Capítulo 9
Cavalgamos por mais uma eternidade. A noite começou a avançar e o clima esfriou de repente. Sem as tochas da festa a temperatura era bem menor e eu não sei se havia ficado daquele jeito apenas no meio do caminho ou se eu estava assustada demais para perceber antes.
O cansaço do dia inteiro de preparação para o baile havia me alcançado e eu só não dormi na garupa do cavalo, porque toda vez que fechava os olhos eu me lembrava daqueles homens asquerosos matando pessoas, vestidos como convidados apenas para roubar nossas vidas... Foi até bom, provavelmente, se cochilasse, eu teria caído de Torrão e causaria um problema maior.
Em algum determinado momento de nossa viagem, no alto da estrada, foi possível avistar Santa Cruz das Flores iluminada pela luz da lua. A imensidão do mar me inebriou e eu me senti menor e mais assustada do que já estava.
Seguimos adiante na estrada de terra e bem antes das primeiras casas aparecerem, Zack adentrou em uma pequena entrada à direita do caminho de costume. Para onde ele está indo? Questionei-me. Ele diminuiu a velocidade do cavalo e continuamos por mais alguns 5 minutos na estrada estreita rodeada por uma mata densa.
Então o prédio apareceu. Era grande, uma casa com a mesma proporção da sede da nossa fazenda, mas não era tão elegante quanto. Não tinha os detalhes sofisticados de pedra, madeira e flores da nossa casa. Pelo contrário, parecia um lugar muito simples, apesar de ter um estábulo. Era como se a construção tivesse sido arquitetada para ser uma cabana e em algum momento ela tivesse crescido e crescido por meio da magia de alguma bruxa no meio da floresta, a ponto de se tornar alta o suficiente para ser confundida com a casa de um lorde se não fosse vista de perto. No alto da porta uma placa estampava os nomes dourados "La Maison de Madame Margot".
Quando descemos do cavalo, eu estava tremendo de frio.
– Q-que lugar é esse? – Perguntei batendo o queixo.
– Você já vai saber. – Zack respondeu e olhou para mim. – Espero que elas nos deixem entrar ou vamos congelar aqui fora. – Ele disse tirando a casaca azul e colocando sobre meus ombros. Ainda estava quente e com o cheiro amadeirado dele. O garoto enlaçou um dos braços sobre mim e me encaminhou para a porta da frente.
Surpreendentemente àquela hora da madrugada o som do piano e do violino era bem alto e quanto mais nos aproximávamos da porta, mais altas as gargalhadas se tornavam. Na minha cabeça, eu achava que esse era um horário reservado ao descanso, comumente acertado entre as pessoas para ficarem restauradas o suficiente para o trabalho do dia seguinte. Estranhei ao perceber que na casa de Madame Margot não era daquele jeito.
Zachary subiu as escadas e bateu na porta com força, enquanto eu ficava nos degraus de baixo. Eu duvidei nas primeiras batidas que alguém iria escutar, Zack ainda tentou abrir a porta pesada de madeira algumas vezes, mas estava trancada. Muitas batidas depois, uma mulher de cabelos longos, negros e sedosos abriu a porta.
– Ora, Ora, se não é o jovem Lackwood! Achei que estivesse aproveitando a sua grandiosa festa de aniversário. – Ela tinha uma voz que estranhamente combinava rouquidão e feminilidade.
Os olhos eram perspicazes e maliciosos, como se ela sempre fosse esperta o suficiente para saber mais que você. Eram olhos que guardavam segredos. A garota não vestia muita coisa e acho que foi isso que me impactou. Usava um robe simples que era de todo muito transparente e deixava propositalmente a perna esquerda e longa exposta por entre a abertura da roupa. Seu cabelo preso pela metade possuía uma presilha do lado esquerdo e deixava as madeixas lustrosas caírem em cascata. Estava descalça e fumava um cachimbo de madeira, o que lhe atribuía um ar selvagem e despretensioso.
– Glória... – Zack murmurou acanhado e com os olhos arregalados.
