A balança entre a felicidade e a raiva
Passou-se uma semana desde o dia que salvei Lara e ela se mostrou completamente diferente do que imaginei. A garota estava completamente ingênua, como se não se lembrasse de muitas coisas. Isto se mostrou bem forte quando eu a levei para comprar roupas, mesmo que fosse em um brechó, sendo o máximo que meu escasso dinheiro podia pagar, Lara ficou extremamente encantada e feliz de receber aquelas roupas. Muitas tinham falhas de costura ou uma cor mal feita, tampouco de boa qualidade, mas mesmo assim seus olhos brilhavam para cada peça.
Durante os dias ela era bem animada. Cantarolava qualquer coisa que achava minimamente legal, como no dia que ouviu uma música eletrônica e ficou reproduzindo as onomatopeias o dia todo. Porém nem tudo era flores, pois todas as noites ela teve crises de febre, um suor incontrolável, coração acelerado e hiperventilação de seus pulmões. Se repetia sempre alguns minutos após cair no sono. Com certeza que não era algo normal, afinal a única vez que isso não aconteceu foi quando ela dormiu ao meu lado.
Agora na cozinha, preparando um café, ouvi as risadas de Lara que assistia a um desenho na televisão. Mesmo após aquelas noites de sono ela agia normalmente ao acordar, talvez fosse melhor nem contar.
De repente uma mensagem chegou ao meu celular. Era Jack pedindo para ir na cafeteria. Já estava na hora também, pois ele praticamente desapareceu depois que salvamos Lara. E ela logo apareceu se espreguiçando na porta da cozinha.
— Vamos em algum lugar hoje? — perguntou ansiosa.
— Uma pequena passada na cafeteria.
Lara saltitou pelas ruas durante todo o caminho. Olhava admirada para todos os locais e não deixou de acariciar todos os cachorros caramelo e gatos cinzas que passaram pelo caminho.
Finalmente chegamos na cafeteria quando o céu negro se tornou azul. O local estava mais movimentado, o que não era uma surpresa, afinal nos últimos dias uma guerra entre gangues destruiu diversos comércios próximos. Alguns Alterados participaram da batalha e foram decisivos para a mesma.
Boatos diziam que um deles possuía supervelocidade e o outro era desnorteante. Dois Alterados que cada vez mais adentravam ao submundo de MoonLight.
Neitam e os outros policiais apenas chegaram a tempo de prender os poucos feridos que ficaram para trás, e isso apenas reforçava sua visão de que todo e qualquer Alterado deveria ser preso. E até o momento ele cumpria a palavra com maestria: mais de vinte Alterados de todas as idades já estavam atrás das grades.
Uma pequena parte do governo ainda tentou diversas empreitadas para impedir a ordem de Neitam e Jason, mas no fim nada pôde ser feito. Diversos integrantes do próprio governo estavam tranquilos quanto a decisão e os grandes empresários não poupariam esforços para abafar aqueles com a intenção de libertar "possíveis riscos para seus negócios".
Lara logo seguiu alegre pelo comércio, a fim de ver tudo que sua vista alcançava, até que parou nas cadeiras do fundo, onde havia várias placas com pratos que a mesma nunca saboreou.
— Você demorou para chegar — Jack disse.
— Precisei passar numa loja antes.
O homem não pareceu acreditar, mas seu olhar não deixou de focar em Lara, que coçava a cabeça enquanto olhava para o cardápio. Parecia bem indecisa.
— Tem certeza que você vai cuidar dela? — Sussurrou — De fato é assustadora sua mudança, parece até uma criança, mas você não pode esquecer que ela era um assassino, ela pode ter algum surto ou algo assim.
Não podia esperar menos de Jack. Mesmo após afirmar que a garota havia mudado, continuava com uma pulga atrás da orelha, afinal Jack desconfiava até mesmo do ar a sua volta.
— Não dá Jack, não posso abandoná-la... E também dá para perceber que sua essência é assim, a garota apenas estava acorrentada a uma máscara que não lhe pertencia.
Jack fez um barulho desconfiado e encostou bem as costas no sofá, de braços cruzados.
— A decisão é sua.
Confirmei com a cabeça.
— A propósito, por que você está constantemente neste lugar? — perguntei.
— É porque eu sou dono deste café, bem, não eu — Retirou uma identidade de seu bolso "Juan Carlos", a foto parecia um mexicano, com direito a bigode e tudo mais.
