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10.2 - Maggie e o Inferno em Manifesto


     A noite passou num piscar de olhos, trazendo prazeres e preocupações para os frequentadores do baile de máscaras. A notícia do assassinato de Solomon Roberts se espalhou pelos noticiários de Newdawn em plena madrugada, e os desaparecidos Edmond Roberts e July Harmond foram ditos como os responsáveis do crime, terroristas planejando um golpe conspiracional. Em meio a isso, Leonard assumiu a postura de um bom moço consumido pelo luto e pela perda de sua figura paterna.

     Havia uma pequena parcela da população que acreditava na inocência de July e Ed, e cobrava investigações mais apuradas sobre o caso, mas todo o resto, a maior parte, acreditava fielmente na narrativa criada por Leonard, forçando o Ministério a autorizar o seu ingresso na política local como ministro principal. Leonard estava satisfeito, agora ele tinha todos os caminhos abertos rumo a tudo aquilo que ele tanto quis em toda a sua vida.

     Porém, Ed não sabia disso. Ele estava trancado numa cela no subterrâneo do Palácio Ministerial, próximo àquela sala onde seu grande amor foi arrancado de seus braços e jogado rumo ao desconhecido. July estava em algum lugar lá embaixo, viva ou morta, e ele só pensava nela e em nada mais.

     Sua capa agora estava esparramada num canto da cela, enquanto Ed, deitado em um catre, relembrava o olhar de compaixão que July esboçava em seu último minuto. As cápsulas foram projetadas para manter o passageiro em segurança durante a ejeção, mas elas nunca foram usadas antes, não tinha como ter certeza. Mesmo assim, algo lhe dizia que ela estava viva, e ele precisava lhe resgatar, mas antes precisava dar um jeito de sair daquele calabouço. Sua mente começou a encaixar de forma obsessiva as peças pragmáticas do quebra-cabeça de um fugitivo. Ed precisava mais do que tudo encontrar uma saída, ele sempre encontrava, e não desistiria tão fácil de deter a sombra malévola e abominável que pairava sobre sua cidade natal.

     Mesmo preso naquela fantasia esperançosa, ele percebeu quando um guarda entrou na sua cela trazendo seu café da manhã. Nada mais do que café frio junto de pão seco numa bandeja de aço inoxidável. Ed reparou que aquele guarda usava um uniforme diferente, preto e com uma insígnia sangrenta do seu tamanduá familiar. Pelo visto, Leonard não perdeu tempo na hora de deixar as coisas do seu jeito.

     — Hora da ração! — O guarda disse, segurando a bandeja nas mãos — Não vai comer? — Ed permaneceu indiferente em seu catre, ignorando a presença daquele serviçal — Você quem sabe!

     Com arrogância, o guarda atirou a bandeja no chão e deu às costas para Ed, saindo da cela. Um cutucão no ombro interrompeu sua trajetória, e ao virar-se novamente, o guarda foi derrubado com um potente soco disparado por Ed com seu braço mecânico. O guarda que monitorava o corredor correu para dentro da cela ao estranhar os barulhos provocados pelo choque dos corpos. Ele já vinha com seu fuzil em mãos, pronto para agir. Mesmo assim, Ed conseguiu se livrar facilmente dele, jogando a bandeja em sua direção para confundi-lo e acertando um chute poderoso em sua barriga.

     Ed já tinha um plano formulado em mente quando saiu correndo da cela. Até pensou por um momento em pegar uma das armas dos guardas derrotados, mas ele não podia perder tempo. Para o seu plano dar certo era preciso ser rápido. Mesmo desarmado, Ed conseguiu lidar com outros três guardas que surgiram em seu caminho com seus golpes rápidos e precisos. Sem muita dificuldade, após passar por algumas encruzilhadas, as luzes do corredor amarelo logo apareceram. Ele já estava bem perto de onde queria chegar.

     Porém, no corredor amarelo as coisas não foram tão fáceis, Ed viu seu caminho obstruído por um pequeno grupo de guardas armados. Deviam ter um oito ou nove agentes, todos com suas armas já ativadas e preparadas para abrir fogo com suas balas perfurantes. Ele conseguiria derrubar no máximo uns três se partisse para o combate físico da mesma forma usada anteriormente nos corredores adjacentes, mas não valia a pena, depois disso todos os projéteis disparados pelos demais guardas já teriam perfurado seu corpo. Ele não queria morrer ali naquele labirinto subterrâneo, onde seria descartado como um indigente, e com certeza isso agradaria muito a Leonard. Antes, era preciso reunir os seus paladinos da justiça, July, Cornelius, Emily, Alexander, Ivana, e qualquer outro que estivesse disposto a prosseguir com sua causa.

     Cornelius! Cornelius era a resposta!

     Ao pensar em Cornelius, Ed lembrou-se de uma informação há muito esquecida, citada superficialmente no dia em que eles se conheceram.

***

     — É impressionante — Animado, Cornelius admirou-se enquanto checava os sinais vitais de Edmond num monitor holográfico — Seu corpo está se adaptando muito bem ao implante cibernético, em breve você nem vai perceber que é uma prótese de tão natural que seus movimentos vão ser.

     — Ainda me sinto uma aberração.

     Aquela era a primeira consulta que Cornelius fazia para a manutenção do braço mecânico de Ed. Cérebro havia lhe deixado essa responsabilidade após conseguir ingressar na Sociedade da Ciência.

     — É tudo uma questão de adaptação — Cornelius encarou o jovem desmotivado deitado numa maca improvisada, usando termos técnicos para esconder seu nervosismo — E agora você pode ter algumas habilidades especiais únicas.

     — Eu só quero ser normal — Mesmo depois de quase um ano com aquele implante, Ed ainda sentia-se entristecido ao ter aquele adereço mecânico preso em seu corpo. Era como se o braço novo não pertencesse a ele, mesmo com os circuitos eletrônicos emulando todas as sensações e funcionalidades de um braço verdadeiro.

     — Isso não te faz anormal — Cornelius respondeu com um sorriso no rosto — E não julgue antes de experimentar meu soco foguete.

     O ponto de partida para uma das poucas amizades firmes e sinceras que Cornelius teve foi quando eles riram juntos pela primeira vez.

***

     — Soco foguete... — Ele cochichou para si mesmo, lembrando já tinha testado essa tal técnica especial uma vez, se atirando contra latas arremessadas por Cornelius. foi divertido, mas quando Ed foi impedido de competir por causa das supostas vantagens oferecidas por sua prótese, ele ficou tão chateado que jurou para si mesmo nunca mais usar o braço especial para fazer coisas que ninguém poderia fazer com um braço comum. Agora surgiu o momento da exceção.

