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Capítulo 13 - Ar


     Num compartimento aos fundos do Tubarão, uma salinha com um banco de madeira e diversos armários, Ed sucumbe às suas dores. Ele não conseguia acreditar, Leonard havia ido longe demais, e agora Manifesto não mais existia. Tantas vidas e sonhos incinerados pela ganância de um lunático. Ele nada pôde fazer, havia chegado muito tarde. O peso dessa culpa o consumia por dentro, pouco a pouco, enquanto as lágrimas corriam livres pelo seu rosto em meio a um soluço.

     July entrou na sala, sentou-se no banco ao lado de Ed e o abraçou, apoiando seu corpo nos ombros do rapaz. Ed estava feliz em ter ela por perto, mas continuou com a cabeça baixa, envergonhado com sua derrota.

     — É tudo culpa minha — Ed dizia com a voz rouca de tanto chorar — Se eu tivesse ficado, quem sabe...

     — Ed, não dá pra mudar o passado, e de nada adianta perder tempo imaginando o que poderia fazer — July dizia, acariciando lentamente os cabelos de Ed. Sua voz era suave mas carregada de verdade — Nós estamos todos juntos de novo, e temos uma chance de derrotar o Leonard. Só uma chance! Para mim já é o suficiente para criar um novo futuro. Um futuro onde ninguém mais vai se machucar.

     — Você tem razão — Ed a encarou, finalmente sorrindo novamente — Droga, você sempre tem razão July Harmond! E eu te amo por isso!

     July ficou surpresa com as palavras de Ed, mas não demonstrou confusão ou estranhamento, apenas a mais pura felicidade. July amava Ed, Ed amava July, e nada mais importava. Esse sentimento fazia tudo parecer pequeno perto dele, arrebatava o casal para uma dimensão longe de tudo, longe de Leonard, longe da guerra, e de qualquer outra coisa que perturbasse a harmonia daquele momento imaculado.

     — Se você quiser ficar um tempo sozinho eu... — July disse sem saber o que dizer, apenas na intuição de não permanecer em silêncio.

     — Não, só quero que fique comigo para sempre.

     Eles se encaram por um momento, com sorrisos estampados em seus rostos. Em seguida, batidas na porta do compartimento chamam sua atenção. Ao se virarem eles encontram Wes Jeffords escondendo algo atrás de si.

     — Com licença, posso entrar? — Wes perguntou, já entrando sem esperar a resposta. Ed assentiu e Wes se aproximou do banco — July, eu tenho algo para você.

     — O que é? — Ela perguntou curiosa, se levantando do banco e se posicionando diante de Wes

     — Eu imaginei que você iria gostar de ter isso nessas horas — Wes revelou o que trazia consigo, era o disparador de cano afunilado que Emily havia lhe dado há muito tempo antes. Um flashback daquele dia passou pela mente da garota e ela reflete por um momento, com a arma em mãos. Não havia nenhum motivo para Emily ter deixado aquela arma com alguém despreparado, e July imaginou que ela havia recebido aquele presente pois Emily havia visto potencial nela, ou algo do tipo. Assim, ela percebeu o quanto seu time estava desmantelado, e até o determinado e inabalável Edmond havia sido atingido pela frustração daqueles dias sombrios. Alguém precisava ser forte, e esse alguém era July Harmond.

***

     No dia seguinte, já com os ânimos acalmados, Ed caminha em círculos de olhos fechados pelo compartimento principal do Tubarão, com seus dedos pressionados sobre suas têmporas. Seus amigos estavam à sua volta, July e Gaia sentadas em caixotes juntas de Cornelius, enquanto Wes e Tétis permaneceram de pé com os braços cruzados. Todos, menos Wes, já haviam trocado suas vestimentas pelos macacões de Yara, e ainda estavam tentando se acostumar com as vibrações rígidas e com os inesperados solavancos que a nave provocava durante seus voos.

     Se por fora transparecia rispidez mecânica e agressividade, por dentro a aeronave Tubarão era quase aconchegante, dividida internamente numa estrutura simples. Havia o compartimento central onde a tripulação se encontrava naquele momento, um espaço bem grande com caixotes e armários espalhados sobre o piso de esponja dura. Logo a frente, em direção ao nariz da nave, havia um espaço conectado ao compartimento central que servia de cabine de pilotagem, com um conjunto de grossos bancos reclináveis dispostos diante ao painel de controle do veículo, repleto de botões e alavancas de diferentes luzes e tamanhos. As paredes daquela cabine improvisada eram enfeitadas por folhas de papel com desenhos pin-up, onde modelos masculinos seminus apareciam em trajes de marinheiro e outras fantasias. Tais desenhos chamaram a atenção de Wes por um momento, o que gerou um certo constrangimento em Cornelius, que havia esquecido da presença deles e logo saiu arrancando tudo. Entre as duas áreas comuns havia uma plataforma circular centralizada com um projetor afixado no teto da nave.

     Na direção oposta o caminho se dividia em vários outros. No lado esquerdo, uma escada férrea levava para um cômodo apertado que servia de dormitório na parte inferior da máquina, abaixo do piso, com diversos beliches. Seguindo em frente chegamos ao refeitório, um compartimento maior com uma mesa e alguns freezers que armazenavam os mantimentos que Wes havia trago consigo, além de um forninho e um conjunto de louça guardado numa cristaleira rústica. Ao lado da entrada do refeitório, outra escada, essa mais larga, levava para um deck de observação onde os passageiros tinham uma visão panorâmica através das grossas camadas de vidro da parte traseira da aeronave. A direita, uma passagem levava aos banheiros, que tinham água encanada graças a um sistema de armazenamento hídrico, e ao vestiário nos fundos. Além desse vestiário havia um caminho que levava rumo a sala de máquinas, a caldeira, os tanques e afins, uma parte da aeronave que só Cornelius tinha acesso. Por fim, tinha um buraco no teto de placas metálicas gradeadas que levavam Cornelius para um parte ainda danificada do sistema elétrico que ele vinha tentando consertar.

     Ed continuava andando de um lado para o outro, com os olhos fechados, as têmporas pressionadas e a expressão contraída de quem faz algum tipo de esforço. Os outros estavam num debate para ver se alguém descobria o que ele estava realmente fazendo, um estranho jogo de adivinhação. Enquanto isso, Wes demonstrava ter pressa.

     — Calem a boca! É difícil se concentrar com tanto barulho... — Ed parou sua caminhada repetida e abriu os olhos num movimento rápido — Achei!

     Neste exato instante, um armário começou a se remexer violentamente, assustando a todos. Com um chute, uma garota de cabelos vermelhos e olhos azuis abriu a porta do armário e saiu de dentro. Ela usava um jeans vermelho, botas de couro preto e a túnica da Academia de Magia de Myth.

     — Eu odeio me teletransportar para algo em movimento! — Ela encarou o grupo de tripulantes com ironia no olhar — Na próxima vocês podiam pelo menos fazer o favor de parar!

     Ao ver a garota, os olhos de July se encheram de alegria e ela logo se aproximou dela com um sorriso no rosto.

