Capítulo 18
— Você acha que ela vai acordar?
— É claro que vai!
— É que já faz três dias...
— Não seja negativa!
— Ela se recuperou muito rápido, nunca vi nada do tipo. — Outra voz pronunciou.
— Ela é tão bonita, parece a Branca de Neve... — uma voz infantil declarou.
— Arabella! O que ainda faz aqui? Você sabe que está proibida de ver a novata!
— Mas eu não tenho aula, você disse que eu só não podia vir aqui enquanto estivesse estudando, Marisol!
Um cheiro doce inundava o ambiente e eu tinha certeza que estava em algum lugar aberto por conta da claridade que incomodava meus olhos, mesmo fechados. O que está acontecendo? Minha mente se questionava em meio ao embaralhado confuso que havia se tornado. Eu não conseguia mexer meu corpo ou corresponder às perguntas das garotas curiosas.
— Eu disse que eu não a queria aqui, porque você precisava melhorar suas notas! — Marisol respondeu autoritária, com certeza ela comandava alguma coisa.
Minhas pálpebras trepidaram, os sentidos retornavam vagarosamente. Tentar me levantar era inútil, mas a sensação de poder acordar era aliviante. Ou nem tanto, porque aos poucos as sensações voltavam e eu notava como meu corpo estava dolorido.
— Ela está acordando! Está acordando!
Consegui notar a empolgação e o alvoroço que o simples abrir de olhos causava nas minhas espectadoras. Sons de passos trôpegos se acotovelando se espalharam e me fizeram encarar vários pares de olhos me analisando ansiosos.
Eu estava errada sobre ser um ambiente aberto. Era um quarto, repleto de janelas venezianas e camas enfileiradas. Os lençóis eram impecavelmente brancos e, apesar da decoração casta, não era difícil interpretar que se tratava de um dormitório feminino. Tinham flores nas mesas de cabeceira e desenhos de borboletas espalhados pelas paredes. Talvez por isso eu tenha achado que eu estava ao ar livre; o quarto era bem ventilado e carregava um cheiro floral.
Quatro garotas me encaravam. A mais nova estava mais perto, não devia ter mais de 7 anos. Estampava um rosto em formato de coração e olhos castanhos ansiosos. Os cabelos loiros estavam presos em um coque que deixava sua testa curta exposta. A segunda não era muito alta e prendia os cabelos crespos e pretos pela metade, a pele castanha destacava os olhos puxados cor de âmbar.
As outras duas tinham a aparência semelhante, compartilhavam as mesmas íris castanhas esverdeadas e o mesmo tom de pele claro, mas os cabelos castanhos se diferenciavam na textura. Uma tinha o cabelo liso e comprido, enquanto a outra tinha cachos volumosos na altura dos ombros. A com o corpo mais robusto tocou minha testa e checou minha pulsação no pescoço.
— Como ela está, Katrina? — A mais magra questionou e pela voz, reconheci como sendo Marisol.
— Estável.
— Ótimo! — Respondeu com um sorriso. — Precisamos avisar à sra. Balthazar! Mira! — Ela virou-se para a garota de cabelo cheio. — Chame-a, conte a ela que a garota está bem.
Mira afastou-se rapidamente e as que restaram continuaram me encarando. Katrina, parecia ser mais calma e observadora. Seu semblante era menos animado que os outros, mais centrado. Me lembrava Zachary. Eu devo ter demonstrado ansiedade, pois as garotas logo tentaram me deixar mais confortável ajeitando os travesseiros e alisando os lençóis.
— Está tudo bem! — Marisol prometeu, sorrindo. — Nós estamos cuidando de você, não sei o que aconteceu contigo, mas agora você está a salvo.
Por mais gentil que elas parecessem, eu não era boba. O nome Balthazar me causava arrepios e se eu não estava do lado de Zachary, alguma coisa estava muito errada.
— Eu sei que você deve estar confusa, todas nós chegamos aqui um pouco atordoadas, mas não se preocupe, em breve seu corpo estará recuperado do veneno.
Veneno? A lembrança da luta contra Kassandra me acertou em cheio, e minha respiração se tornou entrecortada. Eu consegui soltar um murmuro de desespero que deixou as garotas assustadas.
— O que está acontecendo, Sol? — A criança perguntou.
— Ela está... com medo. — A mais velha constatou.
— Marisol, tire Arabella daqui. — Katrina pediu baixo e urgente. — Tem muita gente em cima da novata.
Marisol deu uma última olhada em mim e saiu com a pequena no colo. Eu voltava a ter controle do meu corpo, mas junto com ele vinha a dor. Parecia que havia desmembrado e costurado meus membros. Eu nem havia percebido, mas havia começado a pressionar as beiradas da cama com as mãos.