— Por que não me contou isso antes? — Reclamei com a testa franzida.
— Precisava realmente poder confiar em você, Wayne. Posso dizer que confio um pouco mais.
— Um pouco mais?!
De repente Lara apareceu do meu lado. Ela mordia os lábios e estava com um cardápio em mãos.
— O que é pão de queijo? — Perguntou.
— É uma iguaria muito deliciosa que é preenchida com queijo.
— Eu posso comer? — Ela estava esperançosa. As mãos segurando fortemente o cardápio e os belos olhos azuis brilhando com a oportunidade de comer algo que nunca tinha experimentado.
— Claro que pode!
Lara quase pulou de felicidade e me abraçou como se tivesse ganhado na loteria.
— Obrigada!
Minutos depois foi possível sentir o cheiro do queijo derretido se aproximando com o café ao lado. Jack aproveitou para comer algo também.
Esse sossego que estávamos tendo agora era tão bom. Uma irmãzinha que quase chorava de emoção ao saborear o delicioso queijo e Jack, que esperava o momento exato, nem tão quente nem tão frio, para abocanhar seu pedido.
Em momentos como esse eu até esquecia do acidente... até me sentia... em família.
De repente escutamos o sino da porta tocando. Mesmo que tocasse por diversas vezes com os clientes que transitavam, eu não deixava de instintivamente olhar, mesmo que de relance, e foi um choque ao perceber que a Clara estava entrando na cafeteria. O cabelo amarrado e um sobretudo desabotoado.
Meu coração parou naquele momento e o ar em meu peito se esvaiu. Clara, que me abandonara aos 15 anos agora tinha retornado. Uma forte vontade de correr até ela e abraçar como se não houvesse amanhã me banhou, mas eu hesitei. Como dois leões lutando, uma outra sensação começou a aparecer, um pensamento de ódio que aos poucos sobressaía. "Ela te deixou" dizia uma voz em minha cabeça "Ela queria te sequestrar" a voz reforçou "Ela não te ama".
O meu peito apertou ainda mais quando Clara parou em frente a mesa, porém mal conseguiu olhar nos meus olhos.
— Wayne... eu sei que você está com raiva e tem toda razão disso... eu entendo... mas por favor, permita que eu possa me explicar.
Então uma das sensações ganhou.
— Eu não tenho nada a ouvir.
Jack normalmente apenas observaria, mas por algum motivo, ao ver o desespero que surgiu nos olhos de Clara, sentiu a necessidade de dialogar.
— Wayne, não é assim que a vida funciona. Você tem que fazer as pazes com ela. Principalmente por que ela salvou a sua vida duas vezes.
Mas as palavras de Jack soaram como um zumbido em minha cabeça, estava borbulhando de raiva, tal ira que aumentava a cada vez que olhava para Clara.
E antes que ela pudesse dizer mais algo, puxei Lara pelo braço e segui para outro lugar na cafeteria. As pessoas que tomavam seu café da manhã no local observavam confusas.
Clara logo se sentou ao lado de Jack, com olhos cheios de lágrimas.
— Você vai ter que dar um tempo para ele — O homem tentou acalmá-la.
— Eu sei, mas... isso me machuca tanto
O homem tentou formular a melhor frase em sua cabeça, por mais que isso rendesse alguns segundos de silêncio.
— Essas poucas semanas que passei com Wayne me fizeram descobrir muitas coisas sobre esse garoto, e uma delas é sua teimosia que balança tanto para o bem quanto para o mau.
Ela assentiu tristemente.
— Talvez o tempo me ajude — Clara se ajeitou no sofá — Eu agradeço por me deixar seguir com você, não sei para onde iria se não tivesse me dado abrigo... Sabe eu não fiz bem ao mundo, sei que machuquei muitos inocentes e isso me destruía todos os dias... — A mulher apertou a blusa com a mão, como se sentisse uma dor no peito — Porém é tão avassalador receber essas palavras... só que é ainda pior ficar longe dele.
— Clara, pelo menos você teve um motivo... Você não foi uma vilã, ajudou-me quando eu precisei e por mais que hoje em dia eu não consiga compreender aquele calculo, sei que você foi crucial — Aproximou-se de repente e sussurrou — E não vou mentir que também preciso das suas capacidades.
— Não é para controlar a Lara, né? — Recuou levemente.
— Não — Jack respondeu, trazendo alívio a Clara — Você é a pessoa que mais estudou o AMC e o AMSC. Wayne, por mais que esteja "controlando" a sua eletricidade, ainda não tem domínio total dos seus poderes. Ele é um Experimento Promissor e de alguma maneira recebeu um poder muito grande, preciso que o ajude a evoluir. O garoto é nossa melhor chance contra os Cinco da Lupus, bem, agora são quatro, mas ainda são perigosos, e Clarisse é outro demônio. Você pode fazer por ele mais do que eu consigo.
— Isso é curioso... — Ambos olharam para mim, que estava fazendo cócegas na Lara. A mesma gargalhava histericamente e se contorcia, tentando fugir das cócegas e assustando os pobres coitados que apenas queriam tomar seu café da manhã em paz — É apenas uma teoria, mas acho que o motivo da força do Wayne é a alta concentração do AMC. Ele deve ter recebido tanto que o fez equiparar a AMSC. Quando eu fiz o projeto para reduzir a potência, descobri que já não havia mais aglomerações limitadas, o AMC podia ser mantido e compressado o quanto alguém quisesse. Diferente do AMSC que não aglomerava além de um frasco. Ainda por cima uma próxima dose de AMC não seria fatal se dessem um intervalo de tempo, diferente do AMSC que é fatal a próximas doses.
Jack assentiu.
— Faz sentido... E quanto a Lara? Ela ainda pode ser um problema? Tem como deixá-la mais estável?
De repente Clara sorriu.
— Isso não será um problema.
— Por quê?
— Porque ela já está estável.
Jack pareceu surpreso.
— O Wayne virou uma espécie de "porto seguro" para ela. Lara de alguma forma vê nele o que ela via na 16. Por diversas vezes eu vi Lara antes do AMSC... era sempre cabisbaixa, mas sempre que a flagrava ao lado da 16, estava com um sorriso no rosto... mas não era qualquer sorriso sabe... era pura felicidade, até parecia outra pessoa. Mas quando passava pelos demais sua feição era tão vazia quanto o fundo de um abismo. Então talvez enquanto ele estiver com ela, nada de mau acontecerá.
— De fato é mais seguro deixar ela grudada nele então?
— Sim, mas quanto ao Wayne, você vai precisar conseguir alguns equipamentos para mim, senão vai ser mais difícil analisá-lo. Eu preciso de ver os genes dele para interpretar as suas ramificações. Na Lupus eu os tinha, mas não quero compactuar mais com eles...
— O problema é que não tem como eu conseguir, aquelas peças são caríssimas — Mas Jack de repente pareceu se lembrar de algo — A não ser que já esteja analisado.
— Você está sugerindo Hackear o banco de dados da Lupus? Mas para quebrar o Azcore vamos precisar de estar no servidor... ele não está alocado com nenhuma rede, não dá para quebrar a distância.
— Essa é a ideia. Talvez eles ainda não tenham destruído o servidor, precisam de muito tempo para que Nora consiga mover seus dados.
Clara engoliu em seco, mas era a única chance.
— Então vamos lá.
Aproveitei que Jack saiu e comecei a preparar um café para mim e peguei um pouco das comidas que já estavam prontas. Creio que ele não sentira falta de uns vinte pães de queijo. Foi quando Lara, que estava brincando com os guardanapos, disse derepente:
— De onde você conhece a Clara?
Relutei em falar, mas respondi mesmo assim:
— Ela cuidou de mim um tempo depois que perdi as memórias, mas tudo que queria era me transformar em um dos soldados do Santiago.
— Entendi...
— Posso perguntar algo? — troquei de assunto antes que Lara pudesse fazer mais perguntas.
— Sim!
Apenas vê-la com um sorriso não era o suficiente para esquecer o que acontecia as noites. O jeito que ela estava suando... era como se estivesse presa em um pesadelo. Eu ainda não sabia ao certo se realmente contaria a ela, mas tinha de alguma maneira descobrir o que acontecia.
— Algo te atormenta?
O rosto de Lara mudou da água ao vinho. Seu sorriso lentamente se fechou e a cabeça baixou levemente.
— Bem... Minhas memórias estão um pouco bagunçadas, apenas me lembro de coisas que passei com a Luna e com você... Certas torturas e... — A garota se abraçou fortemente — As pessoas que matei.
Não soube o que dizer a ela. Deveria ser extremamente agoniante saber que matou diversas pessoas por capricho de sua insanidade ou por ordens. Eu apenas pude puxá-la e abraçar.