– Droga, rapazinho, eu apostei com Conceição que você não retornaria! Que falta de sorte a minha, talvez você tenha mais a ver com o seu tio do que o que eu pensei. Aliás, onde está aquele homenzinho depravado? – Ela questionou colocando as mãos finas e brancas abaixo do queixo e riu. – Ele é o único homem pelo qual as garotas não brigam... Já que ele acaba pagando por todas. – Pagando? Foi quando me dei conta de onde estávamos. Um bordel? Por que cargas d'águas nos mandariam para um bordel?! E por que Zachary sabia o caminho?! O garoto estreitou os olhos e ficou com uma expressão séria.
– Onde está Madame Margot?
– Sabia que você tinha gosto pelas mais velhas.
– Onde ela está? – Zack perguntou de novo com um tom levemente irritado.
– Ela vai ser a atração principal da noite, está se preparando para dançar para aqueles cachorros babões. – Glória comentou olhando de soslaio para dentro da casa. – Sabe, jovem Zachary? – Ela tagarelou. – De certa forma me deixa ofendida saber que você prefere aquela velha francesa, significa que não consegui satisfazer um garotinho como você, achei que podia agradar todos os públicos. Acha que eu não sou experiente o suficiente? – Franzi a testa enquanto escutava aquele diálogo explicitamente vulgar.
– Não vim para pagar pelos seus serviços, Glória.
– Não? – Ela pareceu surpresa por alguns instantes e retornou para a expressão de desdém de antes.
– Vim pedir a sua ajuda.
– Ajuda?! – Ela questionou confusa. No mesmo momento em que espirrei alto, Glória empurrou Zack para me enxergar escondida por detrás de seus largos ombros. – O que ela faz aqui?! – Ela perguntou entredentes. – O que raios aconteceu na maldita fazenda dos Lackwood?! – Ela perguntou com os olhos esbugalhados. Zachary hesitou e respondeu.
– ...Piratas.
As mãos de Glória voaram na porta pesada de forma hábil e só não a fechou completamente porque Zack colocou o pé na abertura antes da cortesã a bater.
– Você quer acabar com a minha vida?!
– Nós não temos a quem recorrer! Onde está Madame Margot? Deixe-me conversar com ela.
– Você acha mesmo que Madame Margot vai deixar dois procurados dos piratas ficarem no bordel dela?! Rapazinho! Ela vai botar você para correr com uma tocha e uma estaca de madeira!
– Então, nos ajude! Eles vão nos matar! Já mataram todos conhecemos!
– E o que você acha que eles irão fazer conosco se eles, se quer, sonharem que nós estamos tendo essa conversa?! – Ela sibilou. – São nossos mais fiéis clientes até nos metermos nos seus negócios e começarmos a pensar como gente.
– Glória, você não está entendendo... – Zack tentou falar.
– Quem não está entendendo é você, criança! – Ela disse remexendo as mãos nervosa e aterrorizada, podíamos ver o medo estampado em seu rosto. Havia deixado de lado a mulher sensual e de fala mansa. – Esses homens são ardilosos! Vocês não podem ficar aqui!
– Por favor! – Encontrei forças para falar, enquanto congelava de frio. – Deixe-nos ficar só esta noite. – Os olhos dela viraram-se para mim repentinamente e sua expressão mudou quando me olhou.
– Você não sabe o que está me pedindo, olhe para você, toda lindinha com esses olhos azuis e bochechas rosadas, garotinhas como você quando entram aqui não costumam sair! Experiência própria... – Ela sussurrou.
– Aposto que é melhor entrar com vida do que ficar aqui fora e morrer.
– Você deveria estar mais apavorada com esse lugar do que com os piratas que estão te seguindo, vai por mim.
– Glória... – Zack começou de novo. – Nós não temos para onde ir, de verdade. – Ele falou e os olhos da prostituta apesar de ainda aterrorizados começaram a ter um teor de condolência.
– Podemos pagar! – Falei desesperada, pois eu sabia que de fato não tínhamos outra opção. Zack olhou de soslaio para mim, tentando entender o que eu estava falando. – Quanto custa uma hora com você? Eu tenho joias, veja! – Comecei a tentar tirar os brincos de safira de Melissa. – Se pagarmos pela hora, podemos fazer de tudo, certo? Inclusive entrar e nos escondermos no seu quarto, não é?! – Perguntei exaltada. Zachary olhou para Glória por alguns instantes e abaixou a cabeça levemente encabulado. Eu não entendi de todo, mas pareceu funcionar, pois por uma fração de segundos a expressão de Glória vacilou.