— Você precisa se acalmar, está tudo bem. — Katrina disse. — Mia, venha aqui me ajudar!
Outra garota surgiu, uma que estava escondida e calada apenas observando a situação. Ela era negra e tinha longos cabelos pretos e lustrosos. Eram lisos e se eu não analisasse com cuidado, parecia que ela usava seda preta no lugar dos fios. Mais uma pra eu decorar o nome! As duas seguraram os meus braços tentando me transparecer paz, mas o olhar de Mia era desesperançado. Ela parecia ser a única a me entender naquele lugar.
— Ela é forte! — Katrina notou.
Não demorou e duas toras de madeira foram soltas da cama com um baque. As duas me soltaram e me olharam com as bocas abertas.
— Dios mio! — Katrina exclamou. Eu não havia notado seu sotaque espanhol até aquele momento.
Katrina se afastou com medo do que viria a seguir, mas Mia notou que algo estava acontecendo. Ela tinha olhos analistas que a faziam interpretar as coisas rápido. Mia tocou no meu braço e se aproximou do meu ouvido.
— Você precisa ficar calma, não a deixe perceber que você tem força. — Ela levantou a cabeça bem a tempo do retorno de Mira.
— O que está acontecendo? — Essa voz é nova!
Mira estava acompanhada de uma senhora magra de estatura alta e rugas bem espalhadas pelo rosto. Vestia um vestido purpura elegante e os cabelos loiros claros estampavam alguns fios grisalhos. Eu não fazia a mínima ideia de quem era aquela mulher, mas ao encarar os olhos claros, comecei a reconhecer algumas semelhanças.
— Senhora, ela tinha acabado de acordar e... — Katrina começou.
— Mas, a cama quebrou quando ela ficou agitada. Nós sabemos que a madeira já estava ficando podre, sra. Balthazar. — Mia completou colocando os braços para trás e escondendo os dois pedaços que faltavam da cama. Katrina observou Mia como quem não entendia, mas assentiu e ficou calada.
A mulher encarou as duas garotas com os olhos cerrados. Ela sabia que elas escondiam alguma coisa, mas eu não pude saber as palavras que viriam a seguir. Uma tontura que já começava a se tornar conhecida me abateu. Meu corpo estava cansado e por mais que eu quisesse saber o que estava acontecendo e não pudesse calar a vontade de encontrar Zachary, meu cérebro não parecia a favor da ideia de lidar com aquilo agora.
Por isso, o sono chegou e eu perdi o controle que havia conquistado do meu corpo. Não conseguia ouvir os pensamentos de ninguém até então, mas antes de adormecer de novo eu captei algumas palavras da mente da sra. Balthazar.
Kassandra pescou um peixe grande dessa vez.
...
Demorei horas para voltar a acordar, os meus olhos só tiveram força para abrir de novo quando tudo estava escuro. O quarto estava silencioso e vazio, física e mentalmente. Parecia que meus sentidos haviam de fato voltado. Constatei logo que ninguém havia sobrado para ficar de olho em mim, o que era estranho. Talvez elas acreditassem que eu não voltaria a acordar tão cedo, levando em conta os últimos acontecimentos.
Alonguei minhas pernas no que restou da cama, sentindo os músculos estalarem. Era bom ter algo fixo para descansar a coluna, não sentiria falta das redes. Levante-se! Você precisa fugir do que quer que seja esse lugar e encontrar Zack!
Eu estava prestes a levantar, impulsionada por meus próprios pensamentos, quando a garota de cabelos lisos surgiu, iluminada somente por uma vela. Era Mia, a garota que havia conseguido me acalmar. Eu não sabia até que ponto minhas habilidades mentais haviam voltado, mas sabia que da cabeça dela não saía se quer um pensamento. Será que o problema é comigo?
É claro que fechei os olhos e fingi que ainda estava dormindo. Se havia alguém que sabia como sair dali em segurança, era ela. Esperei que a luz passasse pela minha cama e virei-me em direção a ela sem fazer muito barulho para não chamar atenção. Abri uma fresta nos olhos e analisei a cena.
Ela abriu a maior janela do quarto, colocou uma corda nas costas e apagou a vela, a deixando para trás. Ela vai fugir! Convenci-me. Antes que eu pudesse pensar em qualquer outra coisa, Mia passou as pernas e pulou da abertura. Contive um susto e corri até a janela para enxergar o que havia acontecido.
Me esgueirei silenciosa pelo quarto, agradecendo aos céus pela força nas minhas pernas. Alcancei a janela e procurei pela garota. Era noite de lua cheia, tudo estava às claras. O mar espelhado se abria logo em frente à abertura e ao fundo, uma mata de árvores altas se estendia no quintal do que eu notava agora ser uma mansão. A casa de Kassandra não era nem um pouco pequena. Um telhado mais baixo do lado do quarto se estendia e Mia se equilibrava nele com cuidado. Parecia um gato bem treinado, sinal de que já havia feito aquilo mais de uma vez.