A garota apertou abraço de volta e passou alguns segundos, até que ela se afastou. O sorriso voltou ao seu rosto.
— Quer tomar café? — perguntei a ela.
— Café?
— Não sabe o que é?! — perguntei surpreso — Isso é uma afronta ao prazer da vida! Deixe eu te levar para um novo mundo!
Santiago, sentado em uma cadeira, esperava a chegada de Bombardeio em seu escritório no topo de um prédio bem vigiado. O homem batia levemente o pé contra o chão por diversas vezes e mexia o bispo entre seus dedos. Vira e mexe ele olhava para uma foto em sua mesa, de uma garota de longos cabelos escuros, que estava sobre um tabuleiro de xadrez. Ele levantava, olhava para o estádio da cidade por uma janela e voltava a se sentar.
De repente a porta se abriu com a chegada de Bombardeio. Santiago pareceu levemente aliviado.
— Creio que já tenha terminado — Santiago disse.
— Sim, as informações e os explosivos estão preparados. Apenas quero saber o que fará se eles sobreviverem... Bem, eu espero que sobrevivam... rasgar corpos mortos é meio brochante, eles não gritam.
Santiago não respondeu, apenas pegou o retrato para senti-lo em suas mãos e apreciá-lo de perto.
— Porém, por mais que eu odeie dizer isso, não seria melhor garantir que morrerão naquela explosão? — Bombardeiro insistiu em um dialogo — Clarisse já é um grande problema, e eu adoraria torturar aquela moça... Os músculos dela sendo rasgados devem fazer um som tão prazeroso!
Santiago negou com a cabeça, enojado.
— Jack para se vingar irá até o inferno se for necessário, e ele ainda é um homem inteligente. Não adiantaria gastar os poucos explosivos de maneira burra. Lidar com ele é um desafio. E ainda por cima tenho que chegar em GreenValley vivo... mas pode ficar tranquilo, você não ficará sem ter quem torturar — Devolveu o retrato a mesa — Volte amanhã que eu conseguirei mais bombas para você e te passarei o que fará com as informações que implantou.
Estava tudo muito calmo na base da Lupus. O vento soprava pelo vasto terreno desértico. Próximo ao duto não haviam mais guardas, o que por si só era um pouco estranho. Ou já moveram os dados, ou tem algum plano. E eles consideraram este fato. Santiago era um homem extremamente calculista, então todo cuidado contra ele era pouco.
Os dois entraram na construção tomando o máximo de cuidado possível. Não davam um passo sem antes verificar onde pisavam. Os corredores estavam vazios e as salas de câmeras desligadas. Não havia nenhum sinal de atividade no local.
Verificaram a maioria das salas, mas estavam vazias, apenas portando alguns equipamentos e as máquinas acopladas ao solo.
— Eles realmente deixaram a base — Clara falou — Não vamos encontrar nada nas salas, é melhor achar o servidor.
— Sim.
Depois de procurar por quase todo o local, eles acharam uma sala no fim de um dos corredores. Dentro da mesma tinha uma grande máquina com alguns vãos entre algumas sequências de discos rígidos acoplados. Em volta dela alguns grandes fios percorriam pelo chão. Estes terminavam em um computador que estava embaixo de uma mesa de pedra. Sobre ela encontraram um pequeno monitor desligado e empoeirado.
— Será que está funcionando? — Clara tentou ligar o monitor ao apertar o botão que estava nas costas do mesmo. E os aparelhos ligaram, seguidos de uma pequena luz verde que acendeu em cada disco rígido — Ótimo! Agora é só procurar pelos arquivos do Wayne!
Clara procurou cheia de felicidade por informações dentre as inúmeras pastas que estavam presentes: arquivos de missões passadas, novas e antigas bases, etc. Depois de procurar por um tempo, ela achou o arquivo com as minhas informações.
— Encontrei!
Mas Jack, por algum motivo, sentiu uma estranha sensação. Aquilo estava sendo fácil demais. Santiago não era burro para deixar tantos arquivos importantes para trás sem qualquer proteção: Nora o mataria. Deveriam ter diversos guardas protegendo aquilo.
Mas Jack apenas percebeu o que estava acontecendo quando era tarde demais.
— Isso é uma armadilha! — Ele gritou, porém não alertou a tempo de impedir o dedo de Clara. Ao abrir a pasta o monitor desligou e um baixo som reverberou, como se fosse uma trava abrindo: "clique."
