Instinto de herói
Mais uma vez eu deixava a faculdade com o relógio marcando às sete da noite, todavia não era um grande problema, pois ajudar o reitor com seus projetos nunca deixava de ser gratificante.
As ruas estavam tão desertas como sempre e assustadores estrondos ecoavam no céu, abrindo passagem para colossais ondas de nuvens negras. No mesmo instante um calafrio percorreu meu corpo ao tocar a lateral da mochila e não encontrar o guarda-chuva. Eu havia o esquecido em cima da bancada e uma terrível tempestade estava a caminho.
Tão rápido quanto um tiro eu disparei pela calçada, uma suave chuva caía das nuvens, e instantes depois uma forte rajada de vento passou pelo meu corpo, seguida de um poderoso estrondo. Um barulho assustador que invadiu os tímpanos como um turbilhão estridente.
E de repente caiu uma enxurrada das nuvens, sem se quer eu ter tempo de reação entre os acontecimentos. O frio agora era dez vezes mais agonizante, até mesmo minha expiração se condensava em uma fumaça branca.
Ainda por cima era tarde da noite, restando-me apenas a escolha de voltar para casa iluminado pelos postes, em uma rua onde até mesmo o vento passava com cautela. Mas nem mesmo o perigo daquele local retirou de minha cabeça aquele estrondo. Até mesmo o céu estava diferente, alguns lugares pareciam pulsar em um forte azul que se esvaia em um leve verde.
Provavelmente tinha algo naquele café... ou eu devo estar ficando louco. É melhor eu chegar logo em casa para poder dormir.
Vários homens e mulheres com os olhos pregados nos monitores de analise, digitavam incansavelmente diversas linhas de códigos para o Reator Atômico. Estavam em mesas que circulavam uma plataforma elevada, onde dois homens terminavam os preparativos do teste. Eram Dante e Gabriel.
De repente um funcionário abriu as portas espessas de metal e subiu a escada para a plataforma. Um tablet era visto em sua mão.
— Preciso falar uma coisa com você, senhor.
— Não tenho tempo para isso — Dante respondeu rapidamente.
— É importante — Insistiu mostrando a gravação do corredor pelo tablet — Todos os homens do principal corredor do Reator desapareceram já faz um tempo. E encontrei uma lacuna gigante na gravação.
Porém Dante nem olhou para o tablet. Naquele dia o maior feito de sua vida estava na reta final: a criação do Reator Atômico. Um rombicosidodecaedro que tinha no centro um núcleo cubo de faces oscilantes: o Cubo de Runan. Foi criado por outro cientista já não mais presente. Dante apenas queria que saísse perfeitamente como o planejado, para que finalmente alcançasse sua tão almejada promoção. Ninguém poderia atrapalhar seu feito.
— Apenas esqueça isso, eles devem ter ido em algum lugar vadiar. De qualquer jeito vão ser demitidos mesmo. E se você não quer ser também, vá embora. São apenas erros de gravação.
O funcionário suspirou.
— Muito bem.
Gabriel, após analisar os dados do Reator, suspirou aliviado e se levantou com as mãos erguidas. Agora todos na sala tinham sua atenção focada na plataforma.
— Chegou a hora. Fiquem atentos a qualquer complicação — Olhou para Dante — Pode começar a gravar.
O homem direcionou olhar para uma câmera em sua frente, respirou fundo e falou com determinação:
— Dia 27 de dezembro de 2023, teste número dois do Reator Atômico.
Os dois colocaram suas mãos sobre as chaves de segurança e giraram-nas em sincronia. No mesmo instante o chão tremeu e todas as luzes do reator se ativaram.
— Sistema, qual a situação do Reator? — Dante perguntou, ansioso.
A inteligência artificial começou a processar as informações. Todos apenas conseguiam engolir em seco enquanto esperavam ansiosos por uma resposta. Até que...
— Reator Atômico em funcionamento. Rotação... estável. Partículas... estáveis. Velocidade de transformação... estável.
Um líquido escorreu de uma das saídas. Era o material esperado: Antimatéria Carregada. Um líquido azul com traços esverdeados.
Então todos pularam de suas cadeiras, gritando empolgados.
— Funcionou! Meu chefe vai ficar orgulhoso! — Dante anunciou com muita felicidade.
— Mas, senhor, está produzindo bem pouco — Gabriel cortou expectativas.
— Não há problema, aumente a produção então. Vou fazer o relatório!
Porém Gabriel mal pode modificar a operação quando um suor frio escorreu pelo pescoço. O homem encarava amedrontado o monitor de análise do Reator, com olhos arregalados. Os gráficos, que eram para estar em 50%, começaram a criar picos inesperados acima de 200%.
