao buscar em meu íntimo qualquer outra coisa a dizer. Não aguentaria os períodos de silêncio, eles me faziam pensar no que mais desejava esquecer. Como se lesse minha mente, Laís listou alguns pratos que sabia cozinhar e praticamente todos incluíam algum tipo de vegetal ou vitamina extra, preenchendo o vácuo existente.
A vida dela parecia ter sido algo extremamente controlado, pensada para mantê-la saudável o maior tempo possível e mesmo assim ela falava disso sem remorso. Essa sua capacidade em não se deixar afetar pelas calamidades me intrigava desde a primeira vez.
O prédio onde Laís morava era simples, o elevador um cubículo que mal cabia nós dois. Em seu apartamento, entrei sem jeito, ainda sentindo-me esquisito por ter aceitado aquele convite.
O lugar era pequeno e aconchegante, as almofadas em xadrez colorido decorando o sofá cinza de dois lugares combinavam com as cortinas da janela e com a que dividia a sala da cozinha. Naquele ambiente havia uma espécie de acolhimento presente na leveza no ar, nada semelhante à frieza sentida em meu apartamento nos últimos anos. Ali existia um lar e não apenas um lugar de recordações.
Ela fez sinal para eu sentar no sofá.
- Fique à vontade, só vou passar um creme no cabelo para tentar tirar o nó. - Laís foi em direção ao único quarto do local e sorriu para si mesma. - Claudete não precisava bagunçar tanto.
Sentado no sofá de um lugar desconhecido à espera de uma quase desconhecida, sacudia as pernas inquieto. Olhei para a porta semiaberta do quarto e tive receio dela sair de lá vestindo roupas íntimas e se jogar sobre mim. Lembrei-me como Clara havia feito exatamente isso, quando eu finalmente fui visitá-la sem a presença de Eunice.
- Sempre tão respeitoso. - Clara disse, depois que já estávamos aos amassos rolando pelo chão. - Se eu não desse o primeiro passo, nunca passaríamos de amigos.
A lembrança me causou dor, quis levantar-me e ir embora, mas não me mexi. Laís saiu do quarto com a mesma roupa de antes, apenas com o cabelo molhado e penteado. Suspirei aliviado quando ela passou por mim sem segundas intenções em direção à cozinha.
- Vou só colocar os vegetais para cozinhar e em dez minutos estaremos jantando. - Sem vontade, levantei-me e parei na porta da cozinha, não era educado deixá-la falar sozinha enquanto eu me mantinha sentado no sofá como um peso morto. Ela me fitou confusa. - Desculpe, não ofereci nada para beber. - E riu alto. - Já deu para perceber que não sou muito boa anfitriã.
- Não se preocupe. - minha voz foi arrastada. - Quer ajuda?
- Então, o senhor, também cozinha?
- Theo. - corrigi. - É uma obrigação para quem mora sozinho.
- Ou quem mora com uma mãe que não é muito boa cozinheira.
Não pude impedir de sorrir discreto em conjunto com ela. Laís mexia nas panelas, colocava vegetais previamente picados, não parecia lá muito jeitosa nessa tarefa.
- Então, mora com sua mãe? - Eu precisava manter a mente ocupada com conversas, qualquer uma que fosse.
- Sim.
O assunto acabou mais rápido do que começou. Onde estava a constante vontade de falar dela? Impaciente, troquei o peso de uma perna para outra, as coisas não fluíam semelhantes como quando jantamos no restaurante. Estava impossível eu me distrair da imagem de Clara vestida de noiva dançando empolgada quando percorríamos o salão para tirar fotos com os convidados. Eu precisava encontrar algo urgente para me concentrar, falar sobre o hospital poderia dar certo.
- Sorte morar tão perto do hospital. Quando se cortou foi só andar um pouco e tudo resolvido.
- Na verdade, morávamos muito longe, mas com minhas constantes visitas, nos mudamos. - Deslumbrei uma pontada de tristeza no rosto dela e isso me gerou uma espécie de empatia por ela. - A ideia era trocar por um do mesmo tamanho que o anterior, mas entre remédios, exames e internação não sobrou muita coisa.
Sendo péssimo consolador, apenas confirmei com um aceno de cabeça. Já vira pacientes entrarem em falência na tentativa de conseguirem um tratamento mais moderno ou mais rápido do que os oferecidos pelo SUS.
Como ela dissera, em dez minutos a massa estava pronta e nos sentamos na pequena mesa de dois lugares para jantarmos. Não me surpreendeu quando ela me ofereceu suco de uva para acompanhar, era óbvio que não seria uma cerveja. Eu não bebia com muita frequência, mas desejei para tornar minha mente mais preguiçosa. Senti necessidade de falar algo e desviar meus pensamentos para o presente:
- A massa ficou muito boa.