— Clara, cuidado! — Ele rapidamente utilizou o Ultrarraciocínio e correu em sua direção, para tirá-la do local onde estava. Um forte calor preencheu a sala e quando Jack alcançou Clara, jogou-se com ela para fora do local. Um segundo depois o fogo de uma explosão rugiu ao atravessar a porta da sala, mas felizmente parou sem atingir nenhum dos dois.
— O que foi isso? — Clara perguntou sem ter tido tempo de raciocinar o ocorrido.
— Era uma armadilha, sabiam que eu ia voltar aqui — Jack respondeu enquanto levantava a moça — Programaram a bomba para explodir quando qualquer pasta fosse acessada.
Jack voltou à sala para verificar os destroços. A poeira que estava no chão e a fuligem da fumaça subiram ao ar, deixando-o quase irrespirável e fogo ainda queimava alguns componentes. Porém mesmo com a visão dificultada pela cortina de fumaça, Jack conseguiu visualizar um pedaço da bomba caído no chão.
— Não sei quem conseguiria fazer algo assim.
Mas Clara engoliu em seco quando algo veio à sua mente.
— Mas infelizmente eu sei, e se for quem eu estou pensando, estamos com um grande problema.
Após ter falhado na missão e retornar para cafeteria, Jack e Clara se depararam com o estabelecimento de pernas ao ar. Os bancos estavam virados, algumas mesas com estacas da Lara e com a minha pessoa batendo de leve nas costas dela, a mesma vomitava no banheiro.
— O que... aconteceu... aqui? — Perguntou, tentando conter sua raiva.
Senti um arrepio na coluna ao ouvir a voz do Jack. Olhei amedrontado por cima do ombro e retirei-me do banheiro, sorrindo de nervoso.
— É que... eu dei um pouco de café para a Lara... não sabia que ela beberia um copo atrás do outro, ficou elétrica demais...
Clara, que estava atrás do Jack, riu baixinho da situação. O mesmo colocou a mão no rosto e respirou fundo.
— Você e ela vão pagar os prejuízos.
Engoli em seco.
— É brincadeira, né? Eu não tenho dinheiro... — Mas Jack estava com a feição mais séria que o normal:
— Não vai ser com dinheiro.
Jack passou quatro dias consertando a loja e arcou com os prejuízos. Também deu a mim e a Lara a entediante tarefa de atender os clientes, mas a garota, por outro lado, pareceu ter gostado do emprego, afinal entregava cada pedido com um belo sorriso no rosto e voltou a cantarolar. Já eu fiquei atrás do balcão, fazendo café, com o ânimo tão alto quanto um pássaro gordo voando.
— Wayne a mesa 7 quer café expresso — Lara avisou.
— Fazendo...
Ela se aproximou e se debruçou sobre o balcão.
— Por que você parece tão triste? — Perguntou ao me analisar.
— Porque é chato trabalhar aqui.
— Ah não é não, é bem divertido até!
De repente a máquina apitou, alertando que os cafés estavam prontos. Eu coloquei os copos na bandeja e a deixei sobre o balcão. Lara ajeitou a postura e levou os pedidos para a mesa 7.
— Aqui está seu café — Falou para as mulheres que estavam na mesa.
— Obrigada — As moças responderam.
Ela deu a volta pela cafeteria e passou na frente do balcão.
— Bem, eu gosto de trabalhar aqui.
— Só você.
Mas o pior estava por vir, pois no fim da tarde, quando o comércio estava quase fechando, acabei tendo a pior visão do mundo: da porta de entrada o Matias apareceu com dois amigos, um a esquerda e o outro a direita.
Com certeza a sua presença era um balde de água fria milhares de vezes maior que o trabalho neste local.
— Quem é aquele? — Lara perguntou percebendo minha mudança de expressão.
— É o Matias, um garoto abusado da minha sala. Ele implica comigo todo santo dia.
O rapaz andou pelo local enquanto olhava em volta com ar de desprezo. Matias estava usando as mesmas roupas de sempre: a jaqueta do time de futebol da faculdade e o jeans azul. Seus amigos estavam usando as mesmas roupas. Quando ele me viu, demonstrou um leve sorriso maldoso.
— Olha quem está aqui, é o garoto do tricô. Tá trabalhando para não morrer de fome?
Eu respirei fundo e olhei nos olhos dele.