— Dante... Dante! O Reator começou a oscilar muito! Se continuar assim ele vai explodir!
— O Quê? — Franziu a testa e se assustou ao olhar o gráfico — Mas ele estava estável até agora pouco! Foi porque você aumentou a produção?
— Nem deu tempo de fazer nada!
De repente um barulho de emergência e uma mensagem invadiram os monitores.
— Perigo! Perigo! O Reator Atômico entrou em estado crítico, intervenção é necessária. — O sistema repetiu a mensagem, sem parar.
No mesmo instante a grande maioria da sala entrou em desespero. Esses correram pelo local em uma tentativa desalentada de fugir, mas todas as saídas foram seladas. Os poucos que se controlaram tentaram, com a ajuda de Gabriel, conter o reator, mas a máquina se colapsou muito mais rápido que suas mãos podiam digitar.
Todas saídas começaram a transbordar Antimatéria Carregada, cercando todos que estavam em um nível mais baixo.
— O Reator Atômico em colapso, um minuto para a explosão — E então começou uma contagem regressiva.
Dante, que quase mordia os lábios em desespero, apertou fortemente o ombro de Gabriel a procura de suporte:
— Não há nada que possamos fazer?
Gabriel parou por um momento. Ele tentou buscar em sua mente diversas maneiras de solucionar o problema, mas sua feição de desespero apenas piorava ao não conseguir pensar quaisquer solução. E ele sabia que não havia mais o que fazer. O homem engoliu seu medo e sua raiva e com muita angústia aceitou que seu fim estava próximo.
— O Reator já entrou em colapso... algo aconteceu com o Cubo de Runan.
Dante, desesperado e revoltado, gritou de raiva:
— Que droga!
— Dois... Um.
Então uma esfera azul com traços esverdeados saiu do Reator e expandiu até cobrir a base inteira. Todos que foram engolidos pela esfera de Antimatéria, sem exceção, foram desintegrados.
Após se expandir ao máximo, tocando até mesmo as nuvens, a esfera diminuiu até o núcleo do reator e, segundos depois, explodiu gerando imensas estalagmites azuis de Antimatéria Carregada por toda extensão do laboratório, também jogando e fundindo a mesma com a tempestade, deixando-a mais forte. Por fim um imenso estrondo ecoou por toda cidade.
Estava finalmente chegando em casa quando um barulho estranho me fez parar. Um baixo gemido de dor seguido por um desiludido pedido de socorro.
Rapidamente olhei em volta e, com uma certa dificuldade, avistei um brilho que piscava próximo a um poste. Era uma faca que cintilava na mão de um homem corpulento. Ele socava, espancava e cortava um homem velho, que aparentava ser de classe humilde. Um comparsa ajudava segurando o senhor indefeso.
Naquele momento, antes mesmo que eu pudesse reagir, meu corpo partiu em disparada na direção daqueles homens. E quando eu me dei contra, os bandidos me olhavam com feições assustadoras.
O frio congelante ainda me fazia tremer, mas mesmo com dificuldade eu forcei as palavras que se agarravam com a gagueira:
— E... ei! Dei... deixem ele em paz!
— Você quer morrer moleque? Vaza daqui. — O homem armado ameaçou.
— Eu n... não vou sair.
Ele balançou a cabeça incrédulo e disse algo para seu comparsa, que logo correu em minha direção, ele estava preparado para atacar. Não hesitei ao assumir a posição de combate, ajeitando minha base e posicionando a mão esquerda na frente do rosto e a direita ao lado da cintura. Observei cada passo e quando ele estava na minha frente, eu apenas precisava defender. Porém seu punho foi mais rápido e me acertou duas vezes no rosto. Acabei sendo forçado a dar alguns passos para trás enquanto meu nariz sangrava.
Tentei me recuperar da pancada enquanto ouvia o deboche daquele homem, foi difícil mantê-lo em minha visão, pois a mesma estava turva e embaçada. Eu ainda tentei dar sinal de que reagiria, com expectativas de dar um gancho de direita, mas, antes que pudesse tentar, meu corpo deu de frente com o chão.
Naquele momento o resto das minhas esperanças se esvaiu. Minha mente me bombardeava com afirmações autodepreciativas. Então o sujeito desarmado se aproximou lentamente para me finalizar.
Eu tinha que agir. Lutei uma última vez para me levantar com os braços, porém eles mal conseguiram sustentar meu corpo e novamente caí sobre o asfalto molhado. Eu não era o suficiente para salvar aquele homem... eu era apenas um garoto, não podia fazer a nada...