– Não, não! Não vou aceitar nada! Nada! Que tipo de pessoa acham que sou? Eu sou uma cortesã não a boa Samaritana e Deus que me perdoe, mas não vou arriscar minha vida para ajudar vocês!
– Glória, eu passei uma noite com você, você sabe que tipo de pessoa eu sou. – Zack falou. Virei minha cabeça para ele e franzi a testa, tentando seguir o rumo da conversa. – Eu não estaria aqui se de fato não precisasse de ajuda. Você sabe disso. – O garoto disse e um silêncio se demorou enquanto nos encarávamos. Algo havia tocado aquela mulher, posso dizer até que enxerguei um breve brilho nos olhos dela.
– Eu sinto muito. – A prostituta disse de forma dura.
– Por favor... – Supliquei. – Nós vamos morrer... – Glória fechou com força a abertura que nos permitia conversar.
– Temos um cavalo também... – Zack ofereceu com a porta já fechada.
Ficamos alguns segundos ainda encarando a entrada do bordel antes de percebermos que de fato dali em diante não tínhamos para onde ir.
– Ótimo e agora?
– Ei! Não me olhe desse jeito, foi ideia sua vir até aqui! – Zack rebateu.
Foi ideia da bruxa. Pensei. Droga, se ninguém iria nos ajudar aqui, porque ela nos mandou para esse lugar? Ficamos alguns segundos em silêncio de novo.
– Você dormiu mesmo com ela? – Perguntei a Zack. Ele virou-se para mim abruptamente, abriu a boca e a fechou, encabulado.
– É melhor nós sairmos daqui. – Ele murmurou virando-se para Torrão. Eu não queria me prolongar mais naquela conversa desagradável, já havia passado por muita coisa naquela noite e não estava disposta a saber mais sobre aquilo naquele momento, talvez no dia seguinte ou dali a alguns dias. Ou semanas. Ou meses...
Subitamente, quando já nos encaminhávamos para ir embora, a porta abriu e Glória saiu de lá praguejando e resmungando.
– Inferno! Além de puta eu tinha que nascer com o coração mole! Vão para o fundo da casa e me esperem na porta da cozinha, irei guardar o cavalo.
Glória guardou Torrão no estábulo enquanto dávamos a volta pela casa. Ela destrancou a porta da cozinha por dentro e nos encaminhou pelo ambiente, apressada.
Não foi de todo simples acompanhar os passos da cortesã. Estava escuro e o som da música e das risadas espalhafatosas eram mais altas do que do lado de fora, abafando os passos velozes de Glória. Fomos furtivos e rápidos, em poucos minutos atravessamos o bordel de Madame Margot, às escondidas sem que ninguém nos descobrisse. Meu coração ainda estava acelerado quando nossa guia destrancou a porta de seu quarto e nos empurrou para dentro do cômodo.
– É aqui que trago meus clientes. – Glória comentou, enquanto trancava a porta novamente por segurança. – Infelizmente, para todos os efeitos, esse também é meu quarto. Não precisam se preocupar com incômodos, vão pensar que estou atendendo alguém.
O espaço era bastante rústico e não possuía de muitos móveis. Resumia-se a uma cama de casal, uma poltrona, um criado mudo, velas, um guarda roupa e uma lareira acesa.
– Ruivinha, passe-me as joias antes que eu me arrependa de ajudar. – Ela falou com as mãos na cintura. Entreolhei-me com Zack e tirei o colar entregando-o a ela. – E quanto aos brincos?
– Não posso dá-los. – Falei com os olhos abaixados. – Podemos precisar deles, levando em consideração nossa situação.
– Nós tínhamos um trato, lembra? – Disse de uma forma surpreendentemente calma.
– Amanhã pela manhã, podemos ir à Santa Cruz e vender o cavalo. Ele é um bom animal, deve valer um bom dinheiro. – Zack disse. – Seria suficiente? – Nos encaramos até Glória suspirar e olhar para o colar.
– Bem... Terá que ser. – Ela estava desgostosa, percebi pela forma como olhou para nós. – Já decidiram o que pretendem fazer quando o sol raiar? – Glória questionou enquanto sentava-se na poltrona em frente à lareira. Entreolhei-me com Zack, ambos procurando possíveis respostas um do outro. Será que podemos confiar nela?
