C A P Í T U L O 16
Segredos que transformam a alma
Meus olhos pairaram rapidamente sobre a minha avó que fitava a taça entre seus dedos. Será que ela sabia disso? Tal descoberta deveria ser motivo de grande alegria para todas as fadas, então por que ela parecia tão triste? Retornei minha atenção para a bruxa ao seu lado.
― Oh sim, já existe, e é você ― respondeu Avigayil, seus intensos olhos castanhos cravados em mim.
Não havia graça neles, nem ao menos um pouco de ironia. Mas aquilo era uma brincadeira, não era? Tinha que ser. Quando seus lábios se curvariam em um riso divertido, e se moveriam avisando que era só uma tentativa de aliviar o clima?
Ela não ria, ninguém ali ria.
― Isso é uma brincadeira, não é vó? ― Olhei para Louise novamente, que apenas negou. ― Fala, vó!
― Não é uma brincadeira, meu amor. Você é a nossa rainha ― confessou, enquanto lágrimas começavam a escorrer por sua face.
Eu estava tão estarrecida que nem tive reação quando Ava soltou os talheres sobre o prato fazendo ressoar um barulho estrondoso por todo o recinto.
― Rainha das fadas? Que história é essa? ― minha mãe indagou.
Avigayil começou a explicar toda a história para ela. À cada palavra proferida, mais o meu coração se apertava, como se meu subconsciente gritasse tentando me alertar para o pior que ainda estava por vir. Um detalhe que, no auge da minha angústia, eu havia esquecido.
― Contrato?! ― Ava gritou se levantando bruscamente. A única palavra da minha mãe, trouxera à tona o pior fragmento da história.
Uma parte minha morria naquele exato segundo, junto com todos os meus sonhos, mas eu ainda não tinha muita noção disso. Os sons foram se distanciando, só restando a pulsação acelerada em meus ouvidos. Na minha frente não existia nada além de uma tela branca, e em meu estômago, um redemoinho revirava tudo que eu tinha comido.
Contrato. Vampiro. Casamento.
Em um conflito de sentimentos, o riso me aflorou. Quando dei por mim, todas estavam em silêncio me olhando assustadas. O nervosismo não cessava, e o meu desespero aumentou a tal ponto, que logo se tornou lágrimas.
― Como vocês podem ter tanta certeza de que a minha filha é essa tal rainha? ― Ava, que ainda estava em pé, passou seus braços pelos meus ombros, apoiando minha cabeça em sua barriga.
― Se me permitem, irei lhes mostrar. ― Eleonora se levantou. ― Peço que me sigam, por favor.
Minha mãe se afastou para eu me levantar, mas seguiu segurando a minha mão até o escritório. Eleonora fechou a porta quando a minha avó passou por último, e então se dirigiu até a parede que ficava logo atrás da mesa de madeira. Puxando um quadro que havia lá, como se fosse uma porta, revelou por detrás dele um cofre, e ao abri-lo, retirou de dentro um tubo preto.
Pedindo que nos aproximássemos, desenrolou sobre a mesa um couro maleável de cor amarelada. Louise e Ava permaneceram na frente da mesa, enquanto Avigayil e eu paramos ao lado de Eleonora. Esta, que esticou sua mão sobre o papel pressionando sua unha sobre o pulso.
― Deixe que ela faça isso ― pediu Avigayil segurando a mão de Eleonora. ― Liz, coloque a sua mão sobre o contrato, e concentre toda a sua energia nele.
Apesar do seu sorriso encorajador, eu estava hesitante, mas acabei fazendo o que me foi pedido. No mesmo segundo, algumas letras manuscritas foram surgindo no papel, das quais refletiam uma intensa luz amarela. Aos poucos elas se juntaram até formarem, claramente, o meu nome. Comecei a tremer, e já retirava a minha mão quando Avigayil me impediu.
― Continue, só mais um pouco.
Logo, outras palavras surgiram, e estas formaram frases, e as frases formaram um pequeno texto brilhante.
Contrato de Destino
"Os Deuses testemunham que, da promessa de Aine e Chraos, nascerá uma fada rainha de sangue-real, descendente legítima de Aileen e Irwin, destinada ao filho legítimo de Dracaos.
Sob o senso divino, uma aliança eterna se edificará. A misericórdia fomentará o amor, e o amor sustentará a paz.
A consumação da união entre Liz Aileen Irwin e Anton Skarsgard, proverá à rainha, a imortalidade e a chave para abrir o portão do Jardim de Aiden, assim como também, proverá aos três vampiros sangues-reais, a remissão das transgressões causadas.
O desígnio sagrado agraciará com o prelúdio de uma nova era, e o Destino se idealizará nas escolhas feitas, e cada escolha terá sua consequência."
Lágrimas contínuas voltavam a escorrer pelo meu rosto, enquanto terminava de ler o tal contrato. Aquilo era um pesadelo, certo? Era sim. E eu precisava acordar. Me afastei da mesa abraçando forte os meus braços. Uma dor aguda latejando em meu peito entre um soluço e outro.
Louise se aproximou e me acolheu em um abraço.
― Não consigo entender, não conheço esse idioma ― protestou Ava. Ela já tinha passado para o outro lado da mesa, e estava agora ao lado de Eleonora.
― Este contrato fora escrito em um dialeto tão antigo, que atualmente só Eleonora, Vincent, Anton e eu, o conhecemos. Todavia, por ser um contrato mágico, quando Liz o revelou fez com que ele se desvelasse no dialeto antigo das fadas, cujo qual, só a verdadeira rainha poderia compreender ― explicou Avigayil. Eu sequer tinha me dado conta de que estava em outra língua, apenas consegui ler.
― O que está escrito aqui? Você conseguiu ler, minha filha?
Afirmei com um gesto breve.
― Vou ajudá-la, Ava. ― Avigayil segurou a pedra de seu colar entre a mão direita, enquanto a esquerda pousava sobre o contrato. De olhos fechados sussurrou algo, fazendo com que o brilho das palavras sumisse, dando lugar a letras escuras. ― Agora conseguirá ler.
Minha mãe começou a ler, e a minha avó, após me dar um beijo na testa, se colocou ao lado dela para fazer o mesmo. A expressão de Ava viajou da incredulidade ao horror em segundos. Era como se eu pudesse ver o que viria a seguir, ela me estendendo aquele olhar de pena e culpa que repudiei por tanto tempo.
Se ela o fizesse, eu não suportaria. Não naquele momento.
― Isso é loucura! ― Sua voz excedida reverberou dissipando meus pensamentos. ― A minha filha não se casará com um vampiro. Pelo amor de Aine, de onde vocês tiraram esse absurdo? Não é porque um maldito pergaminho diz que tem que ser assim, que irei permitir uma coisa dessas!
― É um pergaminho sagrado, Ava ― Avigayil se pronunciou. ― A decisão pertence somente à rainha das fadas e ninguém deve intervir.
― E... e... se eu não quiser? ― Os sons arranhavam a minha garganta que parecia ter encolhido. ― Não quero me casar. Eu não o conheço, não o amo. ― A cada frase, meu choro se intensificava. ― Eu não quero... por favor deve ter outra solução!
Avigayil, ao se aproximar, segurou a minha mão e me guiou até o sofá. Sua mão livre pousou em minha bochecha, enquanto seus olhos sustentavam intensamente os meus.
― Minha linda, você nasceu para um propósito glorioso. O destino almejado pelos Deuses para você, foi projetado por eles há milênios, no entanto, você ainda possuiu o seu livre arbítrio. E agora, é a hora de tomar uma decisão, aquiescer com os planos sagrados, ou escrever a sua própria sina. Mas lembre-se, seja qual for a sua escolha, terá consequências. ― Sua mão deixou o meu rosto, e o seu sorriso tênue se desfez. ― Devo lhe mostrar uma coisa, Liz. É uma visão que Aine me concedeu para outorgar a você, portanto, mantenha a calma e veja tudo, está bem? ― Concordei, e então senti os dedos de Avigayil entrelaçarem os meus. ― Apenas respire fundo.
