C A P Í T U L O 1
Dois mil e seiscentos anos depois...
O Fantasma dos meus sonhos
Destino.
Era essa a sensação, a voz silenciosa que rastejava sob a minha pele, eram os tremores que se alastravam e me exauriam, intensos, nauseantes. Era a minha garganta seca, o ar rarefeito e cada uma das afiadas batidas em meu peito, pulsando, reagindo. À minha frente, duas estradas igualmente desconhecidas e nubladas se projetavam como se quisessem me dizer que havia chegado a hora, tudo ou nada, e uma escolha que eu nem sequer sabia para qual fim.
Não era justo, a incerteza era tão sufocante que recuei alguns passos para fugir, para recusar. Ao girar meu corpo, a noite infindável dera lugar ao fim do dia, e eu me encontrei não menos afogada em uma confusão asfixiante, parada no meio de uma calçada envolta do barulho incessante dos carros na avenida, do odor desagradável que exalavam, da criança gritando no colo da mãe, do mau-humor quase tangível e da horda de pessoas apressadas que esbarravam em mim.
Enfim, de volta à realidade.
Não me lembrava do porquê e nem de como havia chegado ali, tampouco sabia onde estava, mas antes que me perdesse em mais algum delírio, comecei a andar seguindo o fluxo de pessoas. Gradualmente a sensação de normalidade voltava, mas não demorou para se mesclar a tensa sensação de estar sendo observada.
Ao meu redor nada parecia incomum, ainda assim, apressei-me em dobrar a próxima esquina, passos rápidos e trôpegos, colisões com alguns corpos de rostos tão indefinidos quanto os protestos e xingamentos que vociferavam. Em meu estômago, um nó de pressentimento queimava e subia pela garganta ameaçando verte-se em desespero. Rapidamente atravessei a rua, olhos como dois holofotes correndo em todas as direções. O medo começava a me tornar irracional, mais uma vez a inquietação emergia retumbando por todos os lados, como um aviso, um presságio que anunciava a fatalidade.
Um movimento suspeito, íris negras voltadas para mim, e dois homens se aproximando com uma intenção, a qual eu não iria esperar para descobrir. Quase que inconsciente, minhas pernas passaram a se mover cada vez mais rápido e quando me dei conta, já estava correndo. E eles também.
À minha volta, imagens tornavam-se meros borrões em meio a agonia da pressa. Impulso após impulso, inspiração após expiração, meus músculos queimavam e as sombras dos prédios dilatadas pela noite, caíam como um manto negro sobre os meus olhos. Tentei gritar, mas não havia voz. Em meus pulmões, o ar quase não chegava e pouco permanecia, minhas pernas fraquejavam e o meu corpo tremia ondulando entre passos cada vez mais flutuantes e lentos, denunciando a minha exaustão.
Um passo em falso, um tropeço, e eu caí, meu corpo vertendo-se no ar, despencando e esmorecendo à precipitação da queda que não vinha; caindo e caindo, mergulhando no que parecia ser uma escuridão sem fim, por onde não havia som, onde não havia cores, para onde não havia nada além de um profundo vazio.
A dor da queda foi quase imperceptível, o chão sob o meu corpo parecia macio demais e o seu cheiro se assemelhava ao reconfortante aroma de grama e terra. Apoiada em meus braços, levantei-me ignorando o líquido espesso que se aglutinava em minhas narinas e boca, mas tão breve quanto meus olhos lutavam para definir as formas do que parecia ser uma floresta, eu tentava assimilar a recente sensação de alívio.
Alívio que se dissipou com a mesma rapidez com que um estalo violento retumbou pelo ar, antes que gotas densas começassem a cair e raios a cortar o céu noturno. Estrondosa e bruscamente uma tempestade havia chegado, junto dela, um calafrio agudo seguido de uma forte presença às minhas costas, tão intensa que o meu instinto reconhecia ser inútil tentar fugir.