     Ed comprimiu o braço mecânico, se preparando para disparar um poderoso soco de força concentrada. Enquanto se posicionava, ele esticou o outro braço, avaliando a melhor trajetória para o golpe. Os guardas apontaram suas armas e dispararam, mas nessa hora Ed liberou seu golpe secreto, obliterando as balas. O braço mecânico se esticou, revelando placas metálicas que se destacaram, liberando por um momento cinco diminutos propulsores em seu entorno que se ativaram e fortaleceram o soco. O corpo de Ed foi impulsionando para frente como um meteoro de pura energia, jogando todos os guardas para cima e para trás com o impacto. Ao ver que havia se projetado para alguns metros adiante, e que atrás dele os guardas caíam uns sobre os outros, alguns inconscientes, Ed desejou poder refazer tudo de novo em câmera lenta, só para aproveitar melhor a experiência. Mas ele não podia perder tempo, tinha uma missão a cumprir, e se contentou com aquela vitória momentânea.

     Seguindo em frente rumo a sala das cápsulas, Ed agora se deparou com Max Williams, armado com uma pistola discreta e fatal. Max seria um adversário perigoso se partisse para o confronto direto, ele já havia causado alguns incômodos no passado, mas agora Ed não tinha tempo para isso. Assim, Max foi facilmente derrubado com um simples empurrão de ombro.

     Ed correu em direção a uma das cápsulas, abriu-a com um pouco de força e enfiou-se dentro dela. Com a vidraça fechada e a trava de segurança ajustada em seu tronco, Ed encontrou um pequeno botão de emergência escondido na parte superior da cápsula e o apertou, destacando os controles manuais semelhantes a joysticks de um videogame rudimentar que saíram das paredes. Comandos foram inseridos, botões apertados e chaves foram viradas. Após algumas tentativas de partida, as sirenes começaram a soar seus gritos de alerta quando toda a cápsula começou a vibrar. A máquina havia acordado, e se preparava para mais uma ejeção. Ainda caído, Max disparou contra Ed, mas suas balas só serviram para mostrar que aquele vidro era reforçado contra projéteis.

     Por fim, a cápsula de fuga desceu na mesma velocidade na qual July foi tragada. Ed teve que se segurar firmemente nos controles enquanto se acostumava com os tremores provocados pelo impulso da cápsula através do tubo. Tudo ficou escuro por um momento, enquanto a cápsula percorria o interior esquecido de Newdawn. Os tremores ficavam cada vez mais insuportáveis ao mesmo tempo que uma breve onda de calor consumia o metal, mas depois tudo ficou silencioso, a luz ocupou novamente o pequeno espaço quando a cápsula foi expelida da cidade flutuante. Através da vidraça, Ed pôde contemplar o céu azulado e o sol da manhã.

     Diversos desdobramentos ocorreram no mesmo instante, transmutando o bizarro cilindro numa pequena e precária nave. Ed agora poderia controlar a trajetória facilmente, e chegar em segurança no solo muitos metros abaixo, mas por um instante permitiu-se observar aquele manto imaculado. A imensidão azulada não possuía perturbações, estava tomada por aglomerados de nuvens fofas como algodão, cujo movimento de queda deixava a impressão de que elas estavam se elevando rumo às fronteiras da atmosfera. Era um visual tranquilizador, seu plano de fuga havia dado certo depois de deixar tudo para trás, em breve ele veria sua amada July de novo.

     Mas a felicidade sempre é breve, e o trágico tomou conta da monotonia do manto celeste. De súbito, a cápsula voltou a chacoalhar violentamente como se tivesse sido atingida por um míssil atômico. Todos os sistemas falharam ao mesmo tempo. Os controles já não respondiam aos seus comandos, e o garoto sentiu seu coração acelerar e sua garganta se preencher com o desespero sufocante de uma armadilha sem escapatória. Agora sim seria seu fim, e só lhe bastava rezar para que a sua cápsula não explodisse, lhe rendendo uma morte indolor e sem sofrimento.

     Em seguida, uma possibilidade surpreendente ocorreu. A cápsula não explodiu, nem se colidiu contra o solo pedregoso do mundo arruinado. Em vez disso, a cápsula caiu no mar, afundando nas profundezas enegrecidas e se enchendo lentamente com a água ácida. A última coisa que Ed viu antes de perder a consciência foi um gigantesco monstro marítimo aproximar-se vagaroso de seu recipiente, abrindo sua bocarra.

***

     A noite não poderia ter terminado pior para Emily Starsky-Hutch, primeiro ela avistou July e Ed sendo conduzidos por guardas até uma passagem secreta no Palácio Ministerial de forma abrupta e bizarra, depois Alexander desaparece, Solomon aparece morto e seus amigos supostamente são os culpados, e Leonard toma conta de tudo em instantes. Esses fatos se repetiam na mente da policial como demônios vindos do fundo do tártaro para perturbar o seu sono. Ela revirou-se na cama diversas vezes, mas só conseguiu cochilar por no máximo meia hora antes de ser obrigada a voltar a mais um dia de trabalho.

     Emily caminhava pela rua de cara fechada, com o peso do sono alojado nos seus ombros, e resquícios de maquiagem na pele maltratada. Ela estava estressada, inconformada em como tudo mudou em questão de horas, e acima de tudo preocupada com Alexander.

     — Onde será que aquele idiota se meteu? — Emily murmurava consigo mesma, invocando em sua mente o sorriso bobo do namorado para tentar se tranquilizar.

     Ela tinha uma área predefinida para patrulhar, mas seus pensamentos eram mais fortes do que suas obrigações. Em instantes, Emily estava longe de onde deveria estar. Ela havia chegado inconscientemente no Palácio Ministerial.

     A grande mansão política agora parecia mais uma casa mal assombrada, uma caixa de Pandora cheia com os males da humanidade, e lá no fundo a esperança como o pior de todos. Não havia nenhum outro lugar mais detestável do que aquele antro infernal onde Leonard Roberts, o príncipe dos sortilégios, se escondia com seus lacaios hipnotizados à base do suborno.

     Leonard Roberts, só de pensar nele Emily já sentia vontade de vomitar.

