C A P Í T U L O 12
A síntese do passado
Os meus olhos saltaram e arqueei surpresa quando seus braços me envolveram a cintura em um laço apertado. Forçando uma careta, ele me levantou do chão e começou a me rodar pela sala, fazendo a minha risada ecoar em meio ao estalo dos tapas que eu dava em seus ombros.
― Luc! Me põe no chão!
― Aê! Consegui te fazer rir ― comemorou me soltando, os olhos brilhantes e um sorriso satisfeito no rosto. ― O que aconteceu? Estou te achando tristinha hoje.
― Não é nada, só estou cansada. Hoje o dia foi péssimo e longo demais.
Ele passou o braço pelos meus ombros me arrastando em direção à cozinha.
― Relaxa, maninha. Vamos assistir um filme e esquecer os problemas por hoje. ― Puxando-me pelo pescoço, levou os lábios de encontro à minha testa. ― Hum, eu já te disse que você cheira a marshmallow? ― Revirei os olhos dramaticamente cutucando sua a costela e fazendo-o rir.
Luc sempre dizia que eu cheirava a algum doce. Tinham dias que era a algodão-doce, outros a chocolate branco, às vezes à sorvete de creme com cereja. Nunca entendi suas associações, por isso nunca as levei a sério, muito menos as da Sophi que dizia que eu cheirava a bombom de rosas, só porque era o meu preferido.
― Cadê a nossa pipoca, Luc? ― Sophi jogou um saco de milho de pipoca fechado para ele.
― Vou te contar viu, como pode essas duas pessoas não darem conta de fazer pipoca? ― reclamou indo em direção ao fogão.
― Fique sabendo que nós duas damos conta sim, só não conseguimos fazer a de caramelo ― retrucou ela.
― Bom, eu só vim dar boa noite pra vocês. ― Dei um beijinho na Sophi.
― O que? Não vai assistir ao filme com a gente?
― Estou exausta, Sophi. ― Lancei um olhar suplicante para ela que logo entendeu, já que eu havia lhe contado sobre o dia difícil que tivera. Depois me virei para o Luc e dei um beijinho em sua bochecha. ― Boa noite.
― Poxa, vou ter de aguentar essa chata sozinho? ― Sophi lhe deu um empurrão de brincadeira fazendo-o dar seu melhor olhar indignado. ― Viu o que ela faz comigo?
― Não briguem, eu já disse que vou ser a madrinha do casamento de vocês ― brinquei, um risinho fazendo tremer minhas cordas vocais.
― Do dele eu não sei, mas do meu com toda certeza vai ― assegurou Sophi em tom de cumplicidade passando o braço pelo meu ombro.
― Qual é, ruiva? Você me ama, assume logo. ― Luc a provocou e acabou levando uma olhada de desdém dela, seguida de uma surra com a toalha de mão que ela segurava.
Desta vez me veio uma gargalhada, antes que eu me retirasse da cozinha falando alto para que escutassem:
― Comportem-se!
Já em meu quarto, após me certificar de que o despertador estava devidamente ajustado, me deitei. Parecia que eu havia corrido quilômetros, mas na verdade, as várias emoções que se afloraram naquele dia me deixaram cansada fisicamente. Era como se toda aquela energia que não foi extravasada, continuasse percorrendo e desgastando todas as minhas células.
Meu corpo estava pesado, mas ainda assim, eu não sentia sono. Me virei na cama várias vezes, até que por fim, minutos mais tarde, desisti de tentar dormir. No escuro, estiquei meu braço para ligar o abajur derrubando algumas coisas que estava sobre o móvel até chegar nele.
Quando consegui ligar a luz, fitei o chão à procura dos objetos que caíram, foi então que vi aberto o livro que Eleonora havia me dado. Ao pegá-lo, percebi que ele estava aberto justamente na página em que eu havia parado de ler. Desde sábado, eu não o tinha lido mais, por falta de tempo já que no domingo tive que organizar a casa.
Coincidência ou não, eu sentia que era hora de terminar de lê-lo. Ajeitei meus travesseiros, me sentei e então voltei toda minha atenção para o objeto em minhas mãos.
Porém, eles não podiam prever o que estava por vir...
Mais uma vez, fui tomada por uma sensação de receio misturada à curiosidade. Passei a página.
Os três humanos transformados, ao acordarem como vampiros, entraram em uma espécie de transe causado pelas misturas de sensações que passaram a sentir. Todos os sons, cheiros e gostos se ampliaram, toda a força e vitalidade que emanavam fez com que se sentissem indestrutíveis, e de fato eram.
Todo o antagonismo de sensações os fez perder o raciocínio lógico e as emoções. Eles saíram pela Terra guiados somente e puramente pelos seus instintos mais viscerais, se alimentando do sangue de todos os seres vivos que cruzavam seu caminho. Os três vampiros dizimaram inúmeras vilas, de todas as raças, por todo o planeta. Estava acontecendo justamente o que os Deuses mais temiam e, principalmente, o que mais tentaram evitar, a extinção de suas espécies.
