Corações Iludidos
À tarde, ela voltou ao trabalho. Não costumava almoçar; e, sim, fazer coisas que cabiam no horário do almoço, tais como a consulta com a psicóloga, as obrigações da casa e contas a pagar – ela aproveitava para ir ao banco, quando dava tempo.
Como o dinheiro estava curto, ela costumava raspar os pacotes de bolachas abertas e perdidas ao longo do mês, na despensa do escritório. Fazia o mesmo com a geladeira.
Lídia lhe mandou uma mensagem para ela não se esquecer da consulta com o médico. Tessa revirou os olhos. Era só na outra semana. De repente, sentiu–se emocionada porque a amiga lembrou-se, e estava preocupada com ela. Afinal, depois de esperar quase um ano, o posto de saúde finalmente a chamou. Não poderia perder a vaga. Tessa andava se sentindo tonta e muito cansada. Tomara que o médico a ajudasse.
Tessa respondeu à mensagem com um emoji de polegar para cima.
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A noite caía muito rápido naquela época do ano. Já estava escuro, quando Tessa saiu do trabalho. Pensou em pendurar uma coxinha no boteco, embaixo do apartamento. Acabou desistindo ao se lembrar de que a mãe fez uma conta lá e ainda não pagou.
Deparou-se com a oficina de novo. Desta vez não iria contornar o quarteirão, pois estava exausta. Acelerou o passo, sem olhar para ao lado. Foi quando ouviu alguém falar lá de dentro. – Me passa a chave de fenda, Ernesto! – ao ouvir o nome, Tessa olhou para dentro no mesmo instante em que o dono do nome olhou para fora.
Tessa acabou parando, meio que sem querer. Ernesto ficou com a chave de fenda erguida na mão. Como sempre, ele se recuperou primeiro. Jogou a chave para o tio.
– Ah, oi, Tessa! – disse o tio, sorridente.
– Olá, Seu Roberto!
– Como vai? – Ele perguntou, educadamente.
– Bem, bem...
Ernesto já havia se enfiado em baixo do carro, sem participar da conversa. Mortificado, Roberto perguntou:
– E a sua mãe?
– Está indo, está indo...
– Ah... Mande lembranças minhas – o pobre homem quase mordeu a língua.
Lá, debaixo do carro, ouviu–se o barulho de um objeto caindo no chão. Ernesto xingou baixinho.
– Que foi, sobrinho? – Roberto se fez de desentendido.
– Acho que machuquei a mão.
– Deixe tudo aí! Vamos ver isso!
– Não é nada – disse ele, num tom brusco.
– Bem, eu vou indo... – Tessa avisou num fio de voz. – Boa noite pra vocês!
Ouviu um coro sem graça lhe responder e acelerou o passo, antes que eles vissem que ela estava quase explodindo em lágrimas. É claro que Ernesto não machucou a mão... E se machucou, não queria tratar enquanto ela estivesse por perto.
Quando ficaram sozinhos, Roberto disse ao sobrinho: – Você poderia ter sido mais simpático.
– Pra quê? – rebateu Ernesto, empurrando a prancha de rodinhas sobre a qual se equilibrava, para sair debaixo do carro; então, encarou o tio. – Eu sei o que quero e o que não quero pra minha vida.
– Ah, é? – indagou o tio, num tom divertido. – E o que você quer?
– Se um dia eu me amarrar em alguém... – alegou o rapaz, em tom solene. – Tem que ser uma mulher forte e autossuficiente. Não alguém assustada e insegura.
Roberto mastigou distraidamente o seu infame palitinho de dentes. – Concordo, só falta você convencer o seu coração.
Ernesto resmungou qualquer coisa e voltou para baixo do carro.
–––
Ernesto terminou de consertar o carburador do carro e decidiu sair mais cedo para dar andamento no seu projeto pessoal. Além do mais, precisava receber a entrega do material usado no forro. Ele queria começar logo a instalação. Assim, lavou as mãos e o rosto, pegou a mochila e gritou para o tio.
– Tô indo!
– Vai com Deus! – foi a resposta, lá do fundo da oficina. – Ah, traz pão na volta?