     — Ivana! — Elas se abraçaram — Amiga, você está linda! — De fato, voltar para casa havia feito bem para Ivana Montano. Seu cabelo parecia maior e mais sedoso, seus olhos estavam brilhantes e ela havia recuperado os quilos perdidos durante o confinamento em Newdawn. Também parecia estar diferente, mais feliz.

     — July, que saudade! — Ivana encontrou Ed e acenou para ele — E aí, mano!

     — Como vai o mestre Waldo e Ignis? — Ed perguntou após retribuir o cumprimento.

     — Eles estão bem. Depois que eu voltei todo mundo na academia anda me paparicando — Ivana pôs as mãos na cintura — Mas é tão bom voltar ao lar.

     — Você vai com a gente para Newdawn? — July perguntou.

     — Claro que ela vai — Ed respondeu em seu lugar — Ivana foi uma das pessoas mais prejudicadas pelo Leonard, é quase como um acerto de contas. E outra, ela faz magia. Toda ajuda é necessária, mas uma ajuda mágica já é outro nível.

     — Eu disse para o Ignis que eu ia ao banheiro, espero que ele não estranhe o fato de que eu vou demorar lá um bom tempo — Ivana soltou uma risada empolgada.

     — Vai buscar mais alguém ou já tá todo mundo aqui? — Wes perguntou, um pouco irritado, o que chamou a atenção de Ed e dos outros.

     — Só a gente mesmo — Ed respondeu — Eu acho...

     — Muito bem, já que está todo mundo aqui agora eu posso finalmente explicar meu plano — Wes caminhou até um caixote maior enquanto os outros arrumavam seus acentos num semicírculo. Sobre o caixote maior estava o mapa holográfico de Cornelius. Wes puxou os ganchos e ligou o aparelho, em seguida tocou no ícone de Newdawn e um mapa da cidade se projetou no holograma. July já tinha visto aquela ferramenta, mas essa função era novidade para ela — Muito bem — Ele se virou para os ouvintes com um ar pomposo, como um general de peito estufado instruindo seus soldados antes de uma missão — Basicamente nós vamos entrar com tudo.

     — Sério que esse é o plano perfeito que você encheu o saco pra gente seguir? — Cornelius perguntou, recebendo como resposta um olhar desprezível de Wes.

     — Eu ainda não terminei! Continuando... — Wes retomou sua explicação apontando para o mapa holográfico — Como agora o Leonard manda em tudo, com certeza ele colocou os Mavericks para patrulhar a rota do porto, então nós vamos evitar ela e entrar na cidade por trás, aterrissando exatamente nessa praça — Seguindo a indicação de Wes, July logo reconheceu o local como a praça em frente a sua escola de dança — O problema é: Isso vai chamar muita atenção e quando a gente aterrissar todos os guardas da cidade vão voar para cima da gente. Vamos precisar de uma distração.

     — Eu posso criar uma das grandes — Ivana comentou, levantando a mão — Mas vocês tem que ficar bem longe daquela ponte — Ela apontou para o mapa.

     — Tudo bem — Wes encarou o mapa — Depois disso nós vamos roubar um carro, dirigir até aqui e nos dividir em dois grupos. Neste lugar tem uma passagem direta para o subterrâneo através do canal — Seu dedo indicador deslizou pelas ruas até um ponto alguns quarteirões a noroeste — Quando a batalha começar, Leonard com certeza vai para o bunker secreto do Palácio Ministerial, a instalação mais segura da cidade. Ed e July vão até lá, vai ser difícil chegar nele, mas existe uma passagem secreta através de um vão que existe nos túneis subterrâneos para auxiliar na ventilação. Gaia vai com vocês, as habilidades e os equipamentos dela podem ajudar caso vocês precisem escalar pelo vão — Os três citados assentiram — Enquanto isso, Cornelius e Tétis vão pegar outro caminho até o computador central, o aparelho que controla todos os brinquedinhos do Leonard. Vocês precisam encontrar essa máquina e destruir ela com um artefato explosivo.

     — Nós temos um artefato explosivo? — Tétis perguntou.

     — Eu posso improvisar um antes da gente chegar lá, tenho material para isso guardado ali atrás — Cornelius respondeu, arquitetando em sua mente como ele montaria aquele utensílio vital para a missão.

     — Quando o computador central for destruído, todas as armas tecnológicas, carros militares e tudo mais vão pifar, isso vai nos dar uma vantagem — Wes explicou — E é essencial destruir o computador central, se o Leonard tiver uma bomba atômica, uma ogiva nuclear ou algo assim e for burro o suficiente para soltar na cidade, o que eu não duvido, é através dessa máquina que ele vai fazer isso. Essa parte do plano não pode falhar de jeito nenhum — Cornelius engoliu em seco ao perceber que para ele havia sobrado a parte que parecia ser mais difícil.

     — E quanto a você? — Gaia perguntou ao perceber que Wes não se colocou em nenhuma das duas equipes.

     — Eu vou por cima até o Palácio Ministerial — O aventureiro respondeu com o olhar determinado — Recebi uma informação de que alguns de nossos amigos foram feitos prisioneiros de Leonard. Entre eles estão o senhor Harmond e a senhora Williams — O coração de July acelerou quando ela descobriu que seu pai e Natasha haviam sido capturados, mais uma vez ela é tomada pelo medo e segura firme a mão de Ed em busca de conforto — Emily Starsky-Hutch e Alexander Cannon também estão lá, e também a Lollipop. Eu vou resgatar eles e os manter em segurança até tudo acabar. Alguma dúvida? — Wes encarou o grupo. Ed foi o único a levantar a mão.

     — Quando o Leonard me capturou na noite do baile ele citou a Torre de Comando. O que ela é e como se encaixa no nosso plano? — Essa foi a pergunta.

     — Provavelmente a arma mais poderosa do nosso inimigo — Wes respondeu calmamente — Ela ataca qualquer coisa não autorizada no espaço aéreo de Newdawn. Foi com ela que Leonard nos atingiu pela primeira vez, quando o Cornelius decolou com o Tubarão — Um suspiro de esclarecimento percorreu o ambiente. Era estranho para os newdianos saber que eles viveram em torno de um canhão descomunal esse tempo todo sem saberem do seu potencial mortífero e do terror que ele provocava.

     — Acho que ele também atingiu minha cápsula de fuga — Ed comentou.

     — Vai ser difícil deter a Torre, mas eu tenho uma carta na manga — Wes sorriu por um momento — Mas acho que vocês vão gostar de ver na hora.

     — Se você diz.

     — Pois bem — Cornelius pegou um caderninho e começou a fazer um cálculo matemático — Levando em consideração nossa posição atual, a velocidade média do Tubarão e nosso trajeto, vamos chegar em Newdawn em aproximadamente doze dias e sete horas.

     — Então não temos tempo a perder — Wes disse.

     — Mas é caminho de Cypher — Cornelius comentou com ansiedade — Meu irmão Cérebro disse que estaria lá se eu precisasse. Eu quero vê-lo, se não for incomodo.