— O que você quer, Matias?
— Eu? Não grandes coisas... — De repente Matias usou o celular para tirar uma foto minha com a legenda: "Olha quem está trabalhando de servente de café para ganhar quase nada, que otário." Os amigos dele começaram a rir e Lara, que estava ao meu lado, ficou furiosa, mas eu coloquei a minha mão sobre a dela, tentando a acalmar. Não iria ter um bom resultado se ela os enfrentasse.
— Empregado, entregue-me um café com bastante açúcar — Matias ordenou.
Eu virei de costas para preparar o café, e quando abri a gaveta do açúcar, uma pequena garrafa de laxante rolou pela mesma. Era a oportunidade perfeita. Em um segundo havia mais laxante que açúcar na receita e logo entreguei para o Matias.
— Três reais — Disse com toda inocência do mundo.
Matias ergueu a mão com o punho fechado e, em seguida, o abriu, deixando o dinheiro cair no chão a frente do balcão. Então retirou o café da bandeja e seguiu para porta.
— Que cara chato — Murmurei — Espero que queime a bunda de tanto usar o banheiro.
No instante que me abaixei para pegar o dinheiro, sem que eu percebesse, Lara chutou levemente o chão, invocando uma de suas estacas embaixo do pé do Matias. O rapaz acabou desequilibrando com a pontada de dor e seu café esparramou pelo chão.
— O que foi isso? Que dor, cara! — reclamou.
Eu rapidamente me levantei ao ouvir o grito de Matias.
— Você pisou em algo? — O amigo da direita perguntou rapidamente.
— Se tivesse pisado teria visto! Ajudem-me a sair daqui!
Matias se apoiou nos ombros dos seus amigos e deixou o local.
— Lara!
— Que foi? Ele mereceu!
Olhei para baixo enquanto balançava a cabeça. Tinha acabado de perder uma ótima vingança.
— É, mereceu.
Depois de atender alguns poucos clientes, a cafeteria finalmente fechou.
Jack chegou logo antes de baixarmos algumas portas de metal e começou a contar o caixa:
— Vendeu vários cafés? — Provocou.
— Ha, ha, que engraçado. Ainda bem que foi só por hoje.
O homem olhou por cima das notas.
— Quem disse que foi só por hoje? Você vai trabalhar até o fim do mês.
— Tá de sacanagem?
— Nem um pouco.
Fiquei cabisbaixo e segui com a Lara para voltar a minha casa. Quando estava preste a sair, deparei-me com Clara entrando no local. Ela tentou me cumprimentar, mas ignorei e passei por ela, seguindo pela calçada.
Lara quis me confrontar naquele momento. Achava muito rude a maneira que tratava Clara e o olhar entristecido que a moça demonstrou foi impactante para a garota. Mas Lara não sabia ao certo o que dizer e acabou que não falou nada durante todo o caminho, deixando um clima pesado no ar.
Clara entrou fungando no comércio e colocou sua bolsa sobre a mesa. Sua feição de tristeza estava nítida. Ela retirou um objeto metálico que estava coberto por poeira de uma das sacolas que carregava. Era um fragmento do servidor da Lupus que felizmente sobreviveu a explosão.
— Jack, eu cheguei — Anunciou, mas ninguém apareceu — Você está aí?
Porém não teve resposta. Clara então andou pelo local e nos fundos viu uma porta aberta com a luz acesa. Jack estava dentro da sala e havia um piso falso do seu lado. A moça não deixou de notar a caixa negra em seu colo e a foto onde ele e aquele homem parecido comigo estavam sorrindo e fazendo pose.
— Seu irmão... — Clara disse triste.
— É — Jack guardou a foto na caixa e a devolveu ao piso falso — Vamos lá, temos que ver o que conseguimos com aquele fragmento.
Nós finalmente chegamos em casa. Já era noite e Lara estava quase caindo de sono. Coloquei-a na cama para que a mesma pudesse dormir e quando eu apaguei a luz, alguns instantes antes de sair do quarto, ela me chamou:
— Você pode ficar um pouquinho aqui?
— Tudo bem.
Ajeitei o cobertor que estava sobre a Lara e sentei-me na lateral da cama. Após isso ela sorriu para mim:
— Nem me lembro qual foi a última vez que eu deitei em uma cama confortável antes de te conhecer.
— Agora você está bem, pode ficar tranquila.