Chraos foi intimado a intervir entre suas crias, mas não pode fazê-lo, pois de algum modo, o elo físico que existia entre ele e sua raça havia morrido junto com Dracaos. Da mesma forma que os outros Deuses também o perderam quando seus primogênitos morreram. Todavia, em meio ao caos, um acontecimento chamou a atenção dos Deuses, talvez uma solução.
Numa tarde, Avigayil Na'amah, filha de Ketzi Na'amah, a herdeira do trono bruxo, cruzara o caminho da única vampira mulher dos três imortais. Fora um encontro fugaz, tão breve e indelineável que durara só o tempo de a mesma correr para cima da bruxa e em questão de segundos sair correndo com os olhos cheios de medo e amargura.
Do ocorrido viera ao conhecimento dos Deuses, que Hécate abençoara Avigayil, ainda no ventre de sua mãe, com um dom único. Um simples toque e ela é capaz de aflorar nos seres todas as verdades e anseios dos quais eles têm medo ou se envergonham. Ela pode mostrar a real face da vida através do passado e do presente, pode revelar o que e como algo vivenciado ou não, acontecera. O inesperado acontecimento provou que se o dom de Avigayil fora capaz de atingir a vampira, talvez ela pudesse ajudá-los a retomarem suas consciências racional e emocional.
Os Deuses passaram vários anos terrestres arquitetando um plano para que a bruxa pudesse intervir entre os vampiros sem que fosse morta por ele, e a única solução encontrada seria a de torná-la imortal. Chraos, no entanto, não fora o progenitor da ideia e indignou-se ante a sugestão, como era ele o único capaz de conceder a imortalidade, se opôs veemente.
Cem anos havia se passado desde a transformação dos três vampiros, e o mundo se encontrava em uma completa desordem. As quantidades de seres estavam cada vez menores, e a raça com o menor número de indivíduos, eram as fadas. De algum modo, os vampiros nutriam uma predileção ávida pelo sangue delas.
Tal fato fizera com que as fadas se escondessem no Jardim de Aiden, um mundo paralelo criado por elas para enterrarem seus entes queridos. Ainda que Aiden fosse um lugar somente para os mortos, era o único refúgio que possuíam. Voltavam cada vez menos para a Terra, somente para algum evento real como a troca das estações ou para algum casamento.
Fora então que certo dia, na passagem do outono para o inverno, elas precisaram voltar, e em meio à troca do ciclo, foram encontradas pelos três vampiros. Um fatídico acaso que ocasionara o mais terrífico massacre de todos, fazendo com que centenas delas fugissem pela floresta. Diante do tumulto e do desespero, o rei e a rainha vigentes, Áed Irwin e Aelie Aileen abriram o portal que levava para o Jardim de Aiden, e enviaram para lá as fadas que conseguiram alcançar juntamente com seus quatro filhos, Selene, Beson, Owin e Annabell.
Em seu dever como protetores de suas castas, o rei e a rainha permaneceram na Terra para salvar o máximo de fadas possíveis, entregando assim, a chave do portão de Aiden para Selene, a primogênita deles. Caso algum dos vampiros ultrapassasse o portal, ela deveria trancá-lo, definitivamente.
Minutos que transcorriam no Jardim de Aiden equivalia a dias terrestres, mais nenhuma fada atravessava o portal, e o rei e a rainha ainda não haviam voltado. Ignorando a ordem dos pais, Selene trancou o portão de Aiden, e voltou à Terra para buscá-los. Todavia, em um lamentável infortúnio, os encontrara mortos entre outros tantos que lutaram até o último suspiro. Restara à jovem fada, a dor, a devastação, o luto. Entregando-se ao pranto, Selene ajoelhou-se pedindo clemência à Deusa Aine. Ato que atraíra a atenção do vampiro mais novo que, por sua vez, a matou.
A Deusa das Fadas, a mais calma e pacífica de todos os Deuses, esbravejou e enfureceu-se como ninguém deles jamais vira. Sua raça fora praticamente extinta, metade dos que sobraram encontravam refugiados pela Terra sem ter onde se esconder, e a outra metade estava trancada no Jardim de Aiden.
Ameaçando descer à Terra para destruí-la, quebrando assim o elo pacífico entre os Deuses, Aine intimou Chraos a intervir com uma resolução. Ele, no que lhe dizia respeito, não faria nada caso fosse qualquer um dos outros Deuses que o intimasse. Contudo, ele nutria um imensurável apreço pela doce Deusa Aine, por conseguinte faria qualquer coisa por ela, até mesmo tornar Avigayil imortal.
Chraos concedeu a imortalidade à bruxa, e os Deuses decidiram torná-la a conexão física entre eles e as suas criaturas. O seu destino fora traçado, e ela se tornou a mensageira dos Deuses. Em sua primeira missão, guiada pelas divindades, Avigayil atraiu os três vampiros até uma caverna, prendendo-os lá com um poderoso feitiço de modo que ao lhes privar de sangue, os deixaria fracos e vulneráveis o suficiente para que pudesse se aproximar.