     — Sem problemas, podemos passar em Cypher — Wes respondeu, assumindo um semblante triste em seguida — Eu não vou ser hipócrita com vocês. Vai ser uma missão arriscada, talvez a gente não sobreviva. Eu não vou tirar de você essa alegria de rever seu irmão.

     — Muito obrigado — Cornelius retribuiu com um sorriso apesar da nítida melancolia na fala de Wes.

***

     Os dias no Tubarão passaram rápido, e todos na tripulação tinham em mente a necessidade de se prepararem para o inevitável confronto, mas o tempo ainda era gasto com músicas, jogos e brincadeiras para tentar manter tudo sob controle. Certo dia, a aeronave diminuiu sua altitude para recarregar o estoque das caldeiras que a energizam, utilizando um grande gancho para coletar carvão do solo chamuscado. Muitos anos antes, a vida na Terra foi reduzida a esse material pela guerra, e agora a humanidade restante prosperava através dele.

     Com o tempo, a navegação irregular do Tubarão parou de incomodar, e os solavancos se tornaram previsíveis para a tripulação. July e Ed improvisaram um treinamento físico condicional, e por vezes o herdeiro do ministério se viu afligido por uma severa ansiedade, contemplando o céu no deck de observação. Enquanto isso, Gaia demonstrou interesse no estilo de vida mythidiano, o que resultou numa aproximação sentimental com Ivana, que por sua vez conduziu seus companheiros de voo pelos mistérios da meditação. Cornelius e Tétis também se aproximaram quando a garota decidiu ajudá-lo a consertar os sistemas danificados pelo raio da Torre de Comando. Certa vez, enquanto ele pilotava e ajustava a rota da nave, ela sentou ao seu lado e comentou:

     — Nunca vi uma nave assim antes.

     — Eu mesmo projetei, construí e programei tudo — Cornelius respondeu orgulhoso de sua criação, mantendo os olhos no parabrisa a sua frente. Na base do painel de controle, suas mãos seguravam dois gatilhos giratórios dispostos no centro de dois tubos paralelos que se projetavam em direção ao banco do piloto. Seus pés estavam repousados, pressionando levemente os pedais abaixo do painel — Eu meio que inventei esse sistema de pilotagem. Assim eu posso movimentar a nave livremente, empurrando acelera e puxando freia. Os pedais controlam a altitude — Cornelius fez uma demonstração de como os comandos respondem aos movimentos dos gatilhos.

     — Que legal — Tétis o encarou com curiosidade — É verdade que você tinha uma namorada robô?

     — É uma longa história — Havia hesitação em sua voz.

     — Acho que você precisa de uma namorada de verdade — Seus olhos se encontraram com timidez.

     Em outra ocasião, a tripulação se reuniu no compartimento central para ouvir o discurso de Leonard, que Cornelius havia gravado anteriormente. As barbaridades que o novo mandatário declamava com tanto fôlego deixaram todos chocados.

     — Que horror! — Gaia comentou, atenta às palavras que emanava do gravador — Ameaça comunista? Fazer Newdawn grande de novo? Isso é tão... Cafona!

     — Eu odeio nostalgia, só serve para fazer as pessoas se apegarem a algo que nunca viveram. Isso é perigoso demais! — Tétis comentou — Eu pensava que as cidades do céu eram mais civilizadas!

     — Newdawn também tem coisas boas, mas também tem muitos erros — Cornelius respondeu, desligando o gravador — É muito comum encontrar lá pessoas como o Ed, que tiveram membros amputados e usam próteses. A cidade tem potencial e orçamento para investir em cirurgias de recuperação orgânica, mas eles dizem que as próteses mecânicas combinam com a "vibe" steampunk e fica por isso mesmo. Grande parte da população também possui problemas respiratórios decorrentes da poluição, mas nunca foi demonstrado interesse em fontes de energia menos poluentes do que o carvão. Às vezes a moda é mais importante do que a saúde, e isso é um absurdo. E ainda tem o abismo social entre as classes mais ricas e pobres.

     — Em Senna ainda tem muitas crianças passando fome enquanto o governo só investe em carros — Wes disse, capturando a atenção de seus companheiros com o tom sério e cabisbaixo que evocara em sua voz — O que foi? — Ele perguntou ao perceber que todos o encaravam.

     — É que você sempre falou tão bem de Senna — July disse.

     — Eu amo Senna — Ele respondeu com olhar distante — Mas a verdade é que não existem cidades perfeitas.

***

     Enfim chegou o dia em que a nave Tubarão se aproximou das fronteiras de Cypher, a cidade forjada na aurora da computação e da tecnologia. Saber daquela parada depois de dias e dias de viagem deixou todos os passageiros com um certo alívio por poderem desembarcar do veículo turbulento para a segurança da terra firme, ou quase isso, por um tempo, mas cada um vinha reagindo de um jeito diferente.

     Para July, mesmo tendo consciência dos eventos que levaram ela e seus amigos a estarem confinados no Tubarão, ainda mantenha-se seu espírito aventureiro e se animava em saber que ela logo estaria em um lugar novo, e justamente a misteriosa Cypher, uma cidade que nunca foi realmente aberta ao turismo. Ed tentava demonstrar felicidade pelos seus amigos, em especial o entusiasmo de July e a ansiedade de Cornelius, mas ele pouco escondia sua vontade de simplesmente seguir em frente. Wes assumiu os controles como piloto da nave e se concentrava em se acostumar com o sistema de gatilhos, atento a uma peculiaridade da engenharia de Cypher que poderia facilmente assustar um piloto inexperiente. Já Cornelius, após terminar de improvisar o artefato explosivo e ter feito outras versões menores do mesmo dispositivo, vinha remoendo em seu íntimo um certo tipo de tristeza misturado com alívio, pois a aproximação de Cypher trazia consigo as lembranças de sua breve trajetória na Sociedade da Ciência, e ele só esperava que Cérebro realmente estivesse em casa para poder ter o mínimo de conforto antes do maior desafio de sua vida.

     — Estamos quase chegando — Wes, sentado na poltrona do piloto, anunciou, chamando a atenção do resto da tripulação que interrompeu suas atividades para se aproximar da parte frontal da nave. Cornelius já estava ao seu lado, ansioso para chegar logo.

     — Eu não consigo ver nada além de nuvens — Tétis comentou, se debruçando sobre o painel de controle — Essa cidade é invisível?

     — Mais ou menos — Ed explicou — Cypher fica numa dimensão virtual tridimensional paralela ao nosso plano físico projetada por supercomputadores e inteligências artificiais avançadas.

     — Não entendi nada — Ed a encarou após revirar os olhos.

     — É tipo um videogame e eles devem mandar alguém para autorizar nossa entrada a qualquer momento — Ed rebateu — Isso que importa.

     — Ativando sistemas de projeção — Wes disse ao perceber um ícone de câmera piscando no painel. Alguns botões foram apertados em seguida.

     O projetor no teto da nave foi ligado, produzindo uma luz azulada que refletiu na plataforma circular logo abaixo. Nessa luz, um holograma apareceu, revelando a imagem azulada e transparente de uma mulher jovem vestida como uma comissária de bordo.