De repente, toda a minha visão se escureceu. Tão breve, como se eu apenas abrisse os olhos, me vi diante de um portão de ferro tão alto, que se perdia por entre as nuvens, e parecia não ter fim. Ao me virar para trás, vi um lindo jardim que refletia todas as cores e exalava todos os odores doces e frescos. Instintivamente, fui guiada para ele, meus dedos correndo sobre as flores, apreciando cada toque aveludado. Continuei andando até a última pétala dar lugar a uma trilha guiada por árvores frutíferas, e ao final dela, cercado por várias árvores altas e robustas, havia um campo de grama-baixa, onde tinham várias coroas de flores dispostas em fileiras no chão. Ao me aproximar de uma delas, vi um nome talhado em um pedaço de tronco, e sem saber explicar ao certo como, eu sabia que ali era algum tipo de cemitério. Escutei alguns risos, e ao olhar para trás, vi três jovens fadas carregando jasmins e magnólias. Elas passaram por mim e nem me notaram, era como se eu não estivesse ali, e então seguiram até uma das coroas que estava seca, na qual começaram a fazer a troca dos ramalhetes velhos pelos novos. Repentinamente, o dia parecia ter chegado ao fim, o céu começava a escurecer. Embora eu não pudesse ouvir, vi uma das fadas falando algo para as outras, enquanto apontava para o céu. De modo rápido, elas começaram a correr para entre as árvores como se estivessem fugindo, o que me fez segui-las. Logo, me deparei com um conjunto de pequenas casas feitas com cipós, galhos e folhas. Algumas ficavam no chão, enquanto outras, eram construídas no alto das árvores. Uma movimentação chamara minha atenção, várias outras fadas apareciam de todos os cantos, e seguiam direto para dentro das casas. A noite já havia caído por completo, a lua fraca deixava tudo enevoado. O único brilho vinha de algumas casas que emanavam feixes de luz, os quais eu sabia que pertenciam às fadas. Aos poucos, todas se apagaram, até não sobrar nada além de um breu. Foi então que comecei a sentir um frio repentino, seguido de um cheiro podre. Ao olhar para trás, vi alguns vultos negros que sobrevoavam o chão. O escuro não me permitia ver direito, mas à medida que eles se aproximavam, ficavam mais nítidos, e davam forma a algum tipo de ser característico à morte. A sensação que eu tinha era uma mistura de desespero, angústia, sofrimento e dor. Por instinto, comecei a correr por entre as casas. Até bati em algumas portas, mas ninguém abria. Ao chegar na última, me escondi atrás dela, tentando controlar a respiração descompassada para evitar qualquer barulho. Eu mal tinha tomado o controle do meu corpo, quando ouvi alguns gritos finos que pareciam ser de crianças. Ao espiar na direção em que eles provinham, vi que aqueles seres tinham parado em uma das casas. Em um ímpeto, corri até lá para tentar ajudar, mas quando cheguei, os gritos cessaram. Cinco crianças estavam caídas no chão, e todas as suas energias sendo sugadas pelos seres até a morte. Ao lado, em um completo estado de desespero, uma fada de joelhos suplicava por misericórdia à Deusa Aine em uma oração. A dor se tornou fisicamente insuportável, meu corpo queimava, implorava para que toda a minha energia se liberasse. Quando eu estava prestes a ir para cima daqueles mortos, Avigayil soltou a minha mão e tudo simplesmente desapareceu.
― Calma, Liz! ― Ouvi minha avó gritar. Ela estava ao meu lado, junto com Avigayil, tentando me segurar. ― Respira fundo. Lembre-se do que te ensinei, respire fundo e conte até dez.
Eu estava ofegante, meu corpo sensível latejava frustração e raiva. Repetindo mentalmente que tudo aquilo não era verdade, fechei os olhos e me concentrei em controlar minha respiração contando até dez. Inspirando pelo nariz, expirando pela boca, até conseguir reter algum equilíbrio.
Ao abrir os olhos, minha atenção fora tomada pelas minhas mãos, das quais refletia uma luz negra. Em meus braços, algumas inscrições marcavam a minha pele com a mesma luz saindo delas. Aquilo ardia, como se estivesse me queimando de dentro para fora, mas a dor não era pior que a dor da angústia que me devastava por dentro.
Um copo com água me fora entregue por Eleonora. O bebi todo de uma vez, só então consegui agradecê-la pela gentileza.
― Que lugar era aquele, Avigayil? ― perguntei ainda um pouco atordoada.
― Sinto por tê-la feito passar por tal experiência, mas você carecia ver o que acontece ao cair da noite no Jardim de Aiden. Tem sido assim na maioria delas, no decurso desse tempo.
― O que era aquilo?