     Aproveitando que havia se distanciado de seu trajeto habitual, Emily sentiu-se tentada a se aproximar da mansão, atravessando a praça e o jardim com o olhar fixo na silhueta da edificação. Tudo que ela mais desejava agora era poder ver através daquelas paredes, descobrir algum segredo podre, ferrar com a vida de Leonard e salvar todo mundo, mas ao invés disso ela encontrou algo mais inusitado. Diante do portão principal, Ernest Harmond discute aos berros com um guarda, exigindo uma audiência com Leonard para descobrir o que havia acontecido com July. Ao seu lado, Natasha fazia o possível para ajudá-lo, compassiva, e ignorando o inesperado fato de que Max agora era um dos assessores de Leonard.

     — Oi, tá tudo bem por aqui? — Emily perguntou, se aproximando da dupla. Mais uma investida de Ernest havia falhado, e o guarda o ignorou pela milésima vez.

     — Nossa, finalmente alguém competente apareceu! — Ernest agradeceu de forma exaltada, erguendo as mãos para o céu — Você precisa nos ajudar, senhorita Starsky-Hutch. Eu sei que minha filha tá trancada lá dentro. Eles não podem impedir um pai de ver sua filha, ou podem?

     — Nos filmes os presos sempre têm direito a uma ligação — Natasha pontuou antes que Emily pudesse esclarecer o questionamento de Ernest. Por sua vez, o banqueiro revirou os olhos com essa inocente fala involuntária.

     — Calma, eu vou sim ajudar vocês — Emily disse tentando tranquilizar Ernest — Acho que ainda não nos conhecemos pessoalmente, mas eu sou amiga da July e também estou preocupada com ela.

     — Espera aí! — Natasha estreitou os olhos, analisando todos os traços da fisionomia de Emily — Você não é a...

     — Sim, a cantora da festa — Emily balançou as mãos numa falsa animação — Com licença.

     Emily barganhou com o guarda no portão por tempo suficiente para convencê-lo a solicitar a entrada deles no Palácio Ministerial, e ela nem precisou mostrar seu distintivo de oficial da lei. O guarda entrou na mansão por um instante e voltou em seguida, abrindo o portão e autorizando a entrada.

     — Leonard irá vê-los em breve.

     Os três adentraram no Palácio Ministerial. No salão principal, Leonard se aproximou deles com os braços abertos, acompanhado de outros dois guardas.

     — Vocês devem ser Ernest Harmond e Natasha Williams? — Leonard disse com tom receptivo — E você a glamourosa Emily Starsky-Hutch? Eu amei a sua apresentação na festa! — Emily reagiu mal ao elogio, sem esconder seu ódio interno ao novo ministro — A que devo a honra dessa visita?

     — Eu exijo saber o que aconteceu com July Harmond! — Ernest tomou a frente de seu grupo e elevou a voz — Eu exijo ver a minha filha!

     — Calma, senhor Harmond — Leonard pousou as mãos nos ombros de Ernest, enquanto falava com tom leve e acolhedor — Sua filha está bem. Tem algumas pendências judiciais mas isso vai se resolver aos poucos. Eu mesmo a vi, e percebi que ela nunca faria algo daquele tipo.

     Ernest pareceu se acalmar, mas as palavras falsas de Leonard só deixaram Emily ainda mais nervosa. Leonard praticamente tinha "mentiroso" escrito na testa com uma tinta especial que só ela via. Mesmo assim, ela decidiu se controlar por enquanto. Leonard poderia ser esperto, mas ela era mais. No momento, tudo que ela tinha a oferecer era seu silêncio e uma expressão fria de desafeto.

     — Não faria mesmo! Minha filha é inocente! — Ernest retornou a suas exclamações.

     — Não se preocupe, você irá vê-la agora — Leonard chamou os guardas e cochichou algo para eles, em seguida voltou-se novamente para Ernest — Esses senhores vão levar você e sua companheira até ela.

     Ernest e Natasha animaram-se, e logo saíram andando acompanhados dos guardas. Por um instante, Emily pensou em ir junto, mas ela tinha contas a acertar com Leonard, e não podia deixar essa chance escapar.

     — E você? — Leonard perguntou.

     — Gostaria de ter uma conversa a sós, se o excelentíssimo não estiver ocupado.

     — Sem problemas, vamos para o meu escritório.

     Leonard deu as costas e caminhou rumo à escada no final do salão. Agora ele estava andando de um jeito enérgico, cumprimentando todos que encontrava no caminho, em sua maioria guardas já trajados com os novos uniformes. Era tão otimista que chegava a ser assustador. Emily o acompanhou sem tirar os olhos dele, analisando cada movimento. Havia algo estranho no ar, um adocicado aroma de falsidade, de quem engana os outros muito fácil.

***

     — Ela está aqui dentro, podem entrar.

     Essa foi a primeira coisa que um dos guardas disse quando pararam diante das grandes portas duplas. Repleto de felicidade, Ernest correu para dentro do cômodo, ansioso para rever a filha. Natasha entrou logo depois. Porém, lá dentro, eles encontraram Lollipop sentada no carpete felpudo, emburrada num silêncio repleto de chateação. Eles haviam chegado no cativeiro mobiliado.

     — Normaji... — Ernest sussurrou, na mesma hora um baque pesado ouviu-se na sala.

     As portas se trancaram atrás deles.

***

     — Entre, por favor, sinta-se à vontade — Leonard abriu passagem para Emily através das portas de seu escritório.

     O escritório era um cubículo espaçoso, sem janelas. Além das portas duplas de madeira grossa, haviam outras duas portas menores aos fundos da sala, uma de cada lado nas pontas de suas respectivas paredes. As paredes laterais eram recobertas por grandes prateleiras cheias de livros, em sua maioria enciclopédias volumosas e atlas. Também haviam banquinhos baixos com abajures e vasos de flores espalhados pelo cômodo, e uma bolsa de tacos de golfe estava jogada a diante da prateleira direita. No centro do local tinha uma larga escrivaninha envernizada adornada com luminárias, papéis e diversos itens, dentre eles uma formosa caneta tinteiro com uma grande pena na ponta. Juntamente da escrivaninha havia duas poltronas de estofado vermelho escuro, uma em cada extremo. A parede atrás da escrivaninha era quase toda ocupada por um grande quadro renascentista, do tipo que faria Wes se corroer de desejo de expor em seu museu, com vários candelabros duplos fixados nas paredes em volta. Também não havia carpete no escritório, deixando o piso de madeira reluzente à mostra. O ambiente transmite sofisticação, diferente de seu proprietário.