Alguns segundos se passaram e Lara decidiu falar:
— Wayne, eu fiquei confortável em falar com você quando estava amarrado porque tinha uma luz especial. A mesma luz que brilhava na Luna e isso me iluminou. Quanto mais tempo eu passava com você melhor eu me sentia, com mais controle sobre minhas ações. Mas você está estranho, sabe... como em um quebra-cabeça... não tem como colocar a peça sem ser em seu respectivo local. Você não é assim, não deixe o ódio te dominar.
As palavras de Lara me acertaram como um baque. De fato não era de meu costume agir de tal maneira, mas eu sentia que não havia como agir diferente. Tanto conflito se instaurava em minha mente em apenas uma troca de olhares com Clara, tantas emoções que caiam sobre mim como tsunamis. Como poderia encará-la se nem ao mesmo conseguia lidar comigo mesmo? Talvez Lara pudesse me dar um norte.
— E por que você não está brava com a Clara?
— Para ser sincera, eu fico grata por ela. Tanto por ter sido enviada para te capturar quanto por ter criado a máquina.
— Por quê? — perguntei confuso para ela, e de repente sorriu para mim.
— Porque se ela nunca tivesse feito essas coisas, eu nunca teria conhecido você ou a Luna! Por mais que houveram torturas e violência, ainda valeu a pena pela existência de vocês.
Uma vontade gigante de chorar veio aos meus olhos. Lara conseguia ver o lado bom de qualquer situação.
— Você muito fofa Lara — De repente o relógio do quarto fez um barulho sinalizando que era meia-noite — Está na hora de dormir. Descanse bem.
— Boa noite — Ela disse a mim.
— Boa noite.
Fechei a porta do quarto e segui para a sala sentar no sofá. A conversa com Lara não parava de retornar a minha mente e a cada vez me convencia do quão errado eu estava e mais eu me lembrava dos motivos dela, trazendo o dobro de ódio, martelando me com "ela não deveria ter te deixado."
No fim o maior ódio era contra a minha própria pessoa, por não conseguir tomar uma simples decisão. Perdoar Clara? Ela foi tão boa comigo. "Mas te deixou sozinho." Ela me salvou duas vezes. "Mas apenas queria te capturar." Ela se arriscou ao fugir por mim. "Mas era por redenção própria."
Estava tão irritado comigo mesmo que soquei o braço do sofá. As mãos foram ao rosto. Por que sou tão idiota?
Acabei balançando a cabeça em uma tentativa de abafar os pensamentos e logo caí no sono.
Na manhã do outro dia Bombardeiro voltou ao escritório do Santiago. O homem sentado com suas mãos cruzadas e apoiadas sobre a mesa arquitetava diversos desfechos em sua mente. Atrás dele Zero aguardava paciente.
— Depois de hoje não nos veremos novamente — Santiago disse ao perceber a presença de Bombardeiro — então preciso que preste bastante atenção no que vou te ordenar.
— É exatamente o que estou fazendo.
Santiago levantou com um grande papel em mãos.
— Uma de nossas bases antigas foi construída de baixo de uma mansão, porém ela foi demolida junto com algumas outras construções próximas e construíram por cima um estádio de futebol. Precisamos que você destrua o estádio para forçar uma evacuação, possibilitando que eu entre e recupere o que é meu.
— E quanto as pessoas no local? — Perguntou já premeditando a resposta.
— São seus. Tudo será encoberto como um vazamento de gás que provocou a explosão. Isso vai trocar a atenção deles a curto prazo — Santiago entregou o papel a Bombardeiro, que não demorou ao verificá-lo. Havia diversas ordens, mas uma em especifico chamava atenção "Use o LGM-30G em MoonLight e aniquile o máximo de inimigos possível" — O resto das instruções estão nesta folha e quando terminar terá sua recompensa. Talvez tenha até antes, por conta dos intrusos, já que é esperado que apareçam. Você tem autorização para executar da maneira que achar melhor, desde de que cumpra com a ordem da folha.
— Então eu tenho certeza que vai ser excitante! — O homem se retirou da sala com um sorriso sádico no rosto, deixando o Santiago sozinho com aquela mulher de cabelos prateados e pele pálida.
— Você vai confiar nesse maluco? — Ela perguntou — Ele vai querer brincar com os inimigos, ainda mais que você deu autorização para ele... se você me mandar eu posso plantar bombas e resolver isso.