― Seres mortos, almas perdidas. O Jardim de Aiden é um lugar para os mortos, Liz. Seus ascendentes nunca deveriam ter se refugiado lá, ainda que a Terra não fosse segura para eles. Quando ficaram presos nesse mundo paralelo, houve um desequilíbrio na natureza. Fadas são seres de luz, por isso atraem tudo o que não a possui. Mortos não possuem luz, e com o tempo, foram atraídos para elas, que não deveriam estar ali. Nenhuma fada é capaz de doar energia suficiente para algo tão vazio quanto uma alma obsessa, por esta razão, aqueles seres absorvem tudo o que elas possuem, toda essência e vida.
― Elas estão... morrendo... crianças agonizando até a morte... ― Algumas lágrimas emergiram novamente. Eu nunca havia presenciado algo tão cruel, e de uma forma inquietante, a dor daquelas fadas passaram a ser minha. O instinto dentro de mim, clamava e se enfurecia dizendo que eu devia ajudá-las de qualquer maneira.
Avigayil apoiou sua mão em meu ombro.
― Decerto que agora compreende a profundidade de toda conjuntura. Elas estão vivendo em um purgatório ainda em vida, e só você pode libertá-las dele.
― Só posso ajudá-las cumprindo esse contrato? ― indaguei limpando minhas lágrimas com o dorso das mãos.
― Até os Deuses desconhecem outra solução. ― Suspirei profundo, deixando escapar um soluço.
― E o que é isso? ― Apontei para as inscrições em meus braços e pernas.
― Muito provável que sejam as idealizações que os Deuses traçaram para a sua vida. Se retirar o vestido, poderemos tentar entender. Talvez, revele algo para auxiliá-la em sua escolha.
Sem responder, olhei para minha avó entristecida sentada no sofá ao lado de Eleonora. Já a minha mãe estava em pé com os braços cruzados, seu rosto delicado apresentava trilhas de lágrimas até o maxilar.
― Para que se sinta confortável, esperarei na sala ― declarou Eleonora se levantando e indo em direção à porta.
Alguns minutos depois, eu me encontrava de pé no meio do escritório, só de lingerie, enquanto Avigayil andava à minha volta analisando as inscrições.
― Elas estão sumindo, minha linda. Expanda e projete sua energia por todo o corpo para me dar mais algum tempo de análise. ― Fiz exatamente o que me fora pedido. A luz que se projetava dos desenhos em minha pele se tornou mais intensa. ― Bom, observemos... Os inscritos da sua costela esquerda é o contrato transcrito. Na costela direita, está o portão do Jardim de Aiden, ainda fechado. Nas suas costas há uma árvore-da-vida.
À cada observação feita, eu me contorcia tentando ver os desenhos. Até que por fim, o silêncio nos envolveu. Avigayil se abaixou à minha frente observando a minha barriga parecendo um tanto intrigada.
― Um jardim vazio... uma cápsula ou uma semente? Seria uma chave dentro dela? ― murmurou parecendo falar apenas consigo mesma. ― Oh, a concepção da chave de Aiden, talvez.
De repente ela se levantou sem explicar nada, e então passou a observar o meu tórax. Seu sorriso espirituoso e seu arqueio de sobrancelha me instigou a acompanhar seu olhar. Um arrepio seguido de um tremor me percorreu o corpo quando li entre meus seios, o nome Anton Skarsgard escrito sobre um símbolo.
― A cruz de Ankh. Seu arquétipo se traduz na união do feminino com o masculino. A união das pontas que forma o cordão configura a vida em sua plenitude, e a união dos opostos. Ela é o símbolo da vida eterna.
Vida... O quão injusta a minha vida se tornara? Eu nem ao menos conhecia aquele vampiro, não o amava, e o nome dele estava gravado em mim como se eu fosse sua propriedade.
Senti meu estômago embrulhar.
― Isso não está certo, Avigayil. Tem de haver outra maneira... ― contestou Ava, sua voz embargada dificultando as palavras.
― Percebo o quanto esta condição está sendo intolerável. Todavia, posso assegurar que o tempo proverá a compreensão de todas vocês. Apenas tentem enxergar de outro modo, afinal, se este é o anseio dos Deuses, não há por que temer qualquer infortúnio.
― O que você pretende fazer, minha princesa? ― Minha avó questionou hesitante, a preocupação refletida em seus olhos.
― Por enquanto, só quero me vestir e ir embora. ― E chorar, chorar até que aquele pesadelo acabasse.
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