     — Obrigada — Emily forçou um agradecimento enquanto se acomodava na poltrona, percebendo que o móvel era muito mais duro do que ela imaginava que seria.

     — Então, qual o assunto dessa conversa particular? — Leonard abriu um grande livro sobre a escrivaninha e começou a rabiscar em suas folhas brancas com a caneta tinteiro — Se for aumento de salário ou mais recursos para a corporação eu já tratei disso com seus superiores...

     — Eu quero saber o que aconteceu de verdade com Solomon Roberts. E quero saber onde está July Harmond, o seu irmão Edmond Roberts e o meu parceiro Alexander Cannon, todos desaparecidos na noite anterior durante o baile de máscaras, o exato momento em que o seu tio, Solomon Roberts, foi encontrado morto, assassinado — Leonard ergueu os olhos do livro, encontrando o olhar sério de Emily lhe encarando num tom acusatório — E eu quero a verdade! Não aceito desculpas ou mentiras.

     — Tem alguma prova que refute o relatório oficial da investigação? — Leonard voltou aos seus rabiscos.

     — Tenho minhas fontes e minhas convicções — A policial encostou suas costas na poltrona, buscando expressar o máximo de autoridade possível em sua postura — Sei que uma investigação dessas não se faz em menos de um dia, e que é muito conveniente apontar culpados absolutos sem nenhuma garantia de respostas. Não é muita coincidência o corpo de Solomon ser encontrado no exato momento em que nem Edmond nem July estavam presentes?

     — Vossa excelência — Leonard fechou o livro e a encarou, visivelmente aborrecido. Em todos esses anos de prestação de serviço vital à sociedade, Emily nunca havia sido tratada por "vossa excelência". Leonard tentava intimidar com sua formalidade pragmática, mas seria preciso ir ainda mais fundo para desequilibrar a corajosa agente Starsky-Hutch — O povo não procura respostas. O povo procura a certeza, e a certeza é que meu caro irmão Edmond era um desequilibrado comunista que envenenou a mente da própria namorada para fazê-la cúmplice de um crime hediondo. Eles foram presos em flagrante pelos meus oficiais no exato momento que o corpo foi encontrado. Edmond até estava em posse da arma utilizada. Está tudo no relatório, basta ler.

     — Ainda tem muita coisa errada nesse caso — Emily balançava a cabeça em negativa, enojada com tanto cinismo — Mas por hora eu quero saber onde Alexander Cannon entra nessa história. Ou melhor, onde ele está neste exato momento?

     Calmamente, Leonard puxou um comunicador de uma gaveta da escrivaninha.

     — Tragam o garoto! — Ele ordenou, ríspido.

     Quatro guardas entraram pela porta da direita, arrastando Alexander. Emily se espantou ao ver o estado do seu companheiro, ele estava coberto de escoriações, todo machucado, partes de sua roupa estavam rasgadas e ele parecia desacordado, com a cabeça pendendo para a frente e os olhos fechados. Ainda havia alguns cortes no seu lábio inferior e na sua testa, espalhando sangue pelo seu rosto.

     — O que você fez com ele!? — Emily berrou, abandonando toda a sua postura de autoridade inabalável. As respostas que ela tanto procurava haviam desequilibrado sua coragem diante de seu maior inimigo. Alexander foi largado no piso amadeirado como um pedaço de lixo, e ali ficou inerte. Tomada pelo desespero de ver seu namorado quase morto, Emily se jogou no chão em direção dele, empurrando a poltrona, e agarrou o corpo de Alexander, tomando-o em seus braços magros. Um resquício de alívio percorreu o corpo da policial quando ela percebeu que Alexander ainda respirava, mas a indignação se tornou mais forte. Agora Emily tinha motivos maiores para odiar Leonard Roberts, e o encarou furiosa.

     — Acho que nossa conversa terminou — Leonard se levantou, encarando Emily com seu olhar perturbador de desprezo, ironia e escárnio — Você conseguiu a resposta que queria, e espero que não esqueça que agora sou eu quem decide o que vai ser considerado verdade no final. Vocês, defensores da lei honestos, não passam de ratinhos sob os meus pés, e eu nunca gostei desses animais asquerosos no meu caminho — Leonard encarou os guardas e apontou em direção às portas com um movimento rápido e brusco — Agora tirem eles daqui!

     Os guardas agarraram Emily com brutalidade, contendo seus espasmos e golpes, enquanto ergueram Alexander facilmente. Aquelas mãos ágeis e perversas arrancaram o coldre e as armas da cintura de Emily e o seu casaco, além de lhe revistarem para garantir que ela estava mesmo desarmada.

     — Ainda não acabou! — Emily gritou, se debatendo na tentativa de livrar seus braços das garras daqueles subordinados. Se ela conseguisse, teria voado no pescoço de Leonard e o estrangulado ali mesmo, mas os guardas eram muito mais fortes do que o esperado — Eu vou acabar com você! — Os gritos de Emily ecoaram pelo corredor quando os guardas saíram da sala.

     — Não gosta de mim? — Leonard acomodou-se na poltrona, com os pés sobre o topo da escrivaninha, como ficaria o líder prepotente que ele sempre quis ser, e sorriu despreocupado — Entra na fila.

     Em seguida, Margareth entrou no escritório, observando de soslaio a gritaria no corredor.

     — Querido, você não vai se arrumar? — Ela caminhou tranquila até diante da escrivaninha, permitindo o olhar sacana de Leonard percorrer através do vestido prateado que usava.

     — É mesmo! — O ministro levantou-se apressado — Quase esqueci do meu pronunciamento.

***

     Ernest juntou suas forças no fundo de seus pulmões e gritou o mais forte que conseguiu. Por algum motivo, ele acreditou que quanto mais gritasse mais forte ficaria, e assim conseguiria derrubar as portas, mas quando se jogou percebeu o quanto essa ideia foi falha e idiota. Ao se chocar no chão, Ernest imaginou que os guardas deveriam estar escorados nas portas, fazendo a madeira ter o mesmo peso de um pedaço de chumbo.

     — Assim você vai acabar se machucando — Natasha comentou quando viu Ernest estatelado no chão. Ela estava afastada da porta, sentado ao lado de Lollipop no carpete. Ao ver o estado de profunda tristeza dela, Natasha se compadeceu e acreditou que ficando ao seu lado já seria o suficiente para acalmar os tormentos da menina, mas Lollipop continuou ali, calada, encarando o piso de sua prisão mobiliada.