— Eu sei, Zero, mas o objetivo é tirar o foco de mim e também preciso de você ao meu lado. Até recuperarmos a maleta você é tudo que me restou.
Zero assentiu.
De repente um estrondo que veio da cozinha me despertou. Ainda era bem cedo e o som de objetos metálicos caindo no chão reverberava. Objetos metálicos caindo no chão? MEU DEUS A LARA!
Eu corri para a cozinha ver se ela estava bem e o local estava imundo. Todas as bocas do fogão ligadas, farinha espalhada pelo chão, quase todos os talheres da casa caídos e alguns pratos quebrados. Os móveis da cozinha, que deveriam ser negros, agora estavam brancos por conta da farinha. Até mesmo o teto estava marcado de farinha.
Lara no meio de tudo, colocando comidas em um prato. Nem mesmo o avental que utilizava foi suficiente para impedir que sujasse suas roupas de farinha.
— Ah, você acordou? — a garota perguntou assustada ao me ver na porta da cozinha — Volta para a sala, tenho uma surpresa para você!
Uma surpresa? Se ela fez tanta bagunça, quer dizer que cozinhou algo, mas o que seria? Além disso, tinha tanta comida espalhada que era impossível ter preparado apenas uma coisa.
Lara adentrou eufórica na sala, com um prato na mão. Ela colocou-o em cima da pequena mesa de vidro.
— Surpresa! Eu não consegui dormir, então passei a noite planejando o seu café da manhã! Eu nunca cozinhei antes, mas achei fácil! Bastou uma procura pela internet em uma página chamada "receitas que qualquer idiota consegue preparar".
No prato podia-se ver uma omelete queimada e do seu lado uma banana extremamente amassada. Tinha também uma única folha de alface no canto do prato. E no outro canto uma gosma verde e grudenta. Lara também trouxe um líquido preto em um copo.
Por um momento pensei que era café, mas estava tão gelado que duvidei de sua procedência.
— Prova, por favor — A tensão em seu olhar era nítida.
Engoli em seco e com uma colher eu parti um pedaço da omelete. Olhei-a bem na frente dos olhos e a morte parecia me encarar de volta. Aproximei o nariz para ver se melhorava alguma coisa, mas o cheiro era tão ruim quanto o visual.
Lara chegava a roer as unhas ao me observar.
Quando finalmente coloquei na boca, um gosto ácido misturado com amargo e arenoso dominou minha boca. Era tão duro que descia como pedra pela garganta, o que quase me engasgou, e quando fui desesperado beber o líquido para me aliviar, o gosto era tão nojento que quase vomitei.
No fim consegui disfarçar o suficiente para tornar mais crível uma desculpa esfarrapada. Seus olhos inquietos esperavam por uma resposta.
— Hum, então... ficou muito bom! Está... está divino! — não acreditei em mim mesmo quando as palavras saíram pela boca.
— Ainda bem! — respondeu com o alívio nítido em sua voz — Eu tive algumas complicações, mas fiz com muito carinho!
Tossi um pouco e bebi água para retirar o gosto daquilo. Pelo menos havia uma pitada de carinho.
— O que você preparou afinal?
— Bem... uma omelete recheada com sal, que no site dizia com um tal de "Queijo Mozzarella" mas não havia esse produto aqui... então deduzi que sal seria um bom substituto! E as bananas que cortei caíram no chão... fiquei tão tensa que amassei a outra nas mãos sem querer. Aí tinha um suco de laranja, mas não tinha laranja aqui, foi quando eu vi um tal de "macarrão instantâneo" que tinha um sachê com pozinho parecido com o de suco de laranja, ai matei dois coelhos com uma cajadada só! Me sinto até inteligente!
Macarrão Instantâneo? Ela pegou o sachê que estava guardado desde aquele dia que comi só o macarrão?! Meu deus, ela é um desastre na cozinha!
— Estava muito bom! Gostei bastante, parabéns! — outras palavras que saíram sem qualquer intenção minha.
— Obrigada! Vou fazer mais vezes para você!
— Mas é claro! Comeria com prazer!
Por que falei isso de novo?! Sou idiota suicida ou o que?! Essa fofura extrema dela é muito convincente!
De repente eu recebi uma ligação do Jack no meu celular.
— Temos um problema grave — ele disse rapidamente — precisamos de vocês.
— Estamos a caminho — logo olhei para Lara e ela percebeu a seriedade da ligação que recebi — coloca uma roupa limpa, vamos voltar para cafeteria.
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