Capítulo 14
Eu não sentia meu corpo direito. Toda vez que o vento passava pelo meu corpo, minha pele se arrepiava por conta das roupas molhadas e à medida que meus trajes secavam, as vozes na minha cabeça se silenciavam. O fato de eu não sentir dor me assustava e doía mais do que a dor que deveria estar me matando.
É isso! Se eu fosse uma garota normal, eu deveria estar morta! Mas, não estou! O que significa que...
Alguma coisa estava muito errada. Eu estou muito errada! Fiquei sem reação por um tempo, até que Zack surgiu na minha frente, limpando o punhal na sua calça. Ele carregava um olhar assustado que parecia que nunca mais iria sair de seu rosto.
– Ela está nos esperando, Ellie. – Ele disse baixo, me entregando a arma.
Eu umedeci os lábios ainda parada, foi Zack quem tomou meu braço e me conduziu até a cabine da capitã. Os outros piratas nos encararam, procurando fraquezas e assuntos para render depois, mesmo de costas eu sentia seus olhares queimando sobre nós e os sussurros comentando. Foi a primeira vez que me senti como uma anomalia e não seria a última.
A cabine de Kassandra era estranhamente ampla e iluminada. Era repleta de janelas de vidro e organizada de maneira calculista. Parecia que havíamos nos teletransportado para outro lugar, o escritório de um mercador rico ou a sala de estratégias de algum chefe da marinha. Para uma pirata, ela havia escolhido com maestria a mesa de mogno, as cadeiras com encostos detalhados e os armários bem posicionados.
O que mais me chamou a atenção no cômodo foi o mapa pregado na parede cheio de marcas, setas e anotações de uma letra floreada. Eu tinha a impressão que eu devia temer mais a inteligência daquela mulher do que seus poderes de origem estranha.
Seu cabelo claro cintilou em contato com a luz de fora, criando uma auréola ao redor de sua figura. Ela tinha beleza demais para a sua própria segurança. Ou para a segurança dos outros. Kassandra sentou-se e nos indicou as duas cadeiras de frente a mesa, nos convidando a acompanhá-la.
– Ellie me parece um nome muito feminino para você, não acha?
Meu corpo inteiro gelou com a constatação de Kassandra, eu não pude impedir os meus olhos de voarem até Zack. Ele parecia impassível, mas eu sabia que estava se segurando para não transparecer o medo. Se acalma, garota! Não perca a razão ainda!
– Como você sabe meu apelido, capitã? – Questionei. Para a minha surpresa, fui firme.
– Você já deve ter percebido que eu tenho meus meios. – Comentou enigmática, enquanto abria uma gaveta de sua mesa. – Se é apelido, você tem um nome.
Eu comprimi os lábios, sem ideia nenhuma do que responder e temerosa mais uma vez de dizer algo errado.
– Ellie de Elliot, senhora. – Zack respondeu por mim, com uma serenidade invejável.
– Ele é mesmo o mais falante entre vocês dois. – Murmurou puxando um papel de dentro do móvel. – Elliot de que?
– Só Elliot. – Respondi assertiva.
Kassandra cerrou os olhos como se procurasse algo no meu rosto – até cogitei que uma espinha nova tivesse nascido – mas, não demorou para ela franzir a testa frustrada e desviar a atenção.
– Muito bem, Elliot, só Elliot.
– O que você quer de mim? – Interrompo abrupta. – Você não me deixou viver só por causa da pedra, certo?
– A primeira coisa que precisa aprender pra sobreviver nesse navio é a não me interromper! – Ela exclama irritada.
– Foi você quem disse que eu não falava.
– Eu... – Ela bufou chateada. – Posso mudar de ideia em dois tempos sobre a sua vida. Eu a poupei e eu a tiro na hora que bem entender. – Me convenci a ficar calada, não era uma boa ideia tirar sua paciência. – Devo dizer que você é bem resistente, muito mais do que o esperado e eu o subestimei. – Ela disse com a plenitude de quem admite algo, mas não quer realmente se desculpar. Me subestimaram a vida inteira, já estou acostumada. – Antes de qualquer coisa, passe-me a joia, você já passou tempo demais com ela.
Eu a encarei e suspirei, puxando a pérola de dentro do meu bolso traseiro. Ainda estava no mesmo lugar, mesmo depois de tantos eventos em um intervalo curto de tempo. Eu a entreguei hesitante, sem saber se aquela era a melhor das decisões e sentindo falta do calor gentil que o objeto emanava.