Eu prendi a respiração, pensando em como ela havia feito aquilo e em como eu faria aquilo. Ok, Ellie! Não é tão difícil assim! Você sobreviveu a um ataque pirata, fingiu ser um garoto... Ok, essa parte não deu muito certo. Mas tudo bem, porque você é uma sereia, lembra? Você consegue pular esse telhado!
Soltei um último suspiro e saltei, tentando seguir os movimentos da fugitiva. A altura era maior do que o previsto e as minhas pernas, surpreendentemente, não reclamaram do esforço. O objetivo havia sido alcançado: eu não havia feito barulho e nem chamado a atenção dela. Mia estava muitos metros na minha frente e seguia apressada. Sem esperar, escutei um fragmento de um dos seus pensamentos.
Rápido, rápido!
Então eu posso ouvi-la! Eu pretendia segui-la até a saída e procurar alguma forma de desaparecer daquele lugar, mas algo no tom de sua voz mental me fez querer saber aonde ela ia com tanta pressa. Dei os meus primeiros passos em sua direção e me apressei para conseguir acompanhá-la.
O telhado mais baixo que seguíamos permanecia reto e fazia uma curva no fim do caminho. Mia contornou a trilha com maestria e sumiu depois da volta, e então eu me encostei atrás da parede e analisei o que ela fazia. A garota amarrou a corda em um gancho escondido entre as telhas e puxou a corda se certificando de que estava presa. Admito que invejei seu nó, eu havia passado bons meses no mar e não conseguia fazer um trabalho tão firme como o dela.
Poucos segundos depois, ela agarrou a corda e saltou para o desconhecido. Dessa vez, não levei um susto. Eu não pude evitar um olhar para trás para verificar se não havia ninguém me seguindo. A janela do quarto jazia escura e silenciosa, ninguém havia notado nossa falta.
O corpo de Mia já havia sumido por entre as árvores e eu precisava segui-la antes que eu a perdesse de vista. Agarrei a corda e segui os movimentos da garota. Minha segunda aterrisagem não foi tão bem feita como a primeira, eu fiz mais barulho do que gostaria de admitir, diferente da minha guia.
Os sons da noite eram claros aos meus ouvidos. Eu não podia ver, mas conseguia ouvir tudo ao meu redor. Os animais noturnos saíam da toca e o vento farfalhava as folhas. Se não fossem minhas novas habilidades, eu não teria conseguido notar os sons de pés amassando a terra ou a respiração entrecortada da fugitiva.
Apressei meus pés e corri furtiva atrás dela, tentando não ser notada.
Não tenha medo! Você sabe que esse é o único jeito!
Na medida em que ela ficava cansada, mais fácil se tornava ouvir os pensamentos embaralhados e secretos de Mia. Eu não conseguia parar de me questionar o que estava acontecendo, para onde estávamos indo e o que ela pretendia fazer.
Um sentimento horrível fluía da alma de Mia. A sensação me abateu e até me fez diminuir a corrida. Uma dor causticante acertava suas costas e seu peito queimava, como se ela estivesse preste a chorar. Eu fiquei confusa. Aquilo não tinha como estar acontecendo naquele momento, ela estava no meio da floresta. Muitos minutos depois, foi que eu notei assustada, que Mia estava se lembrando de algo que aconteceu no passado.
Esse é o único jeito de ser livre!
Mia diminuiu velocidade e as árvores pararam de aparecer, dali em frente o terreno era pedregoso e o som das ondas do mar era forte. Eu me escondi atrás do último tronco antes do espaço vazio que se seguia e fitei o vento ricochetear com força o vestido e o cabelo da menina. Ela olhava para baixo e seu corpo tremia, mas eu não ouvi sons de soluço. Sua mente era como uma porta de madeira trancada, mas que deixava escapar breves sussurros da conversa do outro lado.
Não era fácil entrar na cabeça dela como havia acontecido com os outros, mas eu continuei tentando. Consegui captar um vislumbre da sua mente, era a visão que ela tinha da ponta do penhasco. A água batia violenta na costa e lá embaixo era possível ver as centenas de pedras pontiagudas.
Você precisa fazer isso antes que ela te ache!
É o único jeito! Sua mente ecoava repetidamente.
Um arrepio passou pela minha espinha quando comecei a entender o que ela pretendia fazer naquele meio de nada. Eu deveria correr e salvá-la, mas meu corpo estava paralisado, de forma que era difícil até piscar. Mia puxou um último suspiro. Não era de despedida, seus sentimentos não eram de apego, pelo contrário. Nada a prendia mais àquela vida. Ela suspirou para tomar coragem.
Então saltou.
