Corações Sintonizados
Ernesto estava trabalhando na Kombi, absorto em seus pensamentos. O celular tocou, fazendo com que ele levasse um susto. Vinha recebendo mensagens de Dita convidando-o para jantar, com certa insistência.
Ele conhecia o jogo.
Apesar de Ernesto procurar ser honesto sobre tudo, a garota fingia aceitar suas regras. Para, então, começar a cercá–lo... Era o que Dita estava fazendo... Tentando cercá–lo para novos encontros. Ele achou por bem ignorar as mensagens. Quando pudesse, enviaria uma única mensagem dizendo que estava ocupado e quando tivesse tempo, falaria com ela. Era grosseiro, mas...
"Às vezes a gente tem que ser grosseiro para que entenda", ele refletiu.
– Oi! – Chamou alguém da porta.
Ele ficou paralisado debaixo da Kombi, por um momento. Conhecia muito bem a dona da voz que fazia o seu coração falhar ou saltitar no peito.
Tessa.
– Oi – disse ele, fazendo o skate rodar para fora. Levantou-se. Devia estar todo sujo de graxa, mas fazer o quê?
Tessa, ao contrário, era uma flor imaculada a iluminar os tons cinzentos do galpão. Ele tratou de se recompor e lançou–lhe um olhar casual.
– Veio visitar?
Ela parou, piscando. Parecia espantada. – Não, eu vim ajudar, lembra? Além do mais, você me pediu para turbinar o Instagram do seu tio.
Ela mostrou a ele um pendrive. – Eu fiz alguns textos alternativos. Bolei um layout out. O segredo está em chamar atenção para o produto, considerando o perfil do cliente e o que ele busca. O problema é resumir a informação na primeira linha do post. Se você consegue, o cliente clica para ler o restante da postagem.
– Ora... – ele olhou para o pendrive na mão dela. – Como não entendo nada disso, vou confiar na sua palavra.
Ela sorriu, embora a lembrança dele com Dita, na noite retrasada, fizesse seu coração doer. Entretanto, Tessa estava aprendendo que não podia deixar de seguir em frente, toda a vez que seu coração era machucado. Ela estava se esforçando para buscar um lugar ao sol e formular os textos.
–Por favor, coloque o pendrive do lado da mochila – ele pediu, mostrando as mãos imundas, como quem pede desculpas. – Vou mostrar ao tio e a gente conversa, pode ser?
– Claro – disse ela, tentando manter o tom tão casual quanto ele.
– Se vai me ajudar, – ele lhe lançou um olhar de lado – melhor calçar as luvas extras, do contrário, pode acabar se machucando.
–Eu não tenho frescuras com as minhas mãos, se quer saber. Não me importo de gastá-las.
Ele a encarou, muito sério. – Mas eu me importaria.
– Tá bom! – Engolindo em seco, ela pegou as luvas.
No rádio à pilha, a música acabou e começou o noticiário. Tessa, sorriu para ele e disse: – Tenho uma hora livre, o que precisa?
"Preciso de um abraço", ele pensou, mas não disse. Que merda de pensamento era aquele?
– Que tal a colagem das pastilhas? Suas mãos são menores que as minhas, poderão fazer um trabalho delicado.
Ele lhe mostrou como colar as pastilhas no espaço destinado a elas, e, então, voltou para a parte de baixo do veículo.
Assustada, ela olhou para a cola e as pastilhas e, então, começou... Tentando imitar o que ele fazia, para lhe mostrar... Tessa adorou o desafio. Sentiu–se uma criança brincando com quebra–cabeças.
Voltando a trabalhar na parte inferior da Kombi, Ernesto pensou na ironia da situação. Ele nunca imaginou que dez anos depois, ao invés de encontrá–la casada e cheia de filhos, estaria com Tessa ajudando a montar a Kombi que, numa adolescência distante, ambos sonharam em ter para rodar o mundo.
Claro que, naquela época, eles não entendiam nada de motor home – muito menos de tiny life, ou o conceito de nomadeland. Esses modos de vida não eram tão populares naquele tempo, como agora. Eles nem sabiam o que era possível instalar no interior de um veículo. E agora, lá estavam os dois, diante de uma linda kombi, construindo aos poucos uma casa sobre rodas.
– Então – Tessa começou a dizer, lá de cima. – Como foi o filme?
Ernesto parou de ajustar a válvula da caixa d'água. Rapidamente entendeu que Tessa deve tê-lo visto com Dita, no cinema. Claro, uma cidade daquele tamanho... O que ele esperava? Nem imaginou o quanto Tessa se arrependeu da pergunta, tão logo escapou de seus lábios. Afinal, o ditado diz: Quem pergunta o que quer, escuta o que não quer...
– Foi bom – respondeu ele, em tom normal. – Nada excepcional, mas bom... Por quê?
Agora sai dessa, Tessa!
–Porque estou pensando em assistir... – disse ela com a resposta na ponta da língua. Claro que era mentira, porque em sua atual situação financeira, não tinha a menor intenção de gastar com cinema. O ingresso estava muito caro, diga–se de passagem.
– Ah, – ele respondeu, num tom ausente. – É legal... uma boa distração... Vai sozinha?