     — Bom dia, meus queridos viajantes — A mulher falou com um falso tom de felicidade extremamente forçada. Sua voz era robótica como uma gravação — O que os traz a nossa linda cidade?

     — Realmente é uma linda vista — Tétis comentou com ironia, arrancando resmungos e protestos de todos.

     — Viemos visitar o proprietário do apartamento 724, bloco M, conjunto habitacional 706-9X — Cornelius falou rapidamente como se tivesse ensaiado essa fala milhares de vezes — Ele se encontra?

     — Só um instante, irei verificar — A imagem da mulher holográfica congelou, seus olhos brilharam como telas azuis onde códigos binários corriam. Alguns segundos depois, a projeção voltou à vida — Sim, ele se encontra. Irei avisar ele de sua chegada. Vocês já podem adentrar.

     Em volta da nave tudo mudou, mergulhando numa imensidão de sombras, sem luz, sem formas, sem texturas. Em instantes, objetos começaram a se distinguir, e a tripulação se viu em meio a prédios gigantescos, completamente pretos e robustos, e cobertos por quadradinhos coloridos, que demoraram um certo tempo para serem reconhecidos como janelas. Tais prédios residenciais eram tão grandes que era impossível ver onde começavam e onde terminavam, e havia inúmeros deles. Através de um céu artificial alaranjado e sem nuvens, carros voadores corriam de um lado para o outro em complexas faixas de um trânsito invisível e sem sinalização, que seguiam por todos os caminhos possíveis, acima e abaixo. Centenas de grandes outdoors holográficos surgiam aos poucos, cobrindo as fachadas dos prédios com suas cores digitais como o conteúdo de uma atualização num videogame que demorava demais para baixar. Em meio ao saudosismo clássico e conceitual das outras cidades, Cypher era uma joia perdida que preservava o mundo antes da guerra, onde a tecnologia cresceu tanto ao ponto da qualidade de vida da população não conseguir acompanhar, criando reféns em seu mundo digital longe da realidade deprimente de uma sociedade cyberpunk. Era bela de um jeito mórbido, moderno, futurista, mas opaca, vazia, sem vida.

     — Bem-vindos a Cypher! — A mulher no holograma anunciou antes da luz projetada se apagar.

     — Eu retiro o que disse — Tétis estava boquiaberta — Acho que eu quero morar aqui.

     Um outro holograma menor foi projetado pelo painel de controle, no formato de uma seta que guiou a nave como um GPS através do trânsito aéreo caótico daquela cidade cibernética. A trajetória programada os levou até o topo de um prédio, e só ali ao desembarcar eles perceberam que as edificações dantescas tinham sim tamanhos diferentes, e que aquele era muito menor que os outros. A atmosfera da cidade era tão estranha que havia oxigênio, mas não se sentia, pois não havia vento, calor, ou qualquer outra sensação térmica além de um frio morno e mecânico.

     A tripulação do Tubarão caminhou pelo terraço do prédio até uma entrada coberta, por onde desceram pelo elevador até o andar onde Cérebro residia em seus dias livres da Sociedade da Ciência. Cornelius lembrou-se da vez em que seu irmão lhe contou sobre aquele apartamento, um lugar longe de tudo onde ele poderia respirar em paz e relaxar em suas folgas, mas agora conhecendo a verdade, talvez Cérebro estivesse apenas fugindo. Ademais, tirando a presença de alguns robôs humanoides de aparência estranha e vozes mecânicas anunciando dezenas de produtos que ninguém queria comprar, todo o resto era previsível e sem graça.

     Ao chegar em seu destino, Cornelius estranha encontrar a porta aberta.

     — Cérebro? — Ele o chama, abrindo a porta e espiando a escuridão do apartamento.

     Cornelius adentrou e logo encontrou o interruptor na parede, mas a luz revelou uma visão inimaginável da sua existência, algo que ele nunca cogitou a menor possibilidade de presenciar. Estirado no sofá, Cérebro encontrava-se num estado cadavérico. Sua pele havia enegrecido, seus músculos atrofiados, não usava mais roupas pois não tinha mais nada a esconder, além do corpo doentio de um moribundo, com os braços de puro osso. A única coisa ainda preservada eram seus olhos expressivos que se iluminaram ao verem seu amado irmão.

     Cornelius não sabia o que fazer, como reagir, sua voz havia escapado de seu domínio. Espantado, ele se aproximou do irmão e se ajoelhou diante dele, acariciando os poucos retalhos de pele que ainda havia em sua cabeça arruinada. Atrás de si, seus amigos observavam tudo em silêncio, mantendo uma distância respeitável. July chorava nos braços de Ed, e a melancolia se espalhou pelo apartamento.

     — Cérebro... — Cornelius finalmente falou, cedendo às lágrimas que teimam em lhe atormentar — O que aconteceu com você?

     — Necrovírus... Eles... Caixa... — Cérebro tentava dizer, mas sua voz agora era uma vibração fraca que escapava pelas fendas abertas em sua garganta. Seus lábios inexistentes não se mexiam mais, apenas sua mandíbula movimentava as fileiras de dentes podres lentamente para cima e para baixo.

     — Eu não consigo entender — Cornelius se pôs a chorar. Ao seu lado, a cabeça de Cérebro inclinou levemente para cima, e aquela alma devastada encontrou seu fim ao relembrar algo nunca antes esquecido.

***

     Cérebro andava apressado pelas ruas de Newdawn em direção ao porto, aborrecido por Cornelius não está em lugar algum e nem atender as ligações que ele insistia em realizar com seu comunicador.

     — Cornelius é melhor você me atender agora senão... — Ele resmungou enquanto andava, mas não teve tempo de completar suas reclamações.

     Dois homens haviam lhe cercado e arrancado o comunicador de suas mãos. O aparelho foi jogado ao solo. Confuso com aquele movimento abrupto, Cérebro encarou os homens que impediam seu caminho com uma fúria silenciosa no olhar. Não eram corpulentos, muito menos aparentavam ser fortes, e Cérebro não sabia que eram Leonard Roberts e Max Williams. Ele apenas deu de ombros e se abaixou para pegar o aparelho, porém Max agarrou seus braços e o arrastou em direção a um beco. Cérebro tentou se soltar e se debater, mas ao chegar lá dentro, um soco potente de Leonard na altura de sua sobrancelha foi o suficiente para lhe silenciar. Mais alguns golpes foram desferidos, o deixando atordoado, e quando Cérebro já não mais reagia, mesmo estando consciente, Leonard tirou uma seringa de seu casaco e enfiou a agulha em seu pescoço, injetando um líquido preto levemente transparente direto na veia jugular e lhe infligindo uma dor aguda no ponto da injeção.

     — Você é um cientista espertinho, né? Então já deve ter ouvido falar do necrovírus de Freka. Aquele mesmo que te come de dentro pra fora, até não sobrar mais nada — A imagem de Leonard parecia embaçada e duplicada para Cérebro, mas sua voz era bem clara e certeira. Leonard enfiou um cartão de papel no bolso da calça de Cérebro — Se for bonzinho eu vou te dar a cura, mas tem que fazer algo antes — Leonard caminhou até um ponto do beco, onde apanhou a famigerada caixa de papelão — Você vai entregar isso para o seu irmão e vai dizer que ele só pode abrir quando mais precisar. Se não fizer, você morre! Simples assim.

