32. Toque - Theo
Eu sobrevivera ao Natal, apesar dos atendimentos esporádicos da emergência que pouco me mantiveram ocupado. Não foi uma noite feliz, apenas normal, como se eu tivesse conseguido fazer as pazes finalmente com meu passado e deixá-lo longe do presente onde este deveria ser guardado.
A conversa pelo celular com Laís também serviu como uma injeção de ânimo. Não era claro como se desenrolaria nossa relação, mas ao menos eu podia sentir em seu tom de voz que no mínimo voltaríamos à antiga amizade. Ela se tornara importante em minha vida e eu lutaria para mantê-la, nem que fosse apenas uma migalha do que meu coração verdadeiramente desejava.
Quando ela me contou que o tal Cauã não viria mais, foi difícil segurar minha alegria. Ela estava chateada, pois acima de tudo eles eram amigos de longa data e teria sido no mínimo de mau gosto se eu demonstrasse minha euforia com a notícia. Mesmo por que o fato dela ter desistido de ir adiante com seus planos com Cauã, não necessariamente era um sinal verde para mim. Embora me desse esperança de conquistar seu coração com o tempo.
Mas o que faria se eu ganhasse seu amor? Eu era capaz de recomeçar? Ela aceitaria o monstro de pele repuxada? Puxei o ar temeroso ao abrir a porta de meu apartamento, sem saber se eu lutava para tê-la ou para esquecê-la. Era tão angustiante não conseguir prever o futuro. Os olhos passaram pela estante e fixaram-se no retrato de Clara. O futuro ainda poderia me trazer mais dores?
Peguei o retrato de Clara e observei cada um dos seus detalhes. No momento em que essa foto foi tirada ambos estávamos felizes, pensávamos termos uma infinidade de tempo para experimentarmos mais da vida. E se eu estivesse novamente enganado? Se meu destino fosse perder cada pessoa que amei?
A foto sorria-me. Suspirei com saudades:
— Sinto tanto por não ter conseguido te salvar — sussurrei à imagem ao passar os dedos sobre o rosto de Clara por trás do vidro do porta-retratos. — Quis morrer contigo, para me redimir. Mas não posso mais, Clara. Eu quero viver. É egoísmo de minha parte?
Observei a foto por alguns instantes, como se algo mágico pudesse acontecer e uma resposta fosse me ser dada. Clara se fora, e eu nunca poderia saber se ela teria me perdoado, se me incentivaria a seguir adiante ou não.
Esse seria um julgamento exclusivo meu. Eu iniciara há algumas semanas o lento e doloroso processo de perdoar-me e começava a considerar que finalmente eu consegui.
Apertei o porta-retratos contra o peito e fechei os olhos, deixando que as batidas angustiadas de meu coração interrompessem o silêncio do apartamento, enquanto eu buscava as forças necessárias nas profundezas de meu peito.
Soltei um longo suspiro. Beijei a foto e andei até o quarto olhando-a nos olhos.
— Você sempre fará parte de meu coração, mas é hora de deixá-la no passado. Espero que me entenda, Clara. Já não me basta apenas respirar, quero viver — abri a caixa de recordações no fundo do armário e coloquei com cuidado o porta-retratos. — Adeus, meu grande amor.
Ao recolocar a caixa no fundo do armário, como os sentimentos sobre Clara deviam estar em meu coração, senti um aperto no peito. Porém conforme eu me afastava uma sensação de leveza tomava conta de meu corpo, como se eu houvesse deixado por fim uma gigantesca mochila pesada que fora carregada por quilômetros e quilômetros fazendo minhas costas curvarem-se.
De volta à sala fitei o lugar vazio na estante, com a certeza de que recomeçar exigia esforço e eu, pela primeira vez, aceitava os riscos.
***
Quase ao fim de meu turno, depois de visitar os pacientes por mim operados em recuperação, peguei o elevador até o telhado e me deitei no desnível afastado da porta.
O sol aquecia agradavelmente, mesmo estando coberto por nuvens. Sorri ao fechar os olhos, incomodados pela claridade, aquele lugar sempre recarregou minhas energias. Por um longo tempo o abandonei, mas o havia retomado quando me lembrei de como era estar vivo.