– Pode deixar! – Ernesto girou nos calcanhares e seguiu pela calçada.
Aspirou profundamente o ar frio e puro; muito bem vindo para clarear os pensamentos. Logo caminhava a passos ritmados até o galpão de madeira que pertencia ao tio.
O lugar situava-se num terreno grande e retangular, cercado de belas árvores, onde os pássaros faziam suas moradas e cantavam em alegria. Era um ambiente mais retirado, pois ficava afastado da avenida principal. Parecia uma cápsula no tempo, com as casas e prédios modernos a certa distância.
O tio utilizava o galpão para guardar algumas peças de automóveis, sucatas e ferramentas. Foi lá que Ernesto estacionou a Kombi em que vinha trabalhando.
A primeira grande vitória foi comprá–la.
Kombis eram alvos de colecionadores ou de pessoas que viviam a crescente van life. Por isso não era barato de se adquirir. A de Ernesto estava em ótimas condições. Só precisava de algumas adaptações para o que ele pretendia fazer.
Depois de "milhares" de horas assistindo vídeos no YouTube, ele desenhou o seu projeto. Agora, estava na hora de colocá-lo em prática.
–––
A iluminação natural foi-se rapidamente e Ernesto acendeu a luz. Abriu os pacotes de entrega e começou a selecionar os materiais nos quais iria trabalhar naquela noite.
Depois de terminar a fiação elétrica, ele lidou com o madeirame de cedrinho (tratado contra água e cupim). Ele fez uma combinação com cola e passou em toda a madeira. Deixou-a repousando, então, começou a tirar as medidas dos espaços para as gavetas embutidas e suportes. Em seguida, marcou os cantos onde pretendia esconder os fios e instalar as caixas de água.
O desafio de ter um banheiro com chuveiro, dentro da Kombi, revelou-se mais difícil do que imaginava. Ele teria que reconsiderar os espaços... Outra vez! Mas não iria desistir. Na sua mente, já visualizava as pastilhas decorativas – tanto da cozinha quanto do banheiro. Ficariam muito bonitas, pois combinariam com a cor vermelha e branca da Kombi e com os bancos novos que ele encomendou.
Quando deu por si, o tempo voou. Ernesto guardou e limpou as ferramentas na caixa, depois desligou as luzes do rabicho que usava para trabalhar dentro da Kombi. Trancou tudo. Deixou a luz de fora do galpão acesa e seguiu para o ponto de ônibus. Estava cansado demais para fazer o percurso de volta a pé.
–––
Lembrou-se do pedido do tio e desceu do ônibus perto da padaria.
Lá chegando, sentiu o cheirinho bom do café. Não resistiu em tomar uma xícara. Sentou-se à janela e ficou lá, contemplando o movimento da rua. De repente, escutou uma voz conhecida. Virou-se e avistou Tessa junto ao balcão da padaria. Ela contava as moedas enquanto a moça do balcão aguardava de modo impaciente.
– Eu, hã... – Tessa estava dizendo. – Acho que vou querer dois pãezinhos doces para levar.
Ernesto podia apostar que mesmo sem dinheiro suficiente, um dos pães seria para a mãe. E ele atearia fogo à sua amada Kombi se Iara não reclamasse que a filha estava levando apenas dois, e não um saco com doze.
Sacudiu a cabeça, devia ficar na sua...
Uma sombra lhe mostrou que Tessa estava parada diante de sua mesa. Ernesto não escondeu o espanto, já que o padrão dela era fugir de tudo o que a magoasse, confundisse ou que a fizesse se sentir humilhada. Ele estava chocado diante da iniciativa.
– Posso me sentar?
– Claro! – disse ele, de modo automático.
Tessa se sentou, esperando que a atendente lhe trouxesse o saco de papel com os dois pães doces. Pela cara da mulher, não estava nada satisfeita com uma compra tão pequena. Quase jogou o saquinho com os pães na frente dela. Tessa pegou a comanda, calmamente.
A atendente virou-se para Ernesto e, toda sorriso, e perguntou:
– Deseja mais alguma coisa?