– Só sabemos que precisamos fugir. – Zack desabafou.
– Vocês não pensam em retornar à fazenda? – Perguntou a cortesã.
– De jeito nenhum! – Exclamei. Glória ergueu as sobrancelhas rapidamente, surpresa.
– Por quê? É o lugar mais óbvio, piratas costumam apenas saquear e ir embora, não costumam ficar em um lugar por muito tempo.
– O que está acontecendo conosco começou lá, a pessoa que nos persegue é alguém próximo. Não foi um simples saque como qualquer outro. – Zack falou e Glória assentiu.
– Talvez possam procurar por algum conhecido da ilha. – Ela sugeriu.
– Meus parentes retornaram para Lisboa, alguns foram para a colônia e eu não tenho noção de onde nenhum deles esteja.
– E quanto a você, rapaz? – Glória questionou.
– Eu só tinha meu pai e meu tio e eles estão mortos agora, não confio em mais ninguém. Além do mais, os piratas procurarão as pessoas que conhecemos, coletando informações nossas. – Ela colocou a mão abaixo do queixo pensativa.
– Pagaram um bom dinheiro a esses infelizes, não são tão meticulosos. O que faz de vocês tão preciosos? – Ela questionou curiosa.
– Precisamos sair da ilha. – Cortei seus pensamentos. – Tens conhecimento de alguma embarcação que sairá amanhã?
– Tem um navio partindo para Londres pela manhã, eu conheço o capitão, é um bom benfeitor, mas péssimo amante, ele nunca consegue cumprir sua hora inteira comigo... – Ela tagarelou devaneando. – De qualquer forma... – Disse retornando à realidade. – Acho que posso convencê-lo a levá-los por uma quantia razoável. – Entreolhei-me com Zachary enquanto digeríamos a ideia.
– Londres... – Saboreei a palavra em minha boca. O centro do reino inglês, uma cidade enorme, cheia de entretenimentos, labirintos e desafios. Tão diferente da simplória Ilha das Flores. – É tão longe. – Zack estava pensando, notei pelos seus olhos.
– Meu pai ia me mandar para lá. – Ele comentou. – Deve ter contatos que podem nos ajudar, Ellie. – Seus olhos ganharam certo brilho na medida em que falava.
– Seria como procurar uma agulha no palheiro. – Falei. – Mas, estaríamos a salvo. – O garoto assentiu. Uma breve esperança crescia dentro de nós. – Parece suficiente. – Simultaneamente nos viramos para encarar a cortesã.
– Vocês já têm um destino, então. – Ela disse. – Não restam muitas horas de sono, sugiro que se acomodem e descansem. – Com acenos de cabeça, nós assentimos. Meu corpo inteiro doía em especial minha cabeça que parecia querer explodir. Eu e Zack nos encaramos por alguns segundos e nos demos conta que só tinha uma cama no quarto. Nós éramos três.
– Vou ficar na poltrona, vocês podem dividir a cama se quiserem, não vou contar para ninguém. – Ela disse risonha e acendendo o cachimbo.
Esbugalhei os olhos para o garoto, assustada, e abaixei a visão rapidamente, muito incomodada com aquele cenário. Meu rosto inteiro ardeu vergonhoso. Não sei qual foi a reação no rosto de Zack, pois não a vi, apenas o escutei pigarreando e anunciando:
– Eu vou dormir no chão.
Glória riu zombeteira e voltou a prestar atenção no fogo. Encaminhei-me para a cama tirando a casaca de Zack dos meus ombros, enquanto ele puxava um cobertor e um travesseiro. Estava tão frio que cogitei a ideia de fazê-lo dormir na cama, fiquei com medo de que ele ficasse doente, mas admito que ainda estava envergonhada e não tive coragem para tanto.
Tirei o único sapato que havia me restado e pousei a cabeça sobre o travesseiro de Glória, pensando onde poderia estar o outro par. Fechei os olhos e tentei dormir, mas não consegui. Não havia sobrado tempo para parar, refletir e chorar pelo o que havia acontecido naquela noite e infelizmente àquele era o momento. Não havia espaço para mais nada além das lembranças daquela noite fatídica. Pessoas sendo esfaqueadas, gritos agonizantes e desesperados e a garota desconhecida dizendo: "Eu sou o que você é".