     — O importante é sair! — Ernest começou a bater na porta como uma criança irritada — Eles não vão deixar a gente aqui pra sempre!

     Ernest levantou-se e se preparou para mais uma investida, mas acabou recuando quando as portas abriram subitamente, e os guardas jogaram Emily e Alexander para dentro antes de trancarem novamente o cômodo com uma explosão sonora.

     — Alexander! — Emily rastejou para próximo de seu namorado. O garoto negro parecia está recobrando a consciência — Alexander, por favor fala comigo!

     — Meu Jah! — Ernest abaixou-se ao lado de Emily — Vamos levar ele para o sofá.

     — Vou procurar alguma coisa que sirva de curativo — Natasha correu em direção a cozinha, onde remexeu nas gavetas e nos armários.

     Ernest segurou o tórax de Alexander enquanto Emily levantou as pernas, e assim carregaram o garoto até o sofá, onde o acomodaram com a cabeça apoiada no colo de Emily. Natasha voltou trazendo um rolo de gaze e um saco de gelo.

     — Eu achei isso — Natasha entregou o saco de gelo para Ernest e o rolo para Emily.

     — Vai servir.

     Ernest pressionou o saco de gelo sobre as escoriações de Alexander, enquanto Emily enrolou a gaze sobre os cortes na testa. Aos poucos, Alexander foi abrindo os olhos lentamente, cuspindo sangue na gola de sua blusa quando tossia. Sua visão estava turva, mas aos poucos o rosto de Emily ganhou foco, captando toda a sua atenção e lhe rendendo uma cativante sensação de bem estar. Ela estava emocionada, com lágrimas nos olhos, e chorou de felicidade quando os olhos de Alexander correram pela sala, simbolizando seu retorno ao mundo dos conscientes.

     — Alexander! — Emily o segurou mais forte — Você voltou para mim!

     — Emily... — A voz dele saia arrastada, ainda sem forças — Você não podia ter se exposto tanto assim, sua idiota!

     — Eu não podia ir embora sem o amor da minha vida.

     Ambos os policiais e amantes sorriram, felizes por estarem juntos mesmo enclausurados na fortaleza do inimigo. Ernest e Natasha se abraçaram e também sorriram, observando aquela linda demonstração de afeto e companheirismo. E Lollipop nem sequer saiu do lugar ou olhou em volta, ela permaneceu na mesma posição, agora deitada e encolhida sobre o carpete. Em seu íntimo, ela queria acreditar que Leonard a salvaria o mais rápido possível, incapaz de aceitar que só estava ali por culpa dele. Lollipop era frágil demais para aceitar que toda ilusão é ainda mais frágil para se agarrar.

***

     Algum tempo depois, Leonard saía de seu quarto agora vestido com um traje formal mais adequado para o papel que desempenharia na política da cidade. Seus cabelos estavam penteados para trás, e um relógio dourado pendia de seu pulso.

     Margareth o acompanhou através dos corredores do Palácio até diante da porta de uma varanda, num dos andares mais altos do prédio, trazendo consigo algumas folhas de papel com diversas anotações. Dali já era possível ouvir o alvoroço da plateia que assistiria presencialmente ao pronunciamento. Leonard tomou as folhas e deu uma lida rápida no discurso que havia preparado para a ocasião, enquanto Margareth arrumava o microfone anexado em sua lapela, e após lhe devolver ele caminhou triunfante rumo à varanda ao ar livre.

     Leonard posicionou-se apoiando os braços na balaustre e olhou em volta, toda a extensão da praça estava tomada por uma multidão barulhenta. Aquele seria o momento decisivo de seu plano, não poderia se permitir ao luxo de errar uma só palavra ou de não parecer convincente ao máximo, principalmente pelo fato de ter muitos jornalistas presentes registrando suas sentenças e ações, mas ele poderia cuidar desse incômodo depois. Um golpe certeiro deveria ser dado para cativar o apoio popular. Quando as massas comprarem suas ideias, e ele estava convicto de que comprarão, nada mais poderá derrubá-lo.

     — Cidadãos de Newdawn — Leonard começou seu pronunciamento, com suas palavras firmes captando a atenção de todos os presentes — Com profundo pesar nos reunimos aqui para, acima de tudo, honrar a memória de meu finado e adorado tio Solomon Roberts. Apesar da tristeza, não podemos nos acomodar diante da ameaça sombria que permeia nossa sociedade, cujas garras da revolução criminosa iludiram a mente fragilizada de meu irmão mais velho, aquele que até então era o legítimo herdeiro do Ministério, como era a vontade de meu tio. As providências desse crime já foram tomadas, os assassinos de meu tio estão detidos, assim como seus comparsas. Porém, não viemos aqui hoje para remoer o passado, viemos honrar a memória e o trabalho de Solomon, seguindo sua atitude exemplar de fé e seu compromisso com a honestidade. Caminharemos juntos rumo a um novo futuro para todo cidadão de bem. Juntos, nós faremos uma Newdawn grande de novo!

     A multidão irrompeu em aplausos, fazendo Leonard abrir um sorriso de satisfação, eles tinham caído facilmente na sua lábia, e era questão de tempo até a minoria ainda consciente ser calada pelo efeito manada criado por um bom discurso. É fácil domar uma fera quando se entrega tudo que ela quer no momento, e não foi diferente com aquelas pessoas. Leonard falava tudo que eles queriam ouvir, e essas ilusões logo iriam se espalhar, trazendo mais e mais adeptos para sua utopia. Lá dentro, Margareth admirava-se com o fato de ter um namorado importante, e imaginou que seu pai aprovaria aquela relação. O restante do pronunciamento se resumiu a críticas ao comunismo, que sempre caem bem em qualquer plano de dominação política, além das propostas e planos de governo de Leonard, ou pelo menos aqueles que ele poderiam compartilhar com seus apoiadores sem medo, alguns outros deveriam continuar em segredo para funcionarem.

     Margareth o parabenizou com palminhas quando ele retornou para o interior da mansão. Leonard a agarrou pela cintura e a puxou para um beijo, usando seu carisma para camuflar sua satisfação sombria. Eles fizeram comentários bobos e animados a respeito do discurso, das pessoas e da aclamação popular, sem perceberem o apressado Max aproximando-se.

     — Leo! — Max parou de correr e respirou fundo.

     — O que foi? Não tá vendo que eu tô ocupado?

     — Ele fugiu! — Uma expressão colérica de indignação e descontentamento tomou conta do semblante de Leonard enquanto Max narra o incidente no subterrâneo. Porém, em vez de um esporro previsível, Leonard reagiu com uma risada jocosa.