- Pelo menos comestível. - ela retrucou sem constrangimento. - Aposto que está arrependido de não ter escolhido o frango grelhado.
- Gostei mesmo da massa. - Saboreei uma garfada, distraído. - Minha mulher costumava colocar brócolis em tudo, teria adorado essa massa.
Os olhos de Laís me fitaram curiosos. Meu coração estrangulou-se e mirei o prato contrariado. Eu não deveria ter comentado nada sobre Clara, eu só queria esquecer e agora jogara o assunto na mesa.
O silêncio pairou sobre aquele pequeno ambiente. Sentia-me corroer por dentro a cada segundo que Laís não fazia a pergunta na ponta de seus lábios: "Onde está sua mulher?" Suspirei cansado. Derrotado, pela angústia, respondi por conta própria.
- Sou viúvo. - Teria dito muitas outras coisas de como foi terrível o acidente, de como me arrancou de qualquer equilíbrio, mas choraria como um bebê e isso seria muito, muito inconveniente nesse momento. Engoli em seco e suspirei novamente, buscando firmeza em minha voz. - Há três anos.
- Sinto muito. - Laís tirou seu sorriso do rosto e fitou-me com pesar, um olhar que eu odiava. - Perdi muitos amigos de hospital, - ela deixou seu olhar descer até o prato e num gesto doce pousou a mão sobre a minha. - mas não poderia saber como é perder um companheiro.
O modo como ela dirigiu-se a mim, completamente empática à minha dor como se tentasse dividir o fardo comigo, fez qualquer senso de ridículo desaparecer de minha frente e eu me vi chorar sobre meu prato de massa com vegetais como se fosse uma criança. Tapei o rosto com as mãos em vergonha, quando me lembrei de onde estava, mas as lágrimas não conseguiam ser contidas.
Dei-me conta, só alguns minutos após, que ela havia levantado e me envolvia num abraço silencioso, não um silêncio de constrangimento e sim acolhedor. Deixei a cabeça apoiada em sua barriga e a envolvi pela cintura igualmente em um abraço enquanto a tristeza guardada era extravasada.
Não soube quanto tempo ficamos assim, em silêncio, abraçados. As lágrimas já não corriam e mantive-me um tempo quase confortado, ouvindo o pulsar calmo do coração de Laís, como se consolar lhe fosse algo comum.
- Então... - ela pigarreou um pouco confusa. Não desejava me afastar e muito menos olhar para ela depois de demonstrar tanta fraqueza. - Acho que agora podemos nos considerar amigos. - Olhei-a de relance, e ela me sorriu amável. - Sente-se mais leve, Theo?
Acenei acanhado por toda a situação. Ela mantinha um sorriso amigável e, num gesto maroto, bagunçou meu cabelo e riu.
- Depois que lavar o rosto, prometo que te arranjo uma sobremesa consoladora.
Obediente como se fosse uma criança, fiz o que ela disse. Lavei meu rosto no banheiro e teria ficado lá dentro para sempre para não ter que encará-la novamente. Pular pela janela não era uma opção, não faria isso com ela. Ao sair, ela segurava dois pratos com gelatina e sorria acanhada.
- Chocolate seria melhor, mas só tinha gelatina na geladeira. - Fez sinal para eu sentar ao seu lado no sofá, o que fiz em silêncio ao pegar um dos potes de gelatina. Como poderia olhar para ela depois de tudo? Eu devia ir embora, correr para longe e torcer que nunca mais nos cruzássemos pelos corredores do hospital. Laís suspirou e antes que o silêncio caísse sobre nós de modo ainda mais constrangedor ela me encarou. - Que livros você gosta, Theo?
A mudança da forma como ela referia-se a mim, sem mais usar o doutor ou senhor fez com que parecêssemos mais próximos e, estranhamente, senti-me acolhido sentado naquele sofá. Percebi-me leve, e a vergonha pelo fiasco anterior se dissipou entre conversas sobre livros e coisas agradáveis. Ela parecia ter certa experiência em tornar momentos difíceis em algo leve. Como eu agradecia isso.
Quando a mãe de Laís chegou ela congelou ao pé da porta surpresa por me ver ali.
- Deixei massa com vegetal no micro-ondas para jantar, se tiver fome. - Como se minha presença não merecesse explicações, Laís cumprimentou a mãe abraçando-a. Eu me ergui do sofá, sem saber o que dizer ou fazer. Irene olhava curiosa para mim e Laís fez às vezes de nos apresentar. - Esse é Theo. - Sentindo o suar nas mãos as passei nas laterais da calça, e me mantive parado com receio. Como explicar nosso jantar? Eu não sabia explicar. O que Laís diria sobre meu choro?