     Cérebro passou o resto de seus dias em busca de uma cura, mas como foi confirmado posteriormente, de fato não havia.

***

     A caixa! Cornelius tinha esquecido completamente dela. Haviam coisas demais em sua cabeça, e o mistério daquela caixa havia ficado de escanteio, jogada num canto qualquer do Tubarão. Cornelius resgatou o último presente que Cérebro havia lhe dado e se reuniu em volta dele com Ed, July, Gaia, Tétis e Ivana para debater sobre seus próximos passos.

     — O que será que tem dentro? — Tétis perguntou cheia de curiosidade, encarando o objeto. Se ela pudesse, já teria aberto por puro impulso.

     — Talvez algum tipo de arma — Gaia sugeriu — Ou, sei lá, um tesouro de família.

     — Cérebro me deu isso no dia que eu deixei a Sociedade da Ciência, disse para abrir só quando eu mais precisasse — Cornelius revelou, ainda cabisbaixo — Acho que essa é a melhor hora de abrir.

     — Espera! Isso eu ainda não entendi. Por que você foi embora da Sociedade da Ciência — July questionou, atenta a confusão oculta na melancolia de Cornelius, como se ele tivesse se lembrado de algo terrível que lutava todos os dias para esquecer — Não era o seu sonho?

     O olhar de Cornelius percorreu o local até encontrar Ivana.

     — O que você sabe sobre Belliscientia? — Cornelius perguntou para a jovem bruxa.

     — As lendas mythidianas dizem que é um demônio ancestral que se alimenta da inteligência e da guerra — Ivana explicou — Mas muitos não acreditam nesses relatos, os registros dessa entidade se perderam há séculos.

     — A Sociedade da Ciência é uma seita de adoradores de Belliscientia — Cornelius retomou sua fala, ainda com o olhar vago, encarando os demônios ocultos de Tesla que ainda assombravam os seus sonhos — Eles secretamente convertem seus projetos em ferramentas de guerra, fabricam armas sob a fachada de filantropia. O preço do meu sonho era me tornar um assassino.

     — Nossa, eu nunca imaginaria algo assim. É tão... — July ponderou por um momento, em busca da palavra adequada — Inacreditável! — Essa ainda não era a palavra certa, tal sentença nunca foi proferida — Mas você fez a coisa certa, Cornelius.

     — Eu teria feito o mesmo — Ed comentou, e os demais concordaram com sua fala, fazendo Cornelius se sentir mais seguro daquela decisão tão abrupta diante de um cenário inesperado e assustador — Vamos abrir a caixa.

     Cornelius balançou a cabeça em afirmativo e arrancou as fitas adesivas que lacravam o objeto. Ele pegou a tampa e se preparou para abrir, os demais se aproximaram com curiosidade. À medida que a caixa se abria, a realidade parecia se abrir junto, levando Cornelius para muito longe daquela nave no meio da imensidão do firmamento. Ele estava de volta em Tesla, com Frankie apreciando a tempestade no jardim horroroso, e tudo estava bem.

     Um empurrão de Ed o arrancou da ilusão momentânea e o derrubou no piso do Tubarão. Seu coração estava acelerado e ele olhava em volta freneticamente, buscando aquele sonho sorrateiro, e tudo que encontrou foi um cenário de medo e a confusão estampada nas feições das garotas. Ed estava caído ao seu lado, com a boca semiaberta e os olhos perdidos no infinito onírico.

***

     Ed voltou a ser criança, talvez regressando aos nove anos, onde estava usando roupinhas chiques e o cabelo penteado para trás como um almofadinha. Ele estava em um jardim verdejante, cheio de flores e estátuas antigas. Estava debruçado na grama com Leonard, também uma criança com aquele olhar malévolo de miúdo atentado. Eles estavam jogando xadrez e Ed estava perdendo.

     — Xeque-mate! — Leonard anunciou após um movimento certeiro de seu cavalo.

     — Ei! Assim não vale! Você está trapaceando! — Ed protestou. Sua voz infantil soava de um jeito esganiçado, como se ele estivesse prestes a chorar.

     Leonard, como um capeta em forma de guri que ele sempre foi, fez uma careta, irritando Edmond. Os irmãos se levantaram e começaram a correr um atrás do outro pelo jardim, até chegarem numa fonte que estava sendo pintada pela aquarela de uma bela mulher numa tela.

     — Meninos, o pai de vocês não vai gostar de ver vocês brigando assim — A mulher os repreendeu, largando a concentração na tela para observar seus filhos.

     — Foi o Leonard! — Ed reclamou, apontando seu indicador curto de criança — Ele que começou!

     — Eu não fiz nada, mãe! — Leonard choramingou — O Ed que é um chato! Ele não sabe brincar!

     A sombra de um homem alto e vestido como um executivo surgiu no jardim, e os meninos correram para abraçar o dono quando repararam na sua presença. Um sorriso meigo surgiu no rosto da mulher ao ver aquela linda cena de seus dois filhos abraçando o pai, todos envoltos no mais puro sentimento de amor familiar.

***

     Algo inesperado aconteceu em seguida. Tremores intensos começam a se infligir na nave, perdendo sua altitude gradativamente numa queda livre que empurra a parte frontal da nave para baixo. O desespero toma conta do ambiente. July se agarrou em Ed, dando tapinhas em seu rosto e tentando acordá-lo, mas ele nem sequer se mexia. As outras se agarraram em canos e pedaços de metal para se equilibrarem na inclinação acentuada que se formava.

     — Os circuitos elétricos devem ter se soltado de novo! — Cornelius constatou ao analisar o painel de controle e ver os pontos de exclamação piscando nas telas digitais — Posso consertar isso rápido — Ele se virou para a sandalita — Gaia! Assuma os controles! Ao meu sinal você pisa com tudo no pedal direito e empurra os gatilhos! Eu vou consertar os circuitos! — Cornelius correu em direção ao buraco no teto, se enfiando num espaço apertado em meio a fios e pequenas caixas metálicas.

     — Eu vou com você! — Tétis o acompanhou, entrando pelo mesmo buraco.

     Gaia agarrou os gatilhos de comando e foi hipnotizada pela imagem que se formava no parabrisa. A velocidade da queda estava aumentando mais rápido do que esperava, e a nave realizava movimentos giratórios enquanto caia. O oceano lá embaixo estava cada vez mais próximo, juntamente das formações rochosas pontiagudas que descansavam na baía. Enquanto isso, Cornelius logo encontrou a causa daquele incidente, dois fios elétricos desencapados e mal conectados.

     — Pega a fita isolante na gaveta! Rápido! — Cornelius ordenou para Tétis, esticando a mão para ela, logo atrás de si. Por sua vez, a garota tateou no espaço até achar o repartimento indicado, repleto de ferramentas e outros materiais. Por sorte, foi fácil achar a fita requisitada naquela bagunça. Com ela em mãos, Cornelius logo remendou os fios — Agora!