     — Você ouviu isso, Maggie? O garotinho de aço fugiu! — Leonard disse para Margareth ainda se contorcendo de tanto rir. A loira reagiu de modo envergonhado, talvez um pouco deslocada — Pouco importa! Aquela coisa já deve ter dado conta dele — Leonard retornou a sua habitual postura sombria e autoritária — Agora vai checar se tá tudo ok com o carregamento.

     — Sim, senhor! — Max Williams bateu uma continência e voltou correndo pelo mesmo caminho da qual veio anteriormente, arrancando mais uma risada de Leonard.

     — Carregamento de quê? — Margareth perguntou com curiosidade.

     — Lembra quando eu te ajudei a recuperar o dinheiro do seu pai e você insistiu em me dar uma parte, mesmo eu dizendo que não precisava? — Margareth confirmou balançando a cabeça — Parte eu usei pra contratar alguns serviços e mão de obra, o resto eu decidi investir em algo que vai ser ótimo para gente! Vem comigo!

***

     De mãos dadas, Leonard guiou Margareth através dos túneis subterrâneos, agora tomado por uma estranha animação. Lá embaixo, os túneis antes vazios agora eram tomados pelo movimento dos guardas uniformizados, que andavam de um lado para o outro carregando caixotes de armamentos.

     Eles saíram dos túneis numa área privativa do porto de Newdawn, onde a movimentação dos guardas se concentrava no que parecia ser um processo maciço de carga e descarga. Leonard caminhou em direção a pista de pouso, sendo cumprimentado por diversos agentes em seu caminho. Chegando lá, Margareth percebeu que toda a extensão da pista de pouso estava ocupada por grandes aeronaves, com elas sendo carregadas com todo tipo de material bélico. Haviam diversos tipos de armas, bombas incendiárias e mísseis, além de tropas organizadas de guardas com uniformes grossos e estufados como armaduras térmicas. Todos os detalhes daquela paisagem reforçaram o clima de terror que crescia no ambiente e o sol escaldante projetava sombras gigantescas tão horripilantes quanto a presença de suas fontes, o que assustou ainda mais Margareth, mas fazia Leonard sentir-se realizado.

     — Não é lindo? — Leonard comentou com seu sorriso largo no rosto, observando seus peões prepararem as armas para os próximos passos daquele jogo de guerra que só o novo ministro principal de Newdawn jogava.

     Por um momento, Margareth permaneceu sem reação, remoendo em seu íntimo a mais pura expressão de seu espanto. O que Leonard planejava era ao mesmo tempo um mistério e uma certeza, alguém pagaria caro pelo simples fato de um lunático assumir o mais importante cargo político da cidade. Porém, as dimensões drásticas que aquele monstro ideológico antidemocrático tomaria seriam muito mais graves do que qualquer coisa que a primeira dama poderia imaginar sob o calor da pista de pouso.

     — É tudo culpa minha... — Ela sussurrou para si mesma, sentindo com antecedência a culpa de uma tragédia inimaginável.

***

     — Como você sabe de tudo isso? — No tempo presente, Cornelius perguntou, observando o seu interlocutor.

     — Porque foi ela quem me contou — Wes, o narrador desse relato assombroso, respondeu, cabisbaixo.

     Eles estavam no local marcado para o esclarecimento sobre os últimos eventos da cidade. Ambos debruçados sobre o balcão, com bebidas postas em canecas de vidro, mas sem a menor vontade de beber. O bar não estava realmente vazio, mas tudo parecia triste.

     — E onde ela tá agora!? Talvez possa nos ajudar...

     — Cornelius... — Wes disse com lágrimas em seu rosto — Eu mandei ela pra Manifesto!

***

     Ao retornar ao Palácio, Margareth trancou-se na suíte ministerial, acreditando que ficaria bem se ficasse sozinha. Aos poucos as peças já começavam a se encaixar, inclusive revelando para ela a participação de Lollipop nessa trama. A primeira mosca na teia de aranha que Leonard havia tecido, e alguém que ele havia machucado tanto ao ponto de fazê-la acreditar que a amava. Os próprios sentimentos demonstrados para Margareth agora eram contestados, e ela se perguntou se realmente valia a pena ser a primeira dama de Newdawn. Ela só queria se livrar de uma dor de cabeça que lhe afligiu repentinamente, talvez provocada pelo choque de realidade ou pelo peso na consciência. Ela já tinha estragado tudo, e agora para se redimir ela precisava buscar um velho amigo, alguém que fez seu coração acelerar muito mais do que o frenesi de suas aventuras na pirataria.

     Naquela tarde, Margareth caminhou pelas ruas de Newdawn até um destino que ela conhecia bem. No caminho, todos que passavam por ela falavam sobre Leonard com gratidão, feliz com suas palavras de esperança, isso a deixou ainda mais abalada. Foi pura sorte ter escolhido sair de casa com um sobretudo e um chapéu grande o suficiente para mascarar seus sentimentos, ela não queria parecer desesperada quando chegasse ao museu.

     O salão do museu estava como sempre esteve mas agora tudo parecia novo. Wes sempre demonstrou um certo grau de perfeccionismo relacionado com o empreendimento de sua família, e perder aquele vaso foi o gatilho necessário para lhe fazer trocar tudo de lugar, tentando camuflar o vazio da ausência daquele item destruído.

     Wes estava vestido com roupas casuais, limpando o vidro de um mostruário de livros antigos com uma flanela e um borrifador, mas logo reconheceu os passos leves e hesitantes de Margareth quando ela caminhava pela exposição.

     — Vê se não quebra nada dessa vez — Wes disse sem lhe dar atenção, concentrado na tarefa de limpar as manchas no vidro — Agora que você já tem o seu querido diamante acho que não tem mais necessidade de voltar aqui.

     — Eu só quero conversar com alguém de confiança — Margareth respondeu, observando as joias egípcias expostas num manequim.

     — E desde quando você confia em mim, Maggie? — Wes a encarou quando caminhou para limpar a caixa de vidro que protegia uma espada de cristal esverdeado.

     — Maggie... Ninguém mais me chama assim desde que éramos crianças, ninguém além dele — Margareth secretamente estava implorando pela atenção de Wes, que só respondia com indiferença — Wes, eu preciso te falar uma coisa importante — Ela se aproximou e levantou a voz levemente — É sobre Leonard Roberts.