Ouvi o ranger da porta se abrindo e passos em minha direção. Este era um lugar esquecido do hospital, então pensei ser Klaus para tentar, mais uma vez, me convencer a passar a virada do ano com sua família.
Abri os olhos para saudá-lo de modo divertido, mas calei-me ao avistar Laís de pé a minha frente. Ainda era segunda-feira, sua presença me pegou de surpresa.
— Encontrei seu amigo Klaus no corredor e ele me disse que você estaria aqui — ela me olhava com um sorriso tímido ao me estender um potinho plástico com tampa e um garfinho descartável. — Fiquei com receio que se esperasse até terça a torta pudesse estragar.
— Finalmente vou provar sua famosa torta! — falei, para dissipar a tensão quase elétrica que parecia nos rodear e sentei, dando espaço para ela se colocar ao meu lado. Comi uma porção farta e sorri com sinceridade. — É mesmo ótima!
— Foi difícil esconder um pedaço, todos queriam — ela riu de um modo acanhado, olhou em volta e quando o silêncio começou a se tornar constrangedor completou. — Eu terminei de ler o livro que me deu.
— Era bom? — Meus olhos focaram-se em seus lábios, desviei quando senti as batidas de meu coração acelerarem.
— Sim. — Laís me observou pensativa enquanto eu comia. Respirei fundo sem olhá-la. O clima carregado naquele ambiente, nada tinha a ver com a chuva que se preparava para cair. Quando lhe entreguei o pote vazio e agradeci cuidando para não tocar seus dedos com medo de não conseguir me controlar e a puxar para mim, ela suspirou. — Estive pensando, Theo.
— Sobre o quê? — as palavras escaparam em esperança quando a fitei com profundidade. Os nãos ditos e muitos sentimentos sopravam ao nosso redor como o insistente vento Minuano a espera de respostas. Engoli em seco, mandando meu coração se acalmar e completei. — Sobre nós?
Laís acenou em positivo e desviou o olhar para o pote em suas mãos. Houve silêncio. Meu coração palpitava em expectativa, ou seria de temor? Era visível a alteração de sua respiração, também. Não sabia como começar essa conversa, e muito menos se conseguiria esperar, de forma paciente, que ela o fizesse.
Aquele simples segundo de decisão, parecia congelado no tempo. Uma necessidade de envolvê-la em meus braços agigantava-se. Uma urgência de confessar meus sentimentos e de tê-la por completo em minha vida tornava-se cada vez mais insuportável dentro de meu peito. Laís estava ao meu alcance, mas e se eu me precipitasse e a perdesse de vez? Mas e se eu não fizesse nada?
Envolto pela ansiedade a solução encontrada por meu desejo foi me inclinar em sua direção e tocar com suavidade seus lábios. Nervoso, tranquei o ar ao afastar-me apenas o suficiente para analisar seu rosto. Eu ouvia as batidas de meu próprio coração com a mesma intensidade dos trovões estourando no céu a milhares de quilômetros.
Ela sorriu ao tocarmos nossos narizes, em um movimento carinhoso, deixando nossos lábios apenas separados por um fio de ar.
— Sobre nós, eu não tenho mais dúvidas — seu hálito quente alcançava meus lábios. — Você tem? — ela perguntou como uma gata manhosa.
— Nenhuma! — respondi sem conseguir conter o sorriso e o aumento de minha pulsação.
Naquele momento não havia mais racionalização ou ponderações de consequências, eu apenas a queria desesperadamente. Puxei-a para mim. Entregando-me a seus beijos e ao desejo de tê-la para sempre entre meus braços.
Com os dedos entrelaçados em seus cabelos deixei meus lábios alcançarem com suavidade seu pescoço. Suas mãos quentes acariciaram meu tórax, e os dedos brincaram com os botões de minha camisa, causando-me arrepios.
Mas em reflexo segurei seus pulsos e os afastei de minha pele machucada, sem deixar que nossos lábios se separassem. Laís sorriu de modo travesso ao soltar-se e voltar a acariciar meu peito.
O medo de ela descobrir minhas cicatrizes fez eu me afastar dela. Confusa ela me observava, enquanto em pânico eu me concentrava nos botões de minha camisa garantindo que se mantinham fechados. Olhei-a de relance, eu sabia que lhe devia uma explicação, porém as palavras embolaram-se em minha garganta. Sem conseguir controlar a vergonha por minhas marcas, eu me virei de costas arfando.
