ADONIS
Dou um passo, depois mais outro, e outro. O espaço em minha volta se distorcia exponencialmente para dar lugar a uma planície de mato enferrujado, algumas árvores nuas enegrecidas, e ao fundo uma construção trivial e deteriorada. Ainda mais ao fundo, tão desfocada pela distância, havia uma torre.
«Bem-vindo, espero que aproveites nossas regalias», uma voz infantil destimbrada ressoava em minha mente; ao procurar em volta vejo uma espuma amarelada pousada num galho alto. Tinha uma forma humana abstrata e deformada que partiu numa velocidade tal que gerou uma ventania instantânea antes que eu pudesse replicar. Neste momento, a torre distante badalou, iniciando a contagem para a primeira hora, uma nota nefasta.
Limitado como estava, sem nada além das roupas e um telemóvel morto, tomei a decisão que me parecia mais sensata e caminhei em direção à construção. Não percebi a passagem do tempo; o que me pareceu alguns segundos foram na verdade sessenta minutos, e a torre marca o início da segunda hora. Outra figura surgia, de cor violeta e uma suave voz feminina «Estás perto, satisfatoriamente perto. Irás amar o que te espera lá dentro», e fugiu com a mesma velocidade.
Partindo da construção, surgiu uma cerca branca não muito alta que formou um círculo com aproximadamente um quilômetro de raio em volta, e a torre anunciou a terceira hora. Depois destas, mais duas figuras apareceram, uma vermelha e outra verde, respetivamente, sempre fazendo comentários ininteligíveis; e a torre permanecia badalando a mesma nota a cada hora. Continuei a caminhar, e como estava já bem perto, me escorei em uma das árvores para descansar, observei a quinta figura – acastanhada desta vez – passar lentamente diante de mim enquanto me encarava com olhos inexistentes. Fiquei ali até a próxima hora, e agora de cor púrpura, passou outra também lentamente, entretanto não parecia me notar.
Dei mais um passo, depois mais outro, e outro, e alcancei a porta de madeira corroída da construção – a torre badalou, se passaram sete horas. Adentrei e encontrei nada, escuridão e silêncio consumiam o lugar, o ar gélido fétido me provocou calafrios; na parede oposta, um par de olhos com um brilho alaranjado me fitava. Supus ser uma criatura enorme dada a altura em que estavam os olhos, fazendo meus sentidos se aguçarem. Chutei a porta a fim de parti-la e consegui um pedaço pontudo de madeira que me serviria como arma, caminhava meticulosamente até a criatura, e à medida que me aproximava, começava a se afigurar, mas antes que pudesse ser completamente perceptível sou interrompido por um baque que veio por trás, ao me virar bruscamente e sou confrontado com outro nada... apenas... ondulados... carmesim.
«Cain...Cain, levante-se, vamos!» ouço uma voz áspera.
«Ele está completamente embriagado, não consegue caminhar», disse uma segunda voz, mais grave.
Aos poucos minha visão se recompôs e pude assimilar duas cabeças excessivamente próximas. Me endireitei num sobressalto indagando «É carmesim...! Vistes o carmesim ondulado? Hic.»
«Caminha calado, seu crápula. Theodore, vamos levá-lo para minha casa, é mais perto. Liga o carro», logo fui arrastado forçadamente, combalido demais para reagir.
Desperto devido a uma claridade ofuscante num ambiente familiar, era a casa de meu amigo, Yan. Tento recordar penosamente o dia anterior, desde a hora em que saí de casa para ir ao bar, quando fui expulso enquanto bêbado de lá, das figuras humanas abstratas e os ondulados cabelos carmesim. Depois de um esforço também me lembrei dos meus francos amigos a me resgatarem. Levanto-me atordoado por uma cefaleia intensa e chego à sala-de-estar onde eles estavam, Yan e Theodore serviam-se de um chá exalando fumaça.
Assim que me notam, uma seriedade anômala domina seus semblantes. Yan se aproxima, me oferece a xícara que acabara de servir e me direciona ao sofá. Após nós os três nos acomodarmos, iniciei a conversa: «Desculpem por ontem. Agradeço por sempre me ajudarem desta forma, mas não posso prometer que irei parar. É doloroso demais.»
«Nós sabemos, Cain», é claro que sabiam, eles acompanharam tudo. Quando minha esposa me traiu e, depois que meu chefe morreu em um acidente e eu perdi meu emprego, reapareceu grávida. Ela morreu durante o parto, o desgraçado cúmplice do adultério me cobrou pela vida da criança através de ameaças maçantes, daí quebrei um braço numa contenda e perdi meu carro. Em todos estes momentos, eles estavam lá, eu era realmente muito grato.
«Cain, precisamos que nos conte detalhadamente o que fizeste ontem», continuou Theodore, um homem alto com uma voz grave, barba e cabelos negros. Respondi naturalmente, bebi até não me aguentar e vaguei sem rumo até eles me encontrarem, o decurso normal de um odre. Terminado meu depoimento, eles se entreolham sem disfarçar a tensão que sentiam.
«Cain, escute bem, onte-», Yan, interrompido pelo som da campainha, demonstra uma intensa inquietação, discrepando de sua natureza usualmente calma. O homem na porta era um policial que parecia habituado com o lugar dado a forma casual em que adentra a casa de meu amigo. «É este o homem?», pergunta me olhando com um desprezo evidente.
«Sim, sim, é ele» responde Yan, com uma gota volumosa de suor escorrendo em sua testa.
O cenário que se seguiu foi tão frenético e caótico que não pude raciocinar sobre a situação em que estava. Na delegacia local, um detetive de aparência robusta me interrogava sobre a morte de sete pessoas que foram assassinadas na noite anterior, seus corpos foram descobertos no edifício decrépito onde fui encontrado.
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