Ela tomou de minha mão e encarou a pedra verde com cobiça, com um sorriso de lado pretensioso. A expressão durou pouco, ela logo guardou a pérola em alguma de suas muitas gavetas, longe do alcance da minha visão.
– Esse é o nosso código, é o mais próximo de um regulamento que temos. – Ela comentou voltando a olhar para o papel envelhecido que havia pegado pouco antes. Kassandra o pegou e nos ofereceu o documento.
Eu e Zack encaramos incrédulos para o papel.
– Piratas... Tem um código? – Zack perguntou como se descobrisse o mundo.
– O que? Somos piratas, não selvagens. Regras são necessárias e eu sou muito metódica com elas, vocês verão! – Ela comentou. – Vocês sabem ler ou vou precisar recitar as regras para vocês?
Zachary tomou o papel de sua mão, ávido por informações.
– Ninguém entra no meu navio de graça, muito menos passa a trabalhar nele sem uma troca. Todos os homens nesse navio me devem alguma coisa. Desde moedas de ouro a... – Vidas. Eu completei em pensamento e tive a impressão que de fato ela diria isso. – Lealdade.
– Não temos a nada a oferecer. – Zack disse, apreensivo e ela sorriu maldosa.
– Eu sei. Pensem assim, eu os deixo viver e os permito ganhar uma porcentagem dos nossos saques.
– Em troca de que? – Questionei rápida. Ela me fulminou com seus olhos e eu percebi que a havia cortado outra vez.
– Um favor. – Ela diz com a voz doce encarando Zack. – Um pedido ou um desejo, que posso requerer a qualquer momento, agora ou no futuro.
Eu não gostei nem um pouco da ideia. Ela não sabia o que desejava e nós ficaríamos a mercê das vontades de uma capitã sanguinária e calculista que para a nossa sorte ainda parecia ter poderes ilimitados sobre tudo e todos. Quando foi que eu comecei a me meter em situações tão surreais como essa?
– E se nos recursarmos? – Zack perguntou, provavelmente pensando o mesmo que eu.
– A prancha será erguida e vocês terão o mesmo destino do navio do qual os tirei. – Ela pronuncia juntando as mãos.
– E quanto a cláusula 8ª do seu código? "A pirataria só pode ser largada com o pagamento de 1000 libras"? Mesmo se nós a pagarmos, não seremos livres, é isso que quer dizer? – O garoto questiona ainda com o regulamento nas mãos. Eu franzo a testa e tomo o papel de seus dedos, tendo a oportunidade de ler as primeiras linhas do documento.
– O que é resolvido nesta cabine comigo, vai além do que está escrito no código.
Maldita! Comecei a relembrar dos rostos dos homens do lado de fora daquela porta e me questionar o que cada um devia para Kassandra. Se todos os outros haviam passado pelo mesmo julgamento daqueles olhos azuis, então nenhum deles poderia ser considerado um pirata. Eram todos escravos. E nós estávamos prestes a assinar a nossa sentença também.
Zack mantinha os olhos abaixados, pensando em uma possível solução de sair daquele buraco. Ele levanta o rosto e me encara. Eu apenas assinto com a cabeça, sabendo que não tínhamos outra opção. Cada instante, vivos, era uma benção e nós precisávamos priorizar aquilo. Se para manter os nossos pulmões com ar e nossos corações batendo tínhamos que nos submeter àquela capitã maluca, então que assim fosse.
– Feito. – Zack pronuncia.
Kassandra sorri e estende a mão. Zack a aperta e logo depois foi a minha vez de o fazer. Sua mão é firme e calejada, sinais de anos de prática com o mar e a espada.
– Foi um prazer fazer negócios com vocês, cavalheiros! – Ela diz de bom humor, se levantando. – Vou providenciar algumas tarefas para vocês e sinto dizer que não planejamos nenhum saque por hora, o que significa que vocês não terão dinheiro quando estivermos atracados. – Eu engoli em seco, terminando de ler as regras do código, enquanto ela caminhava pela cabine e se dirigia à porta de saída. – Estamos seguindo para nossa base. Minha casa. – Kassandra diz isso de forma até saudosa.
– Podemos saber onde é exatamente, capitã? – Zack teve coragem de perguntar enquanto um arrepio se instala no meu pescoço ao ler a última regra do código.
– Tortuga. – Pronuncia com um sorriso abrindo a porta para que nós saíssemos.
Nós somos entregues nas mãos do carpinteiro do navio, Zenon. Um espanhol, troncudo de pele bronzeada, cabelos e olhos escuros em um tom turbulento. Tudo nele era confuso, desde a sua fala – que carregava um sotaque pesado – até o jeito de se vestir. Não que os outros piratas não fossem mal cheirosos e mal vestidos, mas Zenon conseguia de uma forma muito particular destacar todas essas características ruins.