O coração dela se aqueceu com a pergunta. – Ainda não sei – respondeu, em tom de conversa. – Provavelmente, não.
Ele ficou calado, imaginando quem iria com ela ao cinema. Uma amiga? Um amigo? Bem, não era da sua conta.
Eles continuaram trabalhando em silêncio. Tessa anunciou lá de cima. – Tenho que voltar ao trabalho.
– Tudo bem – respondeu Ernesto, acrescentando: – Vou mostrar o pendrive para meu tio e depois nos falamos.
– Ok. Tchau!
– Tchau!
Ele ficou ali embaixo, sem fazer nada por algum tempo. Então, forçou–se a retomar o trabalho.
–––
Ao chegar em casa, Ernesto estava cansado. Aquela parte do trabalho na Kombi foi particularmente árdua e exigiu força física. Mas o resultado estava lá – as duas caixas d' água instaladas e prontas para funcionar. Agora, ele queria instalar a caixa menor, na lateral, para a torneira com água mineral. Assim, não precisaria carregar os galões de água para beber, já ficariam abastecidas na Kombi, economizando espaço.
O segredo era otimizar o espaço.
–Tio – ele chamou, sentindo o cheiro delicioso vindo da cozinha. Entendeu no ato que o tio tinha visita feminina, pois a cozinha só cheirava bem assim, quando dona Griselda, a vizinha apaixonada, cozinhava para ele.
–Aqui! – disse Roberto, aliviado pela chegada do sobrinho.
–Oi, Dona Griselda! – Ernesto a cumprimentou com um sorriso. Achava a vizinha uma boa mulher e torcia para que o tio acabasse enxergando isso também.
–Olá, meu jovem! – Ela respondeu, sorrindo. – Vamos, não fique parado aí! Pegue os pratos, que já vou servir.
Ernesto começou a fazer o que foi pedido. Ouviu parte da conversa entre o tio e a vizinha: – Mas seu sobrinho cresceu e ficou tão forte! Quem diria que já foi aquele garoto fracote, baixinho, que corria na frente do meu portão com os joelhos ralados...?
Ernesto riu da descrição apurada de sua infância.
– E logo estarei mais forte, comendo essa sua comida deliciosa! – Respondeu.
– Seu adulador de primeira – ela bateu de leve com o pano de prato em seu ombro. – Atenção, Roberto! Se não souber cuidar de mim, vou fugir com o seu sobrinho.
Ernesto e Griselda deram boas risadas. Roberto continuou olhando para os dois, sem nenhum humor. Eles fingiram que não perceberam.
–Tio – Ernesto começou a dizer, enquanto se sentavam diante da mesa para a refeição. – A Tessa está fazendo copywriting.
–A Tessa, é? – De repente, o tio se revelou bastante interessado na conversa.
– Tio, presta atenção! – Ernesto mostrou o pendrive. – Quero que sente comigo diante do computador para ver isso daqui. Se ajudar a sua oficina a aumentar a clientela, então, acho que ela fez bem o trabalho dela.
–Quanto Tessa está cobrando?
– Por enquanto é uma proposta. Se a gente gostar, eu falo com ela e peço o preço.
– Certo, certo...
– Posso ver também? – Perguntou Griselda.
– Claro – disse Ernesto, animado. Griselda vendia pratos congelados pela internet. Quanto mais gente soubesse do trabalho de Tessa, mais chances ela teria de obter uma lista de clientes.
Então, depois do jantar, os três se sentaram diante do computador e leram os modelos de postagens que Tessa fez, baseando-se na conta de Roberto.
–Ela está certa! – Reconheceu Ernesto, sem esconder a admiração. – Aqui, veja, tio... Tessa diz que você deve informar o seu negócio no perfil. Você só fala que é amante de supermáquinas, e isso não atrai cliente para a oficina.
– É uma conta pessoal – defendeu–se Roberto. – Minha clientela se fez no boca a boca.
–Agora não é mais uma conta pessoal, querido – palpitou Griselda. – E pode alcançar muito mais clientes do que antes.
– Aqui – continuou Ernesto. – Ela sugeriu esses textos para acompanhar as fotos que apontou como as melhores fotos da oficina.
– Eu concordo – disse Griselda. – A garota é boa.
– Sim, ela é. Sempre foi, aliás, em tudo o que se propõe a fazer... – Ernesto se encheu de orgulho. Não percebeu que os dois olhavam para ele de soslaio. – Tio, está na hora de fazer as alterações na sua conta.
– Ah, eu não levo jeito...
– E como é que o senhor posta, então? – perguntou Ernesto.
–Tá bom... É só colar o texto novo no lugar do velho, certo? – Roberto indagou, sentindo–se meio encurralado.
– Isso mesmo – respondeu Griselda. – Eu lhe ajudo, meu bem. Tenho o meu IG para lidar também.
–Com licença – disse Ernesto, deixando os dois discutirem os prós e contras da internet.
O importante é que Roberto acabou aceitando. Quando viu Ernesto indo para o quarto, chamou-o: – Pergunte quanto Tessa quer pelo trabalho feito. Preciso pagá-la.
– Pode deixar – disse ele.
–––
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