- O Doutor? - Laís confirmou com um aceno. A mulher já tinha conhecimento de minha pessoa? O que Laís falara para a mãe? Comecei a arfar, ao imaginar como responderia as perguntas que a mulher faria? Mas esta parecia mais confusa do que eu. Olhou para a filha com pavor. - Ah... O que faz aqui?
Senti-me um intruso. A mulher não se agradara de minha presença. Pigarreei, na tentativa de encontrar minha voz perdida e me desculpar por estar ali. Ao menos se eu a cumprimentasse já seria menos grosseira de minha parte. Vamos fale algo! Xinguei minha lerdeza em reagir.
- Mãe, não precisa se preocupar. - Laís soltou uma gargalhada. Por que ela ri? - Ele está aqui como amigo e não como médico.
- Ah! Quase enfartei! - a mulher soltou o ar e eu fiz o mesmo ao perceber o sorriso de sua mãe e o mal entendido. - Desculpe pela grosseira, Dr. Theo. É um prazer. - a mãe de Laís sorriu cansada ao estender a mão em cumprimento. Grosseria? Eu que estava sendo mal-educado. Mas aceitei seu aperto de mão calado. Não sei por que, ainda me sentia constrangido com a presença dela. Havia dentro de mim a vergonha e o medo de Laís comentar algo sobre meus momentos de fraqueza e isso virar o assunto em destaque. - Bem, fiquem à vontade, eu vou me deitar.
- Bons sonhos, mãe.
A mulher retirou-se, após cumprimentar-me mais uma vez. Sua ausência me trouxe alívio. E o modo tranquilo por nem ter questionado a filha sobre a presença de um desconhecido, foi estranho. Mas talvez, ela estivesse acostumada a isso. Laís comentou sobre seus amigos no hospital, talvez médicos e enfermeiras fossem presença constante em jantares naquele apartamento. Será por isso que ela me convidou de modo tão espontâneo? Ela era uma boa pessoa, talvez tratasse todos como amigos em potenciais.
Seu modo me tranquilizava. Eu não conseguia evitar desejar permanecer ali. Voltei a me sentar no sofá, deixando que Laís conduzisse nossa conversa por labirintos de boas recordações. Enquanto me envolvia com seus relatos de como ela e um garoto se escondiam pelos corredores da enfermeira Claudete quando ela era bem mais nova, meu coração esquecia o meu próprio passado.
- ...e até hoje somos amigos, nos falamos sempre pela internet. Dá pra acreditar? - Ela sorriu de modo meio sonhador, o que me indicava que havia muito mais nessa história de amigos do que ela estava disposta a me contar no momento. Eu gostava dessa atmosfera leve que ela conseguia produzir.
- Temos mais uma coisa em comum. - Sorri contagiado por sua alegria, e de certo modo começava a compreender um pouquinho daquela jovem sorridente que me acolhera tão amigavelmente. - Somos pessoas de só um amigo. Desde o começo da medicina apenas tenho Klaus, um dos pediatras do hospital, como meu amigo.
- Bem agora temos dois - ela se divertiu ao indicar que se referia a nós.
- Sim. - confirmei. Ela era mesmo habilidosa em tornar tudo mais leve. Embora ainda me fosse estranho pensar nela como uma amiga. Mas o que melhor poderia representar o momento anterior? Eu precisava dizer algo sobre isso, mostrar minha gratidão por sua ajuda. - Desculpe por perder o controle. - foi difícil pronunciar as palavras e mais ainda manter o olhar no dela.
- Amigos não devem pedir desculpa por isso. - ela sorriu acolhedora. Senti-me um pouco melhor por isso. - Se não se importar com massas com vegetal, arroz com legumes, peixe grelhado, ou gelatina, pode vir jantar aqui quando quiser. - Ela abaixou a voz divertida. - Se minha mãe não estiver por perto, talvez eu consiga oferecer uma pizza ou um mousse de chocolate.
- Obrigado, Laís. - soltei em um suspiro verdadeiramente agradecido. Não imaginava voltar em seu apartamento para me lamuriar de minhas desgraças novamente, mas saber que ela me oferecia isso aquecia meu coração.
Era tarde e eu já abusara de sua hospitalidade em demasia. Levantei-me para ir embora, sentia-me melhor com a certeza de que suportaria o começo de outro dia.
- Quando for ao hospital, pode me chamar para um lanche no último andar. - retribui sua gentileza comigo.
- Farei isso.
Despedimo-nos e entreisolitário no elevador. Andei sorrindo pelo quarteirão até alcançar meu carro,estranhamente me sentia mais leve. Não saberia explicar o que havia se passadonaquela noite, só podia pesar que, de algum modo, estava um pouco mais vivo edisposto a lutar depois disso. a{aE
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