Ficamos encarregados de ajudá-lo a reparar o que fosse possível do navio. A batalha contra canção do mar havia sido sangrenta para ambos os lados, mas eu só pesei na balança os resultados quando vi com meus próprios olhos os buracos no casco do Barca de Caronte. Provavelmente, vamos permanecer nos porões até chegarmos em Tortuga. Zenon havia permanecido nos porões quando minha luta aconteceu, tentando remediar as complicações, o que explicava por que eu não lembrava do estranho durante a disputa.
Zenon não era velho, mas agia como um. Resmungava o tempo inteiro e passava a maior parte do tempo sentado conversando, nos dando tarefas intermináveis, enquanto ele próprio fazia pouquíssimo. Zenon falava demais e fazia de menos.
Embora a princípio tenha se mostrado detestável, eu notei sua genialidade de longe, ele era hábil com as mãos e falava rápido como se tivesse muitos pensamentos embaralhados na cabeça. Se tornou menos odiável ainda quando começou a nos dar conselhos sobre os piratas.
– Eu não consigo acreditar que um moleque franzino como você conseguiu sobreviver a Break Bones! – Ele exclamou, usando as mãos em excesso. – Ninguém nunca sobreviveu à Break Bones! Eu imaginava que se um dia alguém sobrevivesse àquele homem, o combatente estaria próximo de ser um deus! – Seus olhos vagaram e ele puxou uma risada do fundo da garganta. – Ele deve estar puto, aquele idiota prepotente! Perder para um fracote como você! – Ele riu de novo. – Nada contra garoto.
Eu levantei as mãos em um gesto de tanto faz. Eu realmente não me importava com os sentimentos de Break Bones, só queria não ser descoberta. Ou me auto descobrir.
– Você deveria manter os olhos abertos daqui pra frente. Ele não vai descansar até te matar.
– Deixe que ele venha. Ele não é o único, todos os outros desejam o mesmo. – Respondi seca.
Zack me olhou e balançou a cabeça em desgosto. Ele nunca havia gostado da minha impulsividade, mas àquela altura do campeonato, o que mais tínhamos a perder? Zenon meneou a cabeça e a balançou em negativa.
– Não. Todos nãos. Eles só estavam afoitos pra se entreter. Ser um marinheiro pode ser bem tedioso.
– Um pirata você quis dizer? – Zack alfinetou.
– Pirata, marinheiro... Não existe muita diferença. Nós içamos velas, concertamos navios e atacamos homens por dinheiro. Quando recebemos nossas moedas, advindas de um saque ou da marinha, o dinheiro continua sujo com sangue dos outros. No fim, a saudade de casa é a mesma.
Eu o encarei, ansiosa por saber mais, mas ele mudou de assunto como o gênio maluco que era.
– Deve ter só uma meia dúzia de homens nesse navio que de fato mete medo. O resto é apenas massa de manobra de Kassandra.
– E quem seriam? – Zack perguntou curioso.
– A começar pela bruxa, Kassandra Balthazar. Manipuladora de mentes desgraçada!
– Se ela é o que diz, você deveria ter cuidado com as palavras.
– Eu não a temo mais! Já notei que ela não consegue ser onisciente e onipresente, além do mais, ela precisa mais de mim do que eu dela. Ela pode manipular as coisas e os homens, mas não consegue concertar esse navio como eu. – E Break Bones que é o prepotente. – Seu imediato é o segundo mais perigoso da minha lista, Caleb Gibbons. Pode até não ser tão astuto como a capitã, mas não se iludam, ele gosta de ver sangue.
– Eu percebi. – Zack comentou.
– Tomem cuidado com Pierre e Jean, os gêmeos oficiais armeiros. Eles manejam os canhões e as pistolas muito bem, não pensariam duas vezes em atirar em um inimigo. É fácil de achá-los, eles têm um bigode fino e sobrancelhas cheias, estão sempre jogando cartas e roubando dinheiro dos outros.
– Achei que era proibido.
– Você precisa aprender muito sobre o Barca de Caronte, Zachary, e sobre como somos bons quebrando regras. Ela deve ter mostrado o código, não levem aquele amontoado de papel a sério. Na prática, apenas lembrem-se de estar prontos para a batalha e não matar seus companheiros. Pelo menos... Não à vista dos outros.
– Tem mais alguém na sua lista? Outro pirata sanguinário que devemos manter distância? – Perguntei.