Quando meus olhos se fecharam, escutei uma voz muito baixa surgir em minha cabeça. Uma voz que pedia para continuar lutando, mesmo que sem forças, como uma última brasa que remanescera das cinzas de uma fogueira. Tal brasa que começava a se espalhar e levantar uma poderosa chama. Esta estranha sensação apenas se intensificava, e a cada segundo eu conseguia sentir o meu corpo lutando para levantar.
Minhas pernas bambeavam e meus braços mal conseguiam se erguer, mas meu olhar confiante não desapareceu.
Os homem que me golpeou não mostrou reação além de um tédio, queria logo que eu morresse para se retirar do local, então o homem tirou uma faca da cintura. Nada passou pela minha cabeça, apenas conseguia ouvir aquela voz gritando cada vez mais alto. E quando o homem já dava os últimos passos para me finalizar, um raio caiu em mim.
O forte clarão ofuscou nossas vistas e o barulho ensurdecedor quase estourou tímpanos. Porém não senti dor nem medo, apenas uma vontade ainda mais forte de lutar. As minhas pernas pararam de tremer e eu senti um calor muito forte passando pelas minhas veias. Minha pele estava coberta por uma energia azul-esbranquiçada, que logo se dissipou.
Aquele homem, que instantes atrás não esboçava reação, agora podia me olhar atônito.
Com um impulso gerado pelo meu pé direito, fui para cima do homem desarmado, mirando um soco certeiro no meio de seu estômago. Ondas de eletricidade saíram do meu punho, transferindo-se para o corpo do homem que não teve reação ao ser arremessado pelo impacto.
O comparsa, que apenas observava boquiaberto, sentiu um calafrio percorrer a coluna ao me ver olhando em sua direção. Bastou dar um passo a frente que o homem não perdeu tempo ao fugiu para o lado oposto, deixado o velho para trás. Então segui para socorrê-lo.
O pobre homem estava sangrando, seu nariz quebrado e, para seu azar, diversos machucados e cortes pelo corpo. Em seus braços ele segurava uma pequena pasta que parecia proteger com todas as forças.
Ajudei o velho a se levantar e o apoiei no poste que nos iluminava.
"É definitivo: hoje está uma loucura."
Peguei meu celular, torcendo para que ainda estivesse funcionando, mas nada aconteceu. Ainda verifiquei diversas vezes, mas o aparelho foi torrado pelo raio e ainda fedia a queimado. Porém logo tive outra ideia: talvez o homem que quedei tenha um. Procurei nos bolsos do sujeito e encontrei um Nokia velho.
E quando liguei não foi uma surpresa ver a logo da empresa, afinal era um Nokia, o negócio é indestrutível!
Com uma ligação para a emergência eu expliquei a situação, sem dizer o que fiz. Disse que apenas passava pelo local e vi dois homens caídos e que um estava armado. Logo uma ambulância foi acionada e também pedi uma viatura para o agressor. Por fim segui ao velho que me chamava com um sorriso:
— Muito obrigado, meu jovem, você não sabe o favor que acabou de me fazer — Falou com uma voz rouca — Foi muito corajoso de sua parte.
— Talvez louco seja uma palavra melhor.
O velho deu uma risada, mas logo parou ao tossir.
— Um louco corajoso — O homem se esforçou para levantar seu braço machucado e apertou meu ombro, estava prestes a desmaiar — Algum dia te agradecerei, meu jovem... Eu posso saber o seu nome?
Sorri levemente para o velho.
— É Wayne, senhor.
Ele sorriu uma última vez e antes de desmaiar balbuciou algo quase inaudível, o que seria o preludio de seu nome "Mike B...". Então foi possível escutar uma sirene: a ambulância chegou. E depois que o homem foi levado, segui meu rumo.
Pensei em várias coisas no caminho, mas nunca chegava em uma conclusão, era tudo tão surreal que mal havia digerido a informação ainda.
Finalmente cheguei em casa e o céu já estava normal. Não pude perder tempo ao jogar as roupas ensopadas no varal. Então troquei de roupa e me esparramei na cama. Já passara da meia-noite e estava muito cansado, também não havia muito o que fazer. O celular estava torrado e as roupas estavam secando. Além disso, tinha que descansar para amanhã, mas o fato de ter socado um homem com aquela força e ainda ter saído ondas de eletricidade da minha mão, deixou-me incomodado.
Realmente estaria sendo agraciado por aquilo que tanto sonhei? Acordar amanhã sem poderes não vai ser uma surpresa. Olhei bem o meu punho, que estava levemente machucado. Se continuar assim amanhã...
E também havia uma sensação de ter esquecido algo, mas o que seria?
No fim o cansaço acabou me levando ao sono.
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