Aquilo havia me incomodado mais do que eu gostaria de admitir. Não pretendia comentar aquilo com Zachary e nem com ninguém, mas não conseguia deixar de lado um pressentimento de que as coisas ruins haviam apenas começado. Mesmo a estranha tendo salvado a minha vida, ela reacendera um sentimento que eu guardara comigo desde que percebera aqueles pesadelos de infância. O sentimento de que eu não era quem eu pensava ser.
Eu não era quem me ensinaram que eu era.
Tentei impedir meus pensamentos, mesmo sendo algo que eu não podia controlar. Em algum momento durante aquelas poucas horas, depois de revirar pela cama, eu cochilei e sonhei com os piratas cortando as gargantas de meus pais na minha frente. Acordei com um susto e sentada. O coração disparado e o pulmão suplicando por ar.
– Não consegue dormir? – Glória perguntou da poltrona.
Respirei fundo, fitando sua silhueta sentada, iluminada pelo que restava das brasas da lareira. Ela tinha um livro em uma das mãos e o cachimbo na outra. Havia parado a leitura para me dar atenção. Não a respondi e vaguei os olhos pelo cômodo como se procurasse pela minha respiração calma por entre as fissuras da parede. Zack dormia um sono pesado no chão, fiquei me questionando como ele podia ficar em paz em uma noite como aquela.
– Você também não. – A prostituta riu.
– Ossos do ofício, há muito tempo deixei de ser cotovia e passei a ser coruja. – Eu tremi e percebi que ainda estava frio. A mansão tinha frestas e o vento do outono já havia chegado, uivando pelo local e se fazendo presente. Margot não havia criado um local quente, era um cômodo para quem passava poucas horas e ia embora. O barulho na parte debaixo da casa havia diminuído, estava chegando perto do nascer do sol e os homens voltavam para suas vidas, alguns para suas mulheres. – Deseja se aquecer? – Ela convidou, percebeu que eu estava tremendo.
Subitamente, me lembrei de Zack dormindo no pé da cama e como deveria estar congelando no chão frio. Levantei-me, peguei a casaca e coloquei sobre seu corpo já envolto por um cobertor fino. Encaminhei-me por fim para perto das brasas e agradeci aos céus pelo conforto do calor leve. Sentei-me em um banco baixo perto da lareira e ergui os olhos para a cortesã.
Ela me olhava com um olhar curioso e seus lábios sorriram malícia.
– Não sabia que cortesãs sabiam ler. – Comentei. A morena arqueou as sobrancelhas.
– Nem todas sabem, mas eu tive uma vida antes dessa prisão, onde eu era mais erudita do que bonita.
– E isso te ajuda na sua nova profissão?
– Não, homens não gostam de mulheres inteligentes. Escondo os livros quando os trago aqui. – Assenti.
– O que você está lendo afinal?
– Romeu e Julieta. – Eu ri.
– Um romance?
– Sim. – Ela sorriu doce.
– Gosta de histórias de amor, então? – Glória assentiu. – Que estranho. Apreciar o amor e vender a paixão todas as noites.
– De fato. O amor seria minha ruína. No entanto, gosto dos romances trágicos. – Enruguei a testa.
– Por quê?
– Porque são mais reais, são mais próximos daquilo que eu entendo. – Ela virou os olhos para o garoto deitado. Zack. Meu parceiro. Meu. Não gostei de como ela olhou para ele. – A maioria das tragédias começa com uma história de amor. – Glória voltou-se para mim e a pergunta pairou no ar.
Vocês de fato estiveram juntos? Você proporcionou uma noite dos seus serviços a ele?
O orgulho gritou mais alto e por mais que eu quisesse saber, não consegui abrir a boca e perguntar.
– Ele não dormiu comigo. – Glória confessou com um sorriso de um felino predador. – Nem com nenhuma das garotas de Margot. – Um estranho alívio se apoderou de mim.
– Eu não...
– Não precisa se explicar, eu vejo como o olha.
– Ele é como um irmão. – Afirmei convicta, fazendo Glória rir.