Eu ia deixá-la completar seu desejo. Espatifar seu corpo nas pedras e se afogar na água gelada, caso as rochas não fizessem o serviço direito. Eu estava em choque o suficiente para não conseguir fazer nada. Mas logo após saltar, um outro pensamento emergiu e eu corri desesperadamente em direção ao penhasco.
Foi instintivo e louco pular do penhasco em seu encalço. Eu não sabia o que se passava na minha cabeça quando o fiz, mas eu tinha noção de que não conseguiria alcançá-la e que agora nós duas morreríamos.
No entanto, algo aconteceu. De alguma forma minha queda foi mais rápida do que a de Mia e eu pude segurar seu punho na metade do nosso trajeto até a água. Ela levantou os olhos grandes e assustados. Eu nunca vou saber se ela os arregalou por conta da situação ou porque ela notou que eu não estava me segurando em nada.
Estávamos flutuando a vários metros acima do mar e eu não fazia a mínima ideia de como estava fazendo aquilo. Tentei controlar meu corpo de maneira que nos afastei da queda sobre as pedras, mas, diga-se de passagem, era a primeira vez que eu estava levitando e eu era muito desajeitada. Nós caímos e devo dizer que foi bem melhor que morrer, mas ainda teve o desconforto do impacto.
Em contato com a água, a dor e a queimação não tardaram a chegar. Minhas roupas íntimas se rasgaram mais uma vez e a cauda se fez presente. A transformação foi mais rápida que a primeira vez. Alcancei a superfície e encontrei uma Mia ainda espantada, ela me encarou e a realidade chegou nela rapidamente quando viu minha parte de baixo agitando a água.
— Você é uma sereia! — Gritou. Torci o nariz em desgosto diante da afirmação óbvia. — Por que você me salvou?! Estava tudo sob controle!
— Você desistiu! — Declarei agitada. — Assim que pulou alguma coisa te deteve!
— Foi por isso que decidi morrer pulando de um penhasco! Depois de decidida, eu mesma não poderia me impedir!
— Ora, me desculpe, mas eu não podia deixar alguém arrependida da própria morte terminar de se assassinar!
Mia estava prestes a abrir a boca e soltar outros argumentos, quando um uivo estranho atrapalhou nossa discussão. Era um som que nenhuma de nós já havia escutado e ressoava embaixo dos nossos pés. Ou melhor, dos pés de Mia e da minha cauda.
Um aglomerado de luzes piscava, acompanhando o ritmo do barulho que aumentava de volume. Fitamos vidradas por alguns segundos aquela bagunça estranha de som e cores, até que algumas bolhas quentes começaram a estourar na superfície e eu percebi que aquele conjunto de coisas só podia significar mais problemas. Agarrei o antebraço de Mia e a puxei, nadando para longe.
— O que é isso?! — Mia questionou ainda olhando para trás.
Afastadas o suficiente, eu mergulhei com o intuito de ver o que estava acontecendo. Uma bola de metal enorme, 10 vezes maior que uma bola de canhão, estava afundando. Na frente uma redoma de vidro trincada mostrava o interior do que parecia uma cabine, repleta de luzes piscando e mecanismos que eu não compreendia. Uma forma redonda começou a ser empurrada com força e quando aberta uma figura branca e de cabelos loiros saiu dela.
Nadei de volta à superfície, com medo de ser notada. Mia me encarava ainda incrédula e eu não sabia como explicar o que eu havia visto sem deixá-la mais perplexa. Logo depois, porém, uma cabeça loira surgiu entre nós. Os olhos azuis e os traços marcantes foram reconhecidos pela minha memória.
— DROGA DE NAVE INÚTIL! — Gritou enfurecida, antes de se virar para mim e exclamar. — Eu finalmente achei você! — Ela armou um sorriso presunçoso, enquanto eu segurava um gemido na metade da garganta.
— Outra sereia?! — Mia questionou olhando a cauda dourada da mulher. — Essa noite consegue ficar cada vez mais desastrosa!
Eu engoli em seco, levando a mão até onde estaria o cabelo comprido que eu não tinha mais, um reflexo da minha mania de mexer nos fios quando estava nervosa. A sereia tomou minha mão e analisou o fio dourado no meu pulso.
— VOCÊ ROUBOU MEU BRACELETE!
— Achado não é roubado. — Sussurrei.
— E quem é essa que você trouxe com você?! — Ela questionou, fazendo Mia erguer as sobrancelhas.
— Perdão? A pergunta aqui é quem é você?
— A bruxa de Açores. — Murmurei no automático.
— Então é assim que você me chama pelas minhas costas? — Ela revirou os olhos e virou-se para a garota. — Meu nome é Serena. Serena Galanis. Eu sou a protetora de Elizabeth e estou aqui para levá-la de volta a Atlântida.
3091 Palavras
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