– Eu diria o próprio Break Bones, cão do mar, mas visto que você já o derrotou, com quase nenhum arranhão eu percebo, não há por que o temer, não é mesmo? – Sim há! Há muito o que temer! Zenon pousou a mão no queixo pensativo e deixou o rosto se iluminar com mais um nome. – Ah! Tem mais um! Deixem os olhos bem aberto quanto a Nassor.
– Quem é esse? – Zack perguntou.
– O cozinheiro. Ele é do Quênia, um velho gordo, negro e barrigudo. Não é difícil de encontra-lo, está sempre com um avental imundo.
– Por que deveríamos nos preocupar com ele? Parece inofensivo. – Eu disse.
– Ha! Você é mesmo ingênuo! Sabe de que 70% dos homens morrem no mar? – Zenon questionou com olhos lunáticos. – Intoxicação alimentar. Nassor faz umas gororobas detestáveis de fazer satanás correr.
– É tão ruim assim? – Pergunto.
– Às vezes eu prefiro matar alguns ratos e assá-los escondido.
Já era noite quando Zenon nos liberou das nossas tarefas. Ficar nos porões do navio, perto dos canhões, não era agradável, mas admito que ficar longe das vistas dos piratas tirava um peso dos meus ombros. O cheiro do mar me encheu e o céu cheio de estrelas foi quase um presente.
Quando eu e Zack nos aproximamos para pegar nossas jantas, o silêncio dos baderneiros foi excruciante e eu posso dizer o mesmo de seus olhares, no entanto, nós não permanecemos em suas presenças por muito tempo. Pegamos nossos pratos e nos afastamos para o canto mais recluso do convés. Não demorou para que a música e as risadas voltassem a ser o palco central da noite. Nós nos sentamos, exaustos no chão de madeira, com as pernas cruzadas.
Eu analisei a comida de textura e cor duvidosa e passei a entender o que Zenon estava dizendo. Pensei apenas uma vez e coloquei as primeiras colheradas da comida na boca. Eu havia passado o dia todo sem comer nada. Quando levantei os olhos, Zachary me encarava.
– O que foi? – Questionei de boca cheia. O gosto era pior que a aparência.
– Você quase não tem arranhões, Ellie. – Não foi uma pergunta. Eu abaixei o prato de comida e terminei de mastigar os restos na boca.
– Eu notei.
– Ellie, você deveria ter pelo menos costelas quebradas, mas você passou o dia inteiro carregando madeira naquele porão e não reclamou de dor se quer uma vez. – Então, ele percebeu.
Eu fiquei em silêncio, temendo o que diria quando deixasse minhas emoções aflorarem.
– Ellie...
– Você não acha estranho como eu previ o ataque na fazenda? – Interrompi.
– Você previu? – Ele questionou confuso.
– Merda, Zack, eu falei pra você que eu não queria descer para o baile!
– Eu imaginei que fosse por que não queria encontrar um noivo.
– No início eu também pensei, mas então ontem a noite aconteceu e a sensação era exatamente a mesma. Eu conseguia, eu conseguia... – Travei sem conseguir dizer.
– Como foi que você conseguiu desviar dos golpes de Break Bones? – Zack foi assertivo. Eu levantei os olhos e o encarei tremendo mais uma vez. Não por medo das lembranças da luta, mas por lembrar de como eu a venci.
– Eu previ os movimentos dele, era como se eu... Pudesse ler sua mente.
Pus a mão sobre minha boca prestes a colocar a comida de Nassor para fora. Eu me levantei e escorei meu corpo na beirada do navio, olhando as ondas quebrarem no seu casco. Zachary me seguiu e apertou a minha mão em consolo.
– Em Açores, a bruxa disse que eu era o que ela era. – Confessei. – Eu sempre soube que não era normal, mas escutar aquilo fez um véu cair dos meus olhos. Eu não faço a mínima ideia de onde vim. Droga! Eu fui encontrada no mar e o mar é desgraçadamente enorme! E agora eu começo a ter mil e uma características parecidas com a mulher que nos sequestrou! – Suspiro.
– Fica calma. – Zachary pede.
– Fica calma?! Zack! Já colocou sua cabeça pra funcionar?! Já parou pra perceber onde a gente está?! Eu tenho todo o direito de não ficar calma!
– Mas isso não vai te manter viva! – Zack disse dando-me a impressão que também ia perder o controle. Ele passou os olhos pelos outros piratas e voltou a olhar para mim. – O que quer que você seja te salvou.
– O que quer que eu seja me amedronta. – Eu digo. – E deveria amedrontar você também.
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