– Continue enganando a si mesma então. – Endureci minha expressão e fiquei em silêncio, chateada por não ser creditada, mas interiormente feliz por Zack continuar sendo o garoto que eu tinha em mente. Ele não havia me decepcionado afinal. Glória voltou a ler, visto que eu havia parado de lhe dar atenção.
– Como foi que se conheceram? – Não pude conter minha língua e os olhos castanhos e presunçosos se levantaram da leitura, ela havia ganhado a batalha e estava se divertindo com as minhas reações.
– Percival Lackwood. – É claro!
– Que surpresa. – Comentei irônica.
– Um homem muito polêmico de fato. – Glória disse. – Era uma noite normal, eu iria me apresentar no palco quando os dois chegaram para passar a noite. Eu não gosto de clientes como Percival, seus métodos sádicos me incomodam, mas, de alguma forma eu sabia que o jovem ao lado dele não era similar àquele homem. Ele parecia deslocado e rígido demais. Todas nós percebemos que era a sua primeira vez ali. Quando desci do palco, Madame Margot me encaminhou para mesa deles e me disse que eu tomaria conta do garoto. Deixei as garotas com raiva, elas estavam disputando por ele. Fiquei imaginando as mil e uma coisas que eu podia ensiná-lo, no intervalo de tempo entre a mesa e o meu quarto eu consegui ficar bem animada, mas... – Ela desviou os olhos para Zack. – Ele não estava pronto.
– Não? – Questionei e ela balançou a cabeça em negativa.
– Ele teve medo de me recusar e ter que encarar o tio. Descer as escadas com o orgulho ferido estava fora de questão, então ele me propôs uma noite de confidências enquanto jogávamos cartas. – Glória riu. – Achei graça no começo, mas aceitei a ideia depois. Não foi a primeira nem a última vez que servi como ouvinte. Foi escutando o que ele tinha para dizer que entendi que tinha um bom coração. Quando nosso tempo esgotou, prometi a ele que nunca contaria a ninguém o que aconteceu naquela noite.
– Você acabou de quebrar sua promessa.
– Escutei o suficiente sobre a senhorita para saber que está no círculo de confiança do jovem Lackwood. Um círculo que é muito restrito devo dizer.
Admito que meus ouvidos coçaram para saber o que Zachary havia dito a ela naquela noite. Eu queria todos os detalhes em específico os que me envolviam, mas mais uma vez eu não tive coragem de extrair nada daquela mulher.
– Ruivinha.
– Sim?
– Não confie nele.
– Acabou de elogiá-lo!
– Quanto mais cedo se descobre a natureza dos homens melhor.
– Você não sabe nada sobre Zack. Ele é a melhor pessoa que conheço.
– É sempre assim no começo. – Glória ri.
– Ele é a única pessoa em quem posso confiar.
– Sinto muito por você então.
– Por que está dizendo essas coisas para mim?
– Como acha que vim parar nesse lugar? Essa vida... – Glória devaneou o olhar. – Não desejo nem ao pior dos meus inimigos. Já fui uma garota tola como você, entreguei meu corpo e minh'alma ao grande amor da minha vida. Pura ludibriação essa história que contam do amor! Eu já confiei nos homens. – Glória diz oca, como se pensasse em outra coisa enquanto falava. – Já me prometeram um casamento e um lar antes. Deixei meu pai, minhas irmãs e minhas terras por um amor e no fim não me restou nada. Ele foi embora e eu caí em desgraça. Madame Margot me acolheu, mas eu não vejo pura abnegação em seus atos. Ela age pelo lucro e somente. Tenho juntado dinheiro para ir embora dessa ilha maldita!
– Vai voltar para sua família?
– Eu não teria coragem para tanto, depois de tudo o que fiz... – Glória pausou. – Um recomeço em qualquer outro lugar com certeza seria suficiente para mim. Não almejo nada, além disso. – Mais uma vez ela pousou os olhos no menino adormecido. – Eu posso estar errada sobre o garoto, Zack pode ser uma grande exceção à regra e eu não ficaria surpresa com isso. Mas, homens são homens, afinal. Não podem fugir do que estão predestinados a ser e até o mais puro dos corações está sujeito ao apodrecimento quando amadurece.
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