     Gaia empurrou os gatilhos com toda a sua força ao ouvir o grito de Cornelius, soltando um outro brado estridente no processo. Os sistemas se reiniciaram e a nave respondeu aos comandos de Gaia, levantando novamente na mesma velocidade de antes, até se estabilizar por completo. A inclinação na direção contrária de antes causou mais contratempos no interior da nave, dessa vez jogando todo mundo para trás. Cornelius desceu do buraco e caminhou até o painel de controle, ativando o piloto automático. Tétis desceu em seguida, se pendurando de cabeça para baixo e deixando seus cabelos azuis caírem.

     — Essa foi por pouco — Todos soltaram um suspiro de alívio ao mesmo tempo — Tá todo mundo bem? — Cornelius perguntou, recebendo respostas afirmativas de Gaia, Ivana e Tétis.

     — Gente! Tem algo errado com o Ed! — July exclamou tomada por desespero. Ela estava sentada no chão ao lado dele, balançava o corpo de Ed em impulsos ritmados, mas ele nem sequer reagia, permanecia estático e com o olhar vazio. Os outros também se aproximaram, contemplando a estranheza daquele transe repentino.

     — O que foi aquilo? A gente podia ter morrido! — Tétis gritou para Cornelius, fazendo-o recuar intimidado.

     — Eu não faço ideia! Eu consertei aquilo, alguma coisa deve ter cortado os circuitos — Cornelius respondeu na defensiva.

     — Mas afinal, o que tinha na caixa? — Gaia perguntou, atraindo a atenção dos outros para o objeto, agora levemente amassado. July, que estava mais perto, puxou a caixa e observou seu interior vazio, encontrando apenas um cartão dentro.

     — L e R — Ela leu as letras desenhadas no lado branco do cartão, logo todos concluíram o seu significado — Leonard Roberts! — O cartão foi virado e seus olhos passearam pelas palavras impressas — Réplica de um Morspheratu, departamento de recriação genética de Freka — Um arrepio percorreu o corpo de July.

     Freka era a personificação do mal no novo mundo, uma cidade forjada na engenharia genética e na microbiologia, criada por aqueles que tinham interesse em extrair a energia atômica impregnada na Terra em recorrência das grandes explosões nucleares da última guerra. O resultado foi uma nação de monstros, onde os maiores pesadelos tomavam forma nos seus habitantes, mutantes deformados pela exposição prolongada a níveis exorbitantes de radiação. Qualquer tipo de comércio ou contato com essa cidade era proibido pelas demais cidades flutuantes, mas Freka era quem mais alimentava o mercado clandestino, possuindo uma inesperada demanda de seus produtos macabros.

     A palavra "Morspheratu" acendeu um alerta na mente de Ivana. A garota mythidiana olhou em volta cautelosamente, como se procurasse alguma coisa. Só ela percebeu a sombra obscura que rastejava pela nave, se aproximando de July Harmond por trás sem que ela percebesse. Ivana esticou seu braço direito e fechou o punho, mantendo apenas o indicador e o médio apontados em direção a garota. A energia arcana flui pelo corpo seu corpo, indo em direção aos seus dedos e se transmutando em uma rajada de raios que se dispararam pelo ar. Assustada com a ação inesperada de sua amiga, July se encolheu no chão, o raio passou por cima de sua cabeça se colidindo na parede e atingindo diretamente a sombra misteriosa.

     Confusos, os outros chegaram a questionar a sanidade de Ivana por um momento, mas logo o distúrbio foi substituído pelo assombro quando a sombra se revelou. Era um tipo de monstro tentacular, seu corpo lembrava uma estrela do mar arroxeada e consistia numa esfera central que reunia oito tentáculos pegajosos. No centro da esfera, um complexo conjunto de vários olhos avermelhados observava tudo à sua volta com a cólera de um caçador. A criatura tombou com o golpe elétrico, e em seguida equilibrou seu corpo monstruoso em dois tentáculos, com os demais se remexendo de forma intimidadora.

     A tripulação liberou sua melhor seleção de gritos assustados diante daquela presença sobrenatural. Gaia e Tétis sacaram suas armas, o bumerangue e o bastão, enquanto July se agarrou no corpo adormecido de Ed. Afastado das meninas, Cornelius também se viu sem reação, paralisado por aquele monstro inexplicável.

     A criatura avançou contra Tétis. A yariana se defendeu do ataque prendendo os tentáculos em seu bastão. Aquele ser até podia ser rápido, mas não era forte e ela conseguiu afastá-lo com movimentos circulares de sua arma, não sem antes sentir o medo tomar conta de seu corpo ao ver sua imagem refletida naqueles olhos monstruosos. Mais um raio cortou o compartimento e atingiu o monstro, jogando-o contra a parede próxima ao painel de controle.

     — Corram! — Ivana ordenou, ainda com seu braço estendido.

     Ivana foi na frente, correndo em direção ao refeitório. Tétis e Gaia a seguiram, arrastando respectivamente o assustado Cornelius e July, que relutava em permanecer junto de Ed. Ao chegar ao refeitório, Ivana se virou e percebeu seus companheiros divididos, o monstro havia rastejando rapidamente até o outro lado do compartimento, deixando a dupla de Tétis de um lado e a de Gaia do outro. Agora a criatura sibilava, liberando um horroroso som gutural enquanto escolhia seu próximo alvo. Ivana se preparou para conjurar mais um raio, mas antes que ela pudesse atacar, July encontrou seu disparador em meio a bagunça formada pela quase queda da aeronave e atirou. Uma pequena bombinha atingiu o monstro, forte o suficiente para deixá-lo cambalear desorientado e o raio veio logo em seguida, o derrubando por um momento.

     Gaia e July entraram no refeitório, mas Tétis e Cornelius haviam sumido. Procurando pelo espaço, Ivana logo os encontrou enfiados no buraco no teto.

     — O que é aquela coisa!? A gente vai morrer!? Eu sou bonita demais pra morrer! — Tétis tremia de medo, atropelando as suas próprias palavras desesperadas.

     — Tétis! Para! — Cornelius gritou, saturado no seu próprio pânico — A gente tem que sair daqui! Se aquela coisa pegar a gente aqui dentro vai ser o nosso fim! — Lá embaixo, o monstro começava a se recompor, rastejando sorrateiramente pelo piso da nave. Ao identificar as garotas no refeitório, ele se prepara para mais um ataque — Eu tive uma ideia! — Cornelius anunciou, encarando Tétis — Eu vou distrair a coisa, você tem que correr pro refeitório. A Ivana é a mais poderosa aqui, só ela pode proteger vocês.

     Com um olhar, Tétis demonstrou o desejo de que Cornelius esquecesse aquele plano absurdo e continuasse escondido ali com ela, mas ele já havia se decidido. Cornelius começou a se debater contra a placa do teto na qual estava em cima, o som das pancadas chamou a atenção não só do monstro como também das garotas, repletas de receio ao perceberem o que estava prestes a acontecer. A placa despencou, e Cornelius deu seu último grito de adrenalina antes de cair bem em cima da criatura e ser apanhado por seus tentáculos mortais.