– Deixe–me pensar... – Ernesto olhou de relance para a figura frágil de Tessa dentro da jaqueta, que mais parecia engoli-la... – Acho que vou querer um croissant de chocolate, daqueles bem grandes e explodindo de recheio – inclinou-se para Tessa e perguntou: – Você vai querer o quê?
– Oh, nada... Obrigada!
Sempre tão educada, tão prestativa. Não era à toa que a mãe a explorava sem dó.
– Vamos lá, escolha... – Ele a incitou. – Caso contrário, eu vou escolher por você.
Ela não precisou de mais incentivo.
–Uma tortinha de creme e morangos – disse de imediato.
Foi então que ele teve certeza, pelo tom de voz urgente dela, que Tessa estava magra daquele jeito porque vinha se privando de muitas coisas. Ela estava com fome. Seu coração condoeu–se.
A atendente anotou os pedidos e foi buscá–los. Os dois ficaram em silêncio.
– Pretende ficar muito tempo na cidade? – Ela perguntou, puxando assunto.
– Não muito – ele respondeu, educado. – Só até o meu projeto ficar pronto. Pode levar uns meses ainda...
– Projeto?
– Estou construindo o meu motor home.
Ela arregalou os olhos. Lembrou-se de que ele falava sobre isso na adolescência.
– Vai finalmente realizar o seu sonho – ela sorriu.
Era o sonho dos dois, mas ele evitou lembrá-la disso.
– Bem, eu viajei um pouco, economizei e consegui comprar o veículo. Agora estou trabalhando para o meu tio, por um tempo, para que, junto com as minhas economias, eu consiga reformar o veículo por completo.
Ernesto era um mecânico maravilhoso. Com certeza, não faltaria trabalho. Além do mais, Tessa tinha certeza de que ele deixaria o motor home incrível.
– Que legal! Isso é maravilhoso!
– Pois é...
Eles ficaram em silêncio novamente. A atendente voltou com os pedidos. Tessa cortou um pedacinho da torta, com reverência. Levou a primeira garfada à boca e saboreou bem devagar. Com os olhos fechados.
Ele se lembrou de que ela sempre fazia isso, quando provava algo de que gostava muito.
– Lembra-se da sua preocupação com o banheiro? – Ele indagou num impulso.
Tessa abriu os olhos.
– Sim, eu lembro que achei praticamente impossível a gente conseguir ter um banheiro decente dentro de uma Kombi. O espaço é tão pequeno!
Ele abriu um sorriso iluminado, que roubou o fôlego de Tessa.
– O segredo está no aproveitamento dos espaços.
– Quer dizer que...
–Que a minha Kombi vai ter um banheiro com ducha, fogão e geladeira. Ah, e uma cama de acordo!
– Nossa!
Ernesto deu uma mordida no seu croissant de chocolate.
– Uau! – Ela olhou pela janela. – Parabéns!
– Você gostaria de ver?
Por essa, ela não esperava. E pelo desconcerto estampado no rosto de Ernesto, deduziu que nem ele...
– Sim, eu adoraria ver – respondeu, mesmo assim.
– A gente combina... Pode ser no sábado, que é quando vou ter mais tempo para trabalhar nela.
– A que horas?
– A hora que você quiser... Eu estarei lá o dia todo. Se quiser dar uma passada... – Ele procurou dar a impressão de que não se importava. – Sabe onde fica?
O sorriso dela morreu. – Você me levava lá. Eu sei onde fica.
– Ora, poderia ter esquecido... Sei lá.
Tessa olhou para a tortinha, perdera o apetite. – Acho que já vou indo.
Ele não disse nada. Se quisesse ir, que fosse. Ela pegou o saquinho de pão e murmurou um "boa noite" desmilinguido. Aquele jeito dela o irritou sobremaneira. Ernesto não respondeu. Terminou o croissant, pagou e foi embora para a casa do tio. No caminho refletiu o porquê das atitudes dela ainda o incomodarem.
Chegou a uma desconcertante conclusão. Havia cultivado a ilusão de ter superado Tessa. O problema é que não superou... E estava com medo de se machucar outra vez.
De uma coisa, tinha certeza. Tão logo sua Kombi estivesse pronta, ele iria embora sem olhar para trás.
–––
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