— Quer que eu vá embora? — sua voz baixa perdeu-se na grandiosidade do telhado.
— Não! — consegui dizer.
Eu tentava encontrar palavras, encontrar coragem, mas como seria possível lhe mostrar minhas deformidades? E se ela se afastasse enjoada? Quis correr para longe, meus pés não obedeceram. O silêncio de nossa distância foi rompido por um trovão. Ouvi o suspiro dela.
— O que aconteceu, Theo? — sua voz era terna quando ela abraçou minhas costas. — Fale comigo, por favor.
O que eu diria? O que eu faria? Será que ela entenderia? Expirei e inspirei com profundidade várias vezes ao me virar para ela. Laís tinha as sobrancelhas encurvadas sem compreender o que acontecia.
— Eu não sou nada bonito... — eu soltei em um sussurro, tentando achar uma maneira de contar a ela. — Não sei como dizer...
Involuntário, passei a mão sobre minha camisa. Seus olhos acompanharam meu movimento.
— Então me mostre. — Laís mantinha seu olhar ao meu de um modo que dizia que tudo ficaria bem.
Eu acreditei em seu olhar, apesar de o medo estrangular meu coração a cada segundo com mais força. Puxei o ar ao perceber que este seria o momento da verdade e peguei sua mão. Respirei mais uma vez ao sentir a tensão também existente nela e guiei seu toque com suavidade por cima da camisa em toda a extensão de minhas queimaduras; seria o suficiente para o delicado tato perceber a pele retorcida.
— Foi o acidente de carro? — a voz dela mostrou-se insegura. Temi que ela se afastasse em repulsa.
— Tive queimaduras de terceiro grau — minha voz saiu tremida. Eu mantinha minha cabeça baixa, receoso do que seus olhos me contariam. — Eu não sou bonito de ver.
— Ah, Theo. — ela sussurrou carinhosa ao envolver seus braços em meu pescoço. — Queimaduras não mudam quem você é e não podem tirar sua beleza. — ela selou meus lábios. O calor de ser acolhido invadiu meu corpo com um tremor. — Você é mais importante para mim do que qualquer cicatriz.
Desesperado por acreditar em suas palavras cheias de sentimentos, a apertei com força entre meus braços. Sentia nossos corações baterem com rapidez, o meu repleto de desejos e também de medos. Então ela beijou meu pescoço, descendo os lábios até a gola da camisa, e com as pontas dos dedos abriu com delicadeza o primeiro botão. Parei de respirar e minha reação foi tentar me afastar, mas Laís não me deixou.
— Não se afaste, eu o amarei como você é — sua voz firme e seus olhos nos meus desarmaram minhas defesas.
Mantive a respiração parada, quando meu coração saltava em receio conforme mais e mais botões eram abertos, e quase me causou uma parada cardíaca ao sentir seus dedos alcançarem a pele machucada.
Quando ela voltou a me olhar, sem ter nenhuma nuance de repulsa e me beijou com desejo, o medo de ser rejeitado desapareceu. Aquelas marcas que me assombravam diariamente no espelho, perderam sua importância e deixaram finalmente de ser o que eu era.
Soltei o ar relaxando e me entreguei ao momento. Sentado no desnível do telhado a abracei mais forte enquanto ela movimentava-se sensualmente sobre mim. Os relâmpagos iluminavam os céus em flashes intensos, enquanto nossos corações pulsavam em sintonia como se fossem apenas um.
Depois da explosão de prazer nos mantivemos num abraço quente. A sensação de Laís em meus braços me remetia a algo pensado ser impossível sentir novamente. Um tipo acolhedor de toque envolto em emoção quase esquecido por mim, aquele toque de cumplicidade e de amor que faz você acreditar na possibilidade da eternidade. A sensação encheu meu peito e dominou todo o meu corpo até transbordar de modo emocional. Não pude conter algumas lágrimas.
Lágrimas de completitude amorosa e de absolvição de meu passado deslizaram por meu rosto. Estas se dissiparam quando mergulhei o rosto nos longos cabeços de Laís sentindo seu cheiro doce. Entreguei-me ao sentimento de profundidade a nos ligar. A partir desse momento, eu soube que pertencíamos um ao outro.
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