     Wes finalmente tirou os olhos do vidro e a encarou com interesse. O jovem aventureiro era um daqueles que acreditava na teoria de que as últimas ações de Leonard faziam parte de um golpe. Wes a encaminhou para um lugar mais reservado, um pequeno escritório nos fundos do museu, onde Margareth lhe contou sobre seu envolvimento com Leonard, suas últimas descobertas e sobre as pessoas que Leonard mantinha presas no Palácio Ministerial enquanto saboreava o prazer amargo de uma xícara de café. Por um instante, quando Wes se comprometeu a encontrar uma saída e comentou que seria mais fácil junto de Ed, mas mesmo sabendo sobre a fuga do herdeiro legítimo, Margareth permaneceu em silêncio quanto a isso.

     — Olha Maggie, quero agradecer muito por essas informações — Wes disse quando Margareth terminou sua narrativa — Juntos poderemos fazer justiça.

     — É, você tem razão — Margareth remexeu no seu café já frio com uma pequena colher, enquanto era tomada por medo e preocupações. Seu coração dizia que ela estava no caminho certo, mas não conseguia parar de pensar que, independente do que ela fizesse, sua vida estava em risco.

     — Tá tudo bem?

     — Tô meio receosa de voltar para o meu papel como primeira-dama — Margareth o encarou com seu semblante triste, agora suplicando por um salvador — Eu até gostava do Leonard, de verdade, mas agora só sinto medo dele. Tenho medo do que ele possa fazer comigo se descobrir que te contei tudo isso.

     — Não precisa se preocupar — Wes inclinou sua cadeira para trás e abriu uma gaveta, de onde tirou um envelope amarelado com o carimbo oficial dos aventureiros — Eu vendo passagens de refúgio para algumas pessoas que precisam sumir por um tempo e que podem pagar por isso. Quero que fique com uma delas, nem precisa me pagar.

     — Wes, eu...

     — Eu insisto — Wes a interrompeu antes dela poder falar qualquer coisa — É uma passagem só de ida, é a sua chance de recomeçar, ter uma vida nova num novo lugar. Acho que é o mínimo que posso fazer pra te deixar segura.

     Margareth pegou o envelope nas mãos e o observou por um bom tempo enquanto o segurava com força. Ela não via só um pedaço de papel com outros papéis dentro, ela via esperança. Margareth agradeceu com um singelo "obrigado" e um sorriso sincero no rosto.

     — Melhor se apressar. O aerobus sai às sete... — Depois disso, Wes explicou o que ela deveria fazer quando desembarcasse, e todo o processo para conseguir uma moradia, documentos falsos e uma conta corrente com dinheiro suficiente para se estabelecer por um tempo.

***

     Apesar do cansaço provocado por sua fuga, Margareth não dormiu naquela noite. Sempre que parecia agarrar no sono ela acordava de súbito e olhava em volta com medo, imaginando que a qualquer momento Leonard poderia surgir no seu novo abrigo. Esse surto de ansiedade durou a noite toda, até o momento que ela desistiu de tentar dormir e sentou-se na cama, assistindo a escuridão se dissipar aos poucos na aurora de um novo amanhecer.

     Por algum motivo, Margareth começou a pensar sobre todos os papéis que ela já encenou nessa vida. Primeiro ela foi Maggie, a criança mimada e irritante, a jovem herdeira de uma fortuna, depois foi a adolescente rebelde e a garota devastada, sem rumo, em seguida ela assumiu o papel de uma trabalhadora em busca de justiça, passando brevemente pelo papel de assistente de produção, faxineira e atendente de telemarketing, e então veio a Margareth pirata, a criminosa obsessiva, depois veio a primeira dama e agora a fugitiva. Margareth já foi muitas versões de si mesma, mas nenhuma era de fato a verdadeira, essa ela nunca chegou a conhecer. Ela só sabia que, no momento, deveria ser Brisa, uma vendedora de flores em Manifesto.

     O despertador em forma de girassol posto ao lado da cama começou a tocar, fazendo Margareth se levantar de um pulo. Após se aprontar para seu primeiro dia na nova vida, Margareth decidiu fazer um chá calmante para acompanhar seu café da manhã, ela ainda estava muito nervosa. Gritos estridentes chamam a sua atenção e a assustam, acompanhados com o som de aviões sobrevoando a cidade a toda velocidade, fazendo-a derrubar a xícara de chá. Alguma coisa muito estranha estava acontecendo na cidade.

     Margareth correu para fora de sua casa e se deparou com um verdadeiro inferno. Manifesto estava em chamas! Labaredas flamejantes consumiam a cidade, espalhando as chamas através de explosões nos grandes prédios cobertos por um denso manto vegetal. O verde da cidade rapidamente se reduziu a cinzas. Pessoas de todos os tipos e idades corriam pelas ruas, algumas tentando inutilmente conter as chamas com extintores de incêndio e baldes de água, enquanto outras se rastejavam com ferimentos, queimaduras ou mesmo com seus corpos em chamas. Uma onda de desespero se espalhou pela cidade em meio aos gritos e lamentos, juntamente com rajadas disparadas pelas armas de soldados com trajes térmicos e lança-chamas que marchavam em busca daqueles que ainda lutavam para sobreviver.

     Já amedrontada por aquele cenário inesperado, a fugitiva olhou em volta e encontrou a origem do terror. No céu, aviões negros sobrevoavam com pressa, lançando mísseis e bombas incendiárias na cidade. Havia muitos deles, e mais pareciam chegar a cada minuto. Em suas asas, a figura do tamanduá se destacava. Só então ela percebeu onde os armamentos vistos no dia anterior no porto foram parar, todos estavam lá, destruindo a cidade verdejante e massacrando seus habitantes.

     Calafrios percorreram pelo seu corpo e lhe paralisaram, sem reação ou instinto de sobrevivência. Margareth foi derrubada no pavimento da calçada quando um grupo de manifestinos passou correndo por ela, e uma figura encapuzada, vestida com um longo manto roxo, aproximou-se na intenção de lhe ajudar a se levantar.

     — Vem! — A pessoa oculta disse, puxando Margareth com seus braços. Mesmo com esforço ela não conseguia identificar quem era, o capuz cobria completamente seu rosto. Tudo que ela pôde perceber foi o fato de se tratar de um rapaz jovial — Temos que sair daqui!

     — O que está acontecendo... — A interrogação de Margareth foi interrompida por um susto. Seu salvador encapuzado havia enfiado uma faca de lâmina longa em sua barriga com um golpe abrupto.