Duzentos anos se passaram e Avigayil retornou à caverna. Os três vampiros agonizavam em silêncio, exauridos, permitindo que a bruxa os tocasse e lhes outorgassem a visão de toda destruição, morte, sofrimento e dor que eles provocaram pela Terra. Orientada pelo Deus dos Vampiros, Avigayil lhes elucidou as singularidades de sua nova natureza, apontou os motivos fundamentais de suas existências, e toda a magnificência da dádiva que Chraos os proporcionara. Revelou-lhes a razão, os planos, e as expectativas que seu novo Deus tinha para com eles, assim como também, a verdadeira missão cuja qual deveriam honrar.
Evidenciou que toda a desordem causada, fora sem a intenção e sem a consciência do que faziam, por este motivo, teriam uma segunda chance para se redimirem. Exaltou que para se provarem merecedores da vida eterna, precisariam controlar a morte dando continuidade ao legado de Chraos. Avigayil instruiu como fazê-lo, revelando as visões que o Deus dos Vampiros lhe concedera. Ensinou como matar para trazer à vida, ressaltando a relevância de serem os responsáveis pelo futuro e ascensão de sua nova espécie.
Os três vampiros retomaram suas consciências em uma completa confusão mental, repleto de novas informações e em meio a um tornado de sentimentos de dor, desespero e compaixão. Aterrados em culpa, constrangimento e autodesprezo, permaneceram por mais cem anos reclusos dentro da caverna.
A Deusa Aine, não satisfeita com o infortúnio de parte de suas fadas continuarem presas no Jardim de Aiden, sendo que a chave desaparecera quando Selene morrera, responsabilizou Chraos, exigindo que ele encontrasse uma solução para abrir o portão de Aiden. Já o Deus dos Vampiros, estava descontente com a reclusão e autopiedade de suas crias. Enquanto todas as raças voltaram ao seu curso normal, a dele continuava como antes, mesmo após quatrocentos anos desde que suas crias tinham sido transformadas.
Chraos buscava pela redenção e ascensão de suas criaturas, ao passo que a Deusa das Fadas desejava libertar sua espécie, porém, nenhum dos dois tinham compreensão de como resolver. Observando ambas frustrações de Aine e Chraos, a Deusa Hécate apresentou-lhes um provável recurso, sugerindo que formalizassem um Contrato de Destino.
Todavia, Contratos de Destino sempre foram muito poderosos, uma vez feitos, não podem ser desfeitos, já que são capazes de fazer o impossível acontecer enquanto selam o destino de quem o faz. Eles podem mudar o curso da história e da vida, podem fazer prosperar, mas também podem destruir. É um acordo para quem tem objetivos definidos e que não tenha mais nenhum outro recurso para alcançá-los.
Na ausência de outro meio, um Contrato de Destino entre Chraos e Aine fora selado na presença dos outros Deuses como testemunhas. Tal acordo determinava que nasceria uma fada rainha, de sangue real, descendente legítima de Aileen e Irwin. E esta estaria destinada a se casar com o último vampiro transformado por Dracaos. Ao ser consagrada a união, a fada real se tornaria imortal e obteria a chave para abrir o portão de Aiden, ao passo que os vampiros ganhariam suas absolvições de um passado transtornado.
Avigayil voltou até a caverna com o pergaminho sagrado em mãos. O explicou ao três, prometendo-lhes o fim da dor, do remorso, auferindo-lhes uma perspectiva, um futuro. Ao consentirem com aquele contrato, poderiam se redimir com os Deuses para que pudessem prosperar e tornar sua eternidade menos dolorosa.
O Contrato era a luz no fim de uma escuridão de quatrocentos anos, era o vislumbre de uma nova vida, era a aceitação de suas existências e suas novas condições. Sob o senso divino, a última cria de Dracaos fez um furo em seu pulso, permitindo que seu sangue jorrasse sobre o Contrato, seguido dos outros dois vampiros que replicaram o gesto em consentimento.
Eram as suas promessas perante os Deuses, eram as promessas dos Deuses perante eles. O Contrato de Destino fora legitimado, um Contrato sem volta, de consequências imprevisíveis, que poderia fazer prosperar, que poderia destruir, um Contrato que transformaria a vida de todos.
E fora assim que tudo começou...
Li tudo mais uma vez, outra vez, e outra.
Fui tomada por uma completa confusão. No início tudo pareceu tão absurdo, tão distante da realidade a qual eu conhecia, que não acreditei. Contudo, aos poucos fui compreendendo que todas aquelas revelações tinham um sentido muito mais profundo e definido do que a versão que minha avó me contara, mas ainda assim, eu não conseguia me desapegar das minhas origens.
Um conflito interno gritava dentro de mim. Uma parte se agarrava com unhas e dentes à nossa verdade, ao nosso propósito e a tudo o que minha espécie havia construído com base no que acreditávamos. Já outra parte sabia que existia muita maldade no mundo, mas que não era justo definirmos uma raça inteira por um único erro. Os seres são passíveis às falhas, podemos errar e nos arrepender, e ninguém é perfeito o suficiente para ter o direito de apontar e julgar os defeitos do outro.
Mas, o que era verdade ali?
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