***

     Agora Cornelius estava numa praia, sentado na areia vestindo apenas um calção florido, sentindo a brisa oceânica balançar seus cabelos espetados. Ao seu lado estava Frankie, também usando trajes praianos e floridos e com a cabeça apoiada em seu ombro, seus olhos fechados e uma das mãos acariciando discretamente a coxa de Cornelius. Ele não devia estar aí, pelo menos não com aquele louco, e esse sentimento de estranheza foi desaparecendo aos poucos à medida que aquele sonho ficava mais real.

     Cornelius olhou para trás e viu Roza e Johnny brincando com uma bola de plástico colorida, enquanto Cérebro organiza lanches sobre uma mesa de piquenique fincada na areia. Havia música no ar, todos estavam felizes, e Cornelius também se alegrou em meio aquelas pessoas que ele havia perdido.

***

     Aproveitando a distração provocada pelo sacrifício de Cornelius, Tétis saiu do buraco no teto e correu em direção ao refeitório. Quando ela entrou, Ivana preparou mais um feitiço, dessa vez uma parede de gelo sólido para bloquear a passagem. Atrás delas, o refeitório já não era mais o mesmo. Os freezers ainda estavam em seu lugar, mas todo o resto estava espalhado pela sala. Havia ferramentas pelo chão, pratos quebrados, e a mesa estava tombada num canto. Parecia que um furacão havia deixado tudo de pernas para o ar dentro daquela aeronave.

     — O que era aquela coisa? — July perguntou, respirando fundo para tentar se tranquilizar.

     — Morspheratus são demônios que capturam pessoas e as prendem num sonho com aquilo que elas mais querem, quanto mais pessoas eles capturam mais fortes ficam e com o tempo o estado de sonho é irreversível — Ivana respondeu, recebendo apenas olhares esquisitos de suas companheiras — Na verdade não são demônios, são agentes mutantes de Freka, só dizem que são demônios para manter as pessoas afastadas das coisas dessa cidade maldita. Geralmente, Morspheratus são usados em emboscadas.

     — E nós caímos diretamente em uma — Gaia comentou com as mãos na cintura.

     — Tem algum jeito de destruir esse monstro? — July perguntou, ainda com o disparador em mãos — Eu consegui derrubar ele com um tiro, acho que dá pra matar.

     — Existe um feitiço que bane a maldade — Ivana ponderou por um momento — Mas para conjurar precisa da união dos quatro elementos, e é impossível fazer isso aqui!

     — Espera! Não é não! — Os olhos de July brilharam com o esclarecimento — Água — Ela apontou para Tétis — Terra — Ela apontou para Gaia — Fogo — Ivana foi a próxima — E ar! — July apontou para si mesma — Nós somos os quatro elementos! — As meninas sorriram umas para as outras, July havia descoberto uma nova esperança em meio a tragédia.

     — Vamos nos apressar! O Morspheratu já capturou os meninos, ele tá bem mais forte e essa parede de gelo não vai durar muito tempo — Ivana coçou o queixo e olhou em volta, receosa com alguma coisa — Vocês não acham que estamos esquecendo alguém?

     — Ai meu Jah! Esquecemos do Wes!

***

     Wes foi pego no banheiro, ele havia acabado de entrar quando a nave caiu. O impulso violento de ser jogado contra o box acabou provocando um leve desmaio, e ao acordar Wes continuou seu banho como se nada tivesse acontecido. O Morspheratu rastejou até lá e abriu o box com a perícia de um assassino, e Wes soltou um berro digno de Janet Leigh ao avistar aquela criatura monstruosa enquanto a água do chuveiro descia pelo ralo. Em seu sonho, a boate Closer recebe uma nova dançarina.

***

     No refeitório, as quatro garotas se reuniram de mãos dadas numa roda. Com os olhos fechados, elas seguiram as orientações de Ivana, deveriam permanecer concentradas na meditação, visualizando a energia arcana de seus corpos se unir numa esfera luminosa no centro da roda, o que de fato acontecia enquanto Ivana invocava o poder dos elementos da natureza.

     Do outro lado da parede de gelo, o Morspheratu retornou ao compartimento central e começou a colidir seus tentáculos contra a barreira mágica. Os golpes geram altas perturbações sonoras que deixaram as meninas suando frio, temendo por suas vidas, mas Ivana insistiu que elas mantivessem o foco no ritual, o feitiço estava quase completo. Pouco a pouco os golpes insistentes da criatura abriram caminho pelo gelo sólido, formando rachaduras profundas até que a parede cedeu, permitindo para o monstro o acesso ao recinto. As meninas abriram os olhos e se afastaram da roda quando ouviram os pedaços de gelo despencarem e se despedaçarem, e a agora volumosa esfera energética se acomodou nas mãos de Tétis.

     — Droga! Por que sempre sobra pra mim? — Ela estava tendo dificuldades para manter a energia concentrada em suas mãos, que se agitava em impulsos arcanos.

     — É agora ou nunca! — July carregou novamente seu disparador, apontou em direção ao monstro e atirou mais um projétil explosivo.

     A explosão novamente atordoou o monstro, e Tétis aproveitou a brecha para lançar a esfera em sua direção. Porém, o Morspheratu foi mais rápido, desviando do golpe e disparando seu corpo pegajoso contra a garota. Tétis praguejou, e só teve tempo de sacar seu bastão antes de ser apanhada nas garras da criatura. Agora os tentáculos pareciam mais fortes e pesados, e os movimentos circulares de Tétis não foram o suficiente para fazê-los se desvencilhar de si. Gaia jogou seu bumerangue, e a lâmina se enfiou no olho central, esse muito maior e diferente dos outros, possuindo a íris amarela. O monstro guinchou e se debateu até arrancar o bumerangue de seu olho, Tétis foi derrubada pelos tentáculos e um outro chicoteou as demais, jogando Ivana e July contra a parede. Gaia conseguiu desviar do golpe e recuperar sua arma, avançando contra a criatura e golpeando seu corpo ao usar o bumerangue como uma adaga, mas não tardou até que os tentáculos também lhe envolvessem.

     — O que tá acontecendo? — July perguntou enquanto juntava forças para se levantar, sentindo seu corpo inteiro doer devido ao impacto.

     — Ele tá mais forte do que eu esperava, agora consegue possuir duas pessoas ao mesmo tempo — Elas observaram Tétis e Gaia lutarem contra o monstro, até embarcarem numa viagem sem volta rumo aos seus próprios mundos imaginários. Ao terminar a captura, o Morspheratu rastejou rapidamente até Ivana e July, ficando por cima delas e as encarando com seus olhos múltiplos e assombrosos. Ivana voltou a disparar raios quando os tentáculos envolveram seus pés e os de July, mas agora até a sua magia parecia inútil e ela começou a chorar, derrotada — Me desculpa!

     Antes de ser presa num sonho onde abria sua própria escola de magia composta só por mulheres, Ivana encarou July com seus olhos cheios de lágrimas e redirecionou um raio libertador que afrouxou os tentáculos que prendiam July. Por sua vez, a última sobrevivente conseguiu escapar e tateou pelo chão em busca de seu disparador, mas o monstro continuava em seu encalço, acompanhando cada movimento da garota enquanto ela corria pela sala em busca de algo para se defender.