Muito devagar, girei o meu corpo e olhei.
Do súbito reconhecimento veio o golpe em meu peito.
Os flashes luminosos que continuavam eclodindo pelo céu me permitiam vê-lo com precisão, e ainda que, como das outras vezes, o seu rosto estivesse imerso nas sombras do tecido negro que lhe cobria a cabeça, eu sabia que era ele. Era o enigma que eu nunca soube decifrar e que sempre permeou a minha vida. Fascinante, intimidador. Como a noite fria e tempestuosa que devastava tudo ao nosso redor.
A sua simples visão me tocava em lugares tão secretos, que a sensação era de que o meu coração estava sendo tragado para um abismo. Pela primeira vez, eu reconhecia que havia algo maior, como uma espécie de conexão instintiva que sempre o atraía para mim, onde quer que eu estivesse. Nova e inexplicavelmente, rompia em meu peito a palavra destino, não mais tão duvidoso, mas um que parecia desconcertante e ao mesmo tempo, alentador.
Sem pensar muito, tomada por aquela necessidade que fugia à razão, me aproximei, comedida. Cada parte minha em pura exaltação, sob olhos ocultos que me puxavam e me engoliam tal como um vórtex, arrastando-me direto para a escuridão que os encobria. Mais um passo. A pulsação. A respiração ausente e a sensação fria da queda. Outro, e parei à sua frente sentindo o meu coração falhar e em instantes bater tão forte, tão cru, que parecia ser capaz de pulsar por duas existências.
Estávamos perto, tão perto que senti as suas sombras me tocarem; tão perto que os nossos corações encontraram o mesmo ritmo; tão perto que eu podia jurar que a minha vida agora era dele. Próximos o bastante para que eu pudesse ver os seus lábios, somente os seus lábios, perfeitamente delineados, unidos em um "M" quase imperceptível; um "M" que se desfez quando se entreabriram lentamente, como se estivesse prestes a falar, mas ao invés de uma voz, ouvi um barulho longínquo, um barulho irritante, que se tornava cada vez mais alto e estridente.
Sentei-me rapidamente na cama, a carne trêmula e o peito arfante. O frisson enervante ainda me descia a espinha e se concentrava em meu ventre quando me situei e percebi o que estava acontecendo. Meu celular estava tocando sabe-se lá por quanto tempo, vibrando sobre a mesinha de cabeceira rumo ao precipício até o chão.
― Não acredito.
No ímpeto dei um pulo me esticando até o móvel, mas o aparelho tremia na direção oposta. Estendi todo o meu braço e os meus dedos quase podiam alcançá-lo. Quase. Só mais um pouquinho. Me estiquei mais e eu estava quase conseguindo, por pouco, só mais um pouco e quando finalmente ia pegá-lo, a queda se fez e o baque metálico ecoou do piso. Eu ainda o assimilava, quando veio a percepção do meu tronco suspenso no ar e da falta de apoio; um breve oscilar, e fui direto para o chão.
Uma dor estalou e ricocheteou intensa e aguda em minha testa. Tudo ficou escuro e por um instante, apenas senti o latejar penetrante me roubar os sentidos, mas tão breve quanto desapareceram, pontos luminosos voltaram a piscar, aumentaram e então retomaram suas cores e formas.
Reprimindo um xingamento e com os olhos retraídos pela dor, quase lacrimejantes, sentei-me no porcelanato frio alcançando o aparelho que por um milagre ainda tocava. Atendi apressada sem nem ao menos ver quem era, porque com toda aquela insistência, só podia ser uma pessoa.
― Sophi?
― Bem que eu adoraria ter aqueles lindos olhos verdes e cabelos avermelhados, mas não é a Sophia, minha princesa.
A inconfundível e contagiosa risada de Louise ecoou do outro lado, como sempre, me aquecendo o coração como um abraço apertado. Saudades, todas as vezes que nos falávamