Corações Trabalhadores
Elena era tradicionalista... Ou se dizia ser.
Ninguém se metia com os tradicionalistas. Isso era fato. E, portanto, se fosse para alguém ter sempre razão, esse alguém era Elena. Aos demais, restava dizer "amém".
Como toda mulher de fachada tradicional, ela se vestia com esmero; e lançava olhares de desdém para as roupas de segunda mão de Tessa. Por segunda mão, entenda-se: compradas em bazares e brechós (Sem contar as encontradas no lixo... mas abafa o caso!).
Elena também adorava uma reunião de equipe. Organizava variadas formas de mobilização-relâmpago, em que frases de efeito e filosofia de botequim eram aplicadas... Para contentamento de Ludmila. A chefa incitava todos a se engajarem... Muitas vezes nos momentos mais inconvenientes. Como por exemplo, no final do expediente; ou quando Tessa estava apurada para ir ao banheiro.
Havia uma contradição no comportamento da chefa e sua assessora. Embora alegadamente tradicionais, adotavam atitudes espalhafatosas como se a vida fosse uma eterna festa.
Em toda e qualquer conversa social, as duas davam um jeito de se inserir e comparar... Do tipo: "Eu também tenho"; "Eu também fiquei"; "Eu também estive"; "Eu também já fiz"; "Eu também quero"... O tema de toda conversa acabava girando em torno delas.
Da vida delas.
Por outro lado, não se cansavam de falar da vida alheia... Usavam frases com duplo sentido; trocavam olhares de entendimento... Tessa as comparava a duas espiãs passando informações para as linhas inimigas.
Coisa de filme de nazista. Bizarro. Só não era mais bizarro do que os apelidos que deram a elas, pelas costas: Nonô Correa e Bunda Larga.
– Pergunta o motivo! – Insistiu Roque, certo dia.
O gentil Roque era o novo estagiário. Estudante da faculdade de Marketing. Estava cumprindo suas horas de aperfeiçoamento na empresa.
– Não sei se quero saber... – Tessa confessou, distraída. Estava preocupada com a sua visita próxima ao gerente do Banco, quando tentaria negociar a dívida da mãe, no cheque especial.
– Ah, por favor! – ele fez implorou. – Pergunta, vai!
– A fofoca não lhe cai bem, Roque – ela respondeu. – Quem te viu e quem te vê...
Ele riu e filosofou: – Uma fofoquinha de vez em quando é salutar. Existem pesquisas a respeito...
– Tá bom! – Ela fechou a gaveta e o encarou. – Diga, então. Por quê?
– Nonô Correia, porque Ludmila vive pelo vil metal. Nunca vi mulher tão dinheirista! Recebe um goooordo salário. Ainda vende bijuterias para os funcionários, em pleno expediente. E aí de quem não comprar...
Xiiii! Tessa nunca comprou. Será por isso que Elena a tratava com tanta secura?
– ...Qualquer oportunidade é uma oportunidade de lucrar!
– Eu não julgo – Tessa rebateu, pensando em suas dívidas.
Além do mais, ela acreditava que Ludmila tivesse menos em comum com carismático avarento, do que com a ardilosa Marquesa de Merteuil da obra Ligações Perigosas.
– Não quer saber da outra?
– Creio que o apelido "Bunda Larga" seja autoexplicativo.
Ele não parava de rir, deliciado... Tão tímido, o rapaz. Mas com Tessa, não estava parecendo tanto assim. Talvez porque confiasse nela para falar abertamente. Quando começou no setor, apavorado e caladão, ela foi a única que lhe deu as boas–vindas e explicou o trabalho.
–Quer dizer que você realmente... REALMENTE...! – mais risadinhas. – ...Não ficou sabendo do acontecido?
– Não frequento happy hours, Roque – explicou Tessa, sem rancor. – Não sou vip o bastante.
– Ah, Tessa – ele ficou sério de repente. – Você tem mais classe do que qualquer uma delas. É gentil, educada com todos e responsável... Você é quem deveria ser chefe, aqui. É uma pena que as pessoas confundam ter "competência" e "educação" com ter carro chique, roupas e joias.
Isso, vindo de um rapaz tão jovem, era um pensamento aguçado... E ela parou para pensar que, caramba, ela não era tão mais velha que Roque! O quê? Uns quatro ou cinco anos? No entanto, sentia-se uma velha com o peso de meio século sobre as costas. Talvez porque tenha bancado a mãe de outra pessoa por tanto tempo, que não se lembrava o que era ser criança. Desde os oito anos ela negociava com os credores da mãe.
Estava na hora de encarar a vida de maneira mais leve. Com direito a ser até um pouco leviana... Virou-se para o rapaz e comentou:
– Quer dizer que a última happy hour foi um "evento", é? – Deu-lhe corda, já que ele estava louco para contar.
– Fique sabendo que a "Bunda Larga" encheu a cara e arrumou um desconhecido pra levar para casa. Daí, o cara pediu que ela fizesse um beijo grego nele. Igual naquela novela que passou... Esqueci-me do nome...
– Verdades Secretas 2 – Ofereceu Tessa. A mãe assistia às novelas com a televisão no volume máximo. Tessa conhecia todas. – Mas... Você ouviu o sujeito pedir um beijo grego à Bunda Larga? Digo... – ela se corrigiu, achando feio e ofensivo tratar a colega pelo apelido. – Você ouviu quando ele pediu "isso" a Elena?
– Não! – Ele se agachou do lado da mesa, apoiando o queixo no tampo. – Ela contou pra todo mundo na mesa do bar! Tava caindo de bêbada! Não sabia o que falava, nem o que não devia falar. Xingou o homem de bicha! Ficou dizendo: "Aonde já se viu, um homem pedir uma coisa dessas pra uma mulher!" O cara ficou humilhado e com tanta raiva dela, que disse para Ludmila levá-la embora, ou ele não responderia por si... Daí, a Bunda Larga berrou para ele lamber o cu dela e...
– Ai, meu Deus! – Tessa tapou os ouvidos. – Não quero mais saber de nada!
– Tessa, em que mundo você vive? – Ele brincou.
Naquele momento, Elena entrou marchando pela sala e pegou a última parte da conversa. – Ela vive no mundo do trabalho, meu jovem. Você também deveria.
Constrangidos porque estavam falando justamente dela, os dois disfarçaram. Roque debandou para a sua mesa. Tessa se concentrou na tela em branco do computador.
Elena disparou os olhos, desconfiada, e seguiu para a própria mesa.
–––
Nas próximas quatro horas, Elena mal deixou Tessa sair da estação de trabalho para ir ao banheiro. Ficou pentelhando o texto de introdução do projeto... Isso, por que Tessa lhe enviou com dois dias de antecedência para ler. Não leu, obviamente. Considerava o ato de "ler" uma perda de tempo. Agora estava dando palpite em coisas que não entendia. Não deixava a outra explicar, pois acreditava que Tessa devesse resumir a explicação em uma única frase.
Afinal, quem precisa de contexto?
Quem precisa perder tempo escutando educadamente um colega de trabalho?
Assim, juntando meros fragmentos de informações, Elena esperava que o trabalho se transformasse em magnífico, por pura mágica! (E sem que ela, como assessora, tivesse que mexer um dedo). Por isso, ignorou boa parte do que foi escrito e copiou trechos inteiros de blogs e sites da internet, formando um texto único – sem fonte, nem citação – como se fossem propriedade intelectual dela.
Entregou o seu "Texto de Frankenstein" para Tessa dar um jeitinho de encaixar dentro do material que já estava pronto. Não queria nem saber se a lógica do argumento ficaria quebrada com a inserção de um conjunto de frases bonitas (mas sem sentido algum), resultado do plágio que a outra fez.
Tessa se viu obrigada a procurar os textos originais na internet para depois não ser acusada de pactuar com o crime de plágio. Um crime que Nonô Correia e Bunda Larga, aparentemente, não consideravam passível de punição legal – pois faziam com frequência. É necessário reconhecer, porém, que dá para contar nos dedos as pessoas que consideram o plágio, coisa séria.
...Até que a bomba explode.
Tessa já viu acontecer. Vidas profissionais destruídas pela descoberta de um plágio. Muitos achavam pouca coisa... Mas só até serem flagrados. Daí... Tornava-se um pesadelo para gente irresponsável como Bunda Larga e Nonô Correia.
As duas comparsas tinham um lema pelo qual pautavam suas condutas: a vida dos outros é fácil. Só a vida delas é que é difícil; especialmente, no trabalho... Em outras palavras, quebrar-se para pesquisar e escrever era moleza. Tinha pouco valor.
Detalhe: nenhuma das duas sabia fazer.
Para resumir, Tessa só teve sossego quando Ludmila interfonou, chamando Elena para subir à sala da presidência e ajudá-la na apresentação do material criado por Tessa para os big bosses; Roque costumava chamá-los de "os engravatados". Bunda Larga então subiu correndo, levando os arquivos que Tessa deixou preparados.
Suspirando de alívio, a moça reconheceu que pelo menos teria um pouco de paz para tomar café, enquanto as duas se contorciam lá em cima, oferecendo o seu suado trabalho.
Quase imaginou-as fazendo tudo pelo poder... Riu sozinha ao imaginá–las dançando ao redor daqueles poles de boate, enquanto os big bosses jogavam notas de vinte dólares na passarela, ou colocavam as notas nas suas calcinhas.
Será que se algum deles pagaria por um beijo grego, Bunda Larga faria alegremente? Nossa, Tessa, quanta maldade!
Money can't buy it... Baby!
Cantarolando a letra da canção de Annie Lennox, ela aproveitou o momento de paz para catar umas sobras de bolachas do armário. Roque lhe ofereceu parte do seu lanche: waffers de morango. O gosto dos waffers estava ruim, artificial, mas para quem não tinha dinheiro nem para comer, ela estava aceitando qualquer coisa.
Por sorte, ninguém no trabalho percebeu o que se passava em sua vida. Ou não queriam perceber. De qualquer forma, Tessa achava que vinha fazendo um ótimo trabalho em esconder a sua miséria, literal e figurativamente falando.
Ela sentou na pequena cozinha e escutou Roque falar dos planos dele, para quando se formasse. Num impulso, ela também contou de seus sonhos mais antigos, como dar a volta ao mundo... Falou de seus interesses no mundo do trabalho... À medida que refletia em voz alta, Tessa sentiu seus sonhos nebulosos começarem a ficar nítidos. A soarem mais reais, tangíveis... Ela acabou se empolgando.
Ficou agradavelmente surpresa por ele escutá-la com atenção, e até lhe deu sugestões!
Roque revelou uma ideia cujo potencial estava apostando... O esboço de um projeto de start-up.
Nenhum dos dois se aprofundou no assunto, porque olhos e ouvidos estavam atentos. Eles decidiram voltar ao trabalho. Sabiam que se qualquer ideia chegasse aos ouvidos de Ludmila, ela pegaria para si. Já fez isso antes e faria outra vez.
O escritório era um verdadeiro ninho de cobras, onde a chefe dava o exemplo e incentivava as trapaças. As pessoas viam "a ocasião faz o ladrão". Não hesitavam em dar rasteira umas nas outras para conquistar favores e contas lucrativas.
Às vezes, faziam tanto esforço em prejudicar um colega em troca de favores pequenininhos... Uma "mesquinhez" sem tamanho... Além de empatia zero para com a vida alheia.
Pelo menos, o fato de Tessa e Roque terem um ao outro para confiar, tornava o clima no trabalho menos pesado.
–––
Personagem famosa, interpretado por Ary Fontoura, na Novela Amor com Amor se Paga, de 1984. Vale uma observação: a verdadeira Ludmila não é nem de longe carismática como o controverso Nonô... A referência é só do dinheiro mesmo. Ludmila é capaz de vender a vida pessoal dos funcionários e a sua força de trabalho pela melhor oferta. (Nota da Autora)
Livro de Pierre Choderlos de Laclos (1782). Adaptação/inspiração para o filme de Stephen Frears (1988), com Glenn Close no papel da referida marquesa. (Nota da Autora).
Money Cant Buy It, canção de Annie Lennox. (Nota da Autora)
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