     July estava nervosa, lutando sozinha contra um ser inimaginável vindo do mais profundo abismo insano, e travando um combate interno contra o seu próprio desespero. À sua frente, o olho ferido pelo bumerangue sangrava, o monstro gritava de forma intimidadora, e à sua volta seus tentáculos se retorciam e golpeavam em todas as direções. Ela estava cercada de novo, a única coisa ao alcance de suas mãos era uma marreta pesada e uma ideia surgiu em sua mente conturbada. O golpe da lâmina no olho foi a única coisa que feriu o monstro, que o fez sangrar, aquele globo ocular principal devia ser o ponto fraco do Morspheratu, e era ali onde ela devia atacar.

     Ela segurou firme no cabo da marreta e ergueu os punhos, juntando força para o golpe, mas os tentáculos envolveram seus braços antes mesmo que ela pudesse atingir o seu alvo. Por um instante tudo sumiu, e July viu-se num lugar diferente, numa casa de madeira cercada por um denso e alto matagal amarelado, e ela não estava ali sozinha, Karine Harmond, sua mãe, estava com ela. A mãe estava vestida como uma verdadeira rainha, e July como uma princesa. July correu para abraçar sua mãe, sentindo seu corpo se envolver na saudade que sentia em seu coração, juntas elas correram pelo terreno, brincaram num balanço, leram histórias de cavaleiros e bruxas num livro grosso e antigo repleto de desenhos fantásticos, e só então ela percebeu que não deveria estar ali, que tudo não passava de uma mentira projetada pelo monstro para confundir sua mente e ferir seu coração. July balançou a cabeça violentamente até se libertar daquele devaneio, e viu-se novamente na luta final contra aquela criatura monstruosa.

     July balançou a marreta como se golpeasse o ar até se livrar dos tentáculos e se preparou para mais um golpe. Dessa vez o Morspheratu não se preocupou em imobilizá-la, e tentou novamente a enviar para aquele sonho. Agora, além de Karine, July estava lá com seu pai no papel de um rei, com Ed vestido como príncipe encantado, e com todos os seus amigos lhe parabenizando. Cornelius, Roza, Lollipop, Wes, Ivana, Gaia, Tétis, Natasha, Emily e Alexander, e até mesmo o cachorrinho Scott, todos eles estavam lá sob a imensidão azulada, batendo palmas e admirando sua coragem. July estava confusa com aquela cena, mas fechou os olhos e agradeceu antes de sair novamente e desferir o golpe derradeiro.

     — Eu nunca vou deixar um demônio mexer nos meus sonhos! — Um grunhido ainda mais alto ecoou pela aeronave quando a marreta atingiu o olho central, esmagando-o como uma uva entre os dentes de alguém faminto, e a criatura cedeu inerte.

     Os sonhos começaram a se despedaçar, o mar que Cornelius contemplava se tornou revolto, a família perfeita que Ed almejava derretia como cera quente diante de seus olhos, a escola de Ivana foi obliterada por um anjo genocida, e cada um dos capturados viu sua dimensão ser arruinada e sua consciência ser jogada de volta para a realidade. Ivana foi a primeira a acordar, e se levantou sentindo sua cabeça doendo como se fosse explodir. Ela se assustou ao ver July batendo várias vezes nos restos do Morspheratu, certificando-se que aquele monstro havia morrido de fato.

     — July! — Ivana a chamou, repetindo algumas vezes antes de receber como resposta o olhar assombrado da garota boquiaberta quando ela parou de golpear.

     July largou a marreta e abraçou a mythidiana, aos poucos os outros passageiros capturados também acordaram e se levantaram.

     — Eu sonhei que tinha uma fazenda de dinossauros — Gaia comentou enquanto ajudava Tétis a se levantar e se recompor — E você?

     — Eu sonhei com comida, o resto é constrangedor demais para falar — Tétis se encostou na parede e respirou fundo. Em segredo, ela queria poder voltar mais uma vez para aquela experiência.

     July atravessou o que sobrou da parede de gelo e correu alegremente pelo compartimento central ao ver que Ed também havia acordado. Em seguida, ela o envolveu num abraço que quase o derrubou, feliz por ver seu querido companheiro são e salvo.

     — A gente já morreu? — Ed perguntou.

     — Não! Eu consegui salvar todo mundo! Eu consegui te salvar! — July dizia com animação, seus olhos marejados brilhando em sincronia com o sorriso de Ed.

     — Você sempre me salva — Eles se abraçaram novamente. Enquanto isso, Wes saiu do banheiro vestido com um calção velho e enxugando seus cabelos com uma toalha, ele estava mais nervoso do que todos ali.

     — O que eu perdi? — Ele perguntou, jogando a toalha sobre os ombros.

     — O Leonard mandou um mutante genético de Freka para matar a gente — Ed respondeu com a voz firme, ele não esperava que o irmão fosse apelar para métodos tão deselegantes quanto o uso de armas biosintéticas. Por trás de Wes, Ed percebeu Cornelius sozinho no deck de observação e foi até lá com July, encontrando seu amigo submerso em melancolia — Cornelius?

     — O Leonard envenenou o meu irmão, né? — Cornelius manteve o olhar fixo no horizonte e a voz baixa.

     — Acredito que sim — Ed respondeu, pondo sua mão no ombro do amigo — Mas não precisa se preocupar, estamos quase chegando e ele vai pagar por tudo que fez.

     — Eu sei que vai... Mas e se as pessoas na Sociedade da Ciência tiverem razão? E se Jah não existir e todos nós somos ferramentas do capricho de um demônio? Marionetes destinadas ao caos... E se não existir liberdade?

     — Eu acredito que Jah existe — July respondeu — Se nós existimos é porque Jah nos criou, e você mais do que ninguém devia saber que isso é um milagre. Nossa evolução e adaptação, não só da própria humanidade como da sociedade em si depois da guerra. É isso que me dá esperança — Ela dizia de forma introspectiva e acolhedora, mas recebeu de seu amigo apenas o silêncio — Vamos Ed, temos que limpar aquela bagunça lá embaixo — July o chamou, segurando a mão de Ed.

     — Se precisar da gente você sabe onde nos encontrar — Ed falou no ouvido de Cornelius antes de se afastar — Até porque a gente não tem muito pra onde ir, né?

     July e Ed desceram do deck, deixando Cornelius sozinho em seu luto. Ele escondeu suas mãos nervosas nos bolsos de seu macacão e apoiou sua cabeça no vidro. Era doloroso demais perder sua única família, se ver sozinho num mundo sem esperança, e ele estava cansado demais para chorar. Enquanto isso, em seu íntimo, Ed também se entristecia pela morte de Cérebro. Ele devia saber que a parte mais difícil é que não dar para salvar todo mundo, e por um instante ele imaginou quem seria a próxima vítima inocente da sua disputa familiar. Se ele pudesse, Ed morreria para evitar mais uma tragédia.

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