     — É isso o que fazemos com traidores, Maggie! — O capuz foi retirado, revelando o assustador sorriso cínico de Max Williams.

     Os olhos de Margareth se arregalaram, o rosto de Max se contorceu num sorriso amarelado e mais golpes foram desferidos. As pernas de Margareth fraquejaram e ela caiu numa poça de sangue, ainda agarrada no manto de Max, sentindo suas últimas forças vitais se esvair lentamente de seu corpo, e ela ainda encarava Max Williams, que observava com admiração a beleza mórbida da cena.

     Em instantes, não existia mais Manifesto. Não existiam mais jardins, florestas urbanas e esperança. Tudo foi substituído por uma gigantesca bola de fogo suspensa no céu, que em breve se desmancharia numa chuva de cinzas e destroços. Ninguém sobreviveu para entender o que diabos havia acontecido.

     Após isso, as coisas começaram a mudar em Newdawn quando as nuvens negras do autoritarismo tomaram conta da cidade. O discurso de Leonard ganhou força nas rádios, repetindo sempre as mesmas mentiras, seu rosto estampou todas as telas, observando seu carisma iludir a mente fraca de seus apoiadores, e seus soldados marcharam pelas ruas com novas armas e novos uniformes, mantendo a ordem daquilo que o ministro principal decidia ser certo e errado. A vida em Newdawn se tornou uma canção distorcida, onde Leonard era o maestro que conduzia a melodia rumo a tons caóticos inimagináveis, e os ouvintes nada sabiam das investidas terroristas acobertadas por sorrisos e falsas esperanças.

***

     Wes se debruçou sobre o balcão do bar, escondendo seu rosto entre os braços e chorando ao ponto de soluçar. Era impossível não remoer aquela culpa, ele poderia ter enviado Margareth para qualquer lugar, ela podia ter ido para Myth ou Senna, ou para cidades menos importantes, mas Manifesto sempre pareceu ser a melhor opção.

     Ao seu lado, Cornelius pensou no que dizer, procurando uma forma de consolar o amigo, mas nada de útil veio a sua mente além da tristeza e indignação. Como uma tragédia dessas aconteceu e ninguém soube de nada? Como aquela ação, uma verdadeira afronta aos tratados de paz do novo mundo, não estava causando revolta em ninguém além deles? Pensando bem, depois de tudo o que Frankie havia lhe dito, não era de se admirar, esse tipo de desastre aconteceria mais cedo ou mais tarde, e saber a verdade por trás das injustiças só lhe transformaria num fardo ainda mais pesado de suportar.

     Nesse momento, seu comunicador tocou. Na verdade, todos os comunicadores presentes no local tocaram ao mesmo tempo, mas quando seus proprietários atenderam, nada foi ouvido além de uma estranha interferência e do som de estática. Porém, Cornelius conseguiu captar algumas palavras.

     — A... Ed... Baixo... Yara... Ouvindo... Perigo... Nard... Tudo... Re... Ed... Yara...

     — O que é isso? — Wes perguntou com curiosidade, atento às palavras ditas por aquela voz robotizada.

     — Parece que é uma mensagem fora de sintonia. O comunicador capta a mensagem mas não reproduz corretamente na configuração inicial — Cornelius respondeu, pensando por um momento — Deixa eu testar uma coisa...

     No teclado do aparelho, Cornelius registrou alguns comandos enquanto girava o botão central. Aos poucos, a mensagem pareceu mais nítida, perdendo o aspecto robótico.

     — Alô, Cornelius, você me escuta? Aqui quem fala é o Ed, Edmond Roberts, falando diretamente daqui debaixo. Eu não estou morto, fui resgatado por Yara e estou voltando de alguma maneira. Se você estiver em Newdawn e estiver ouvindo essa mensagem você está correndo um grave perigo. Foi o Leonard, ele conseguiu, mas isso não vai acabar assim, eu prometo voltar e resolver tudo, mas até lá você precisa se esconder. Repito, aqui quem fala é o Ed e eu estou em Yara.

     Sem dúvidas era a voz de Ed, e, apesar do tom de urgência, Cornelius encheu-se de determinação e esperança.

     — Pode ser uma armadilha — Wes sugeriu.

     — Não, eu tenho certeza que é do Ed. Nós temos uma linha privada — Cornelius levantou-se do banco no balcão — Eu preciso ir.

     — Espera! — Wes tentou impedi-lo, mas Cornelius já havia saído do bar às pressas.

***

     Cornelius voltou para casa e começou a embrulhar algumas coisas numa mochila velha. O pêndulo de um relógio foi puxado, revelando mais uma passagem secreta por trás da parede coberta por relógios. A passagem era uma espécie de túnel levemente inclinado para frente, com uma escada para servir de apoio. Na correria para se arrastar pela passagem, Cornelius quase esqueceu da caixa que Cérebro havia lhe presenteado. Talvez aquela fosse uma boa hora para abrir e ver o que tinha dentro, mas não havia tempo a perder, seu amigo Ed estava lhe esperando.

     Do lado de fora, buracos redondos foram abertos mecanicamente em torno da casa, de onde saíram lâmpadas amarelas de tubo e sirenes. O barulho chamou a atenção dos guardas e dos poucos transeuntes, que assistiram confusos a casa se desdobrar em três pedaços distintos que se separaram, arrastando-se para a frente. Por sua vez, a protuberância azulada que se projetava do teto não saiu do lugar. Na verdade, nunca se tratou de uma ponta ou de um adereço arquitetônico, era o nariz de uma nave disfarçada nas entranhas da casa, um grande dirigível com formato semelhante a um projétil, ou melhor, a um tubarão.

     — Aguenta aí, Ed! Já tô chegando! — Cornelius disse para si mesmo, sentado diante do painel de controle da nave e se preparando para a decolagem.

     Os motores foram ligados e a aeronave decolou num impulso que cobriu a rua com uma densa fumaça. Em instantes, o tubarão aéreo e metálico acelerava pelos céus de Newdawn enquanto a casa retornava ao seu formato padrão, como se nada tivesse acontecido, mas agora com um buraco no meio. Logo que a cidade ficou para trás, Cornelius corrigiu a trajetória e disparou na direção onde Yara deveria está, mas alguma coisa deu errado. Uma estranha vibração agitou a nave causando solavancos agressivos. Cornelius só percebeu que foi atingido por alguma coisa quando viu os circuitos falharem e seu veículo voador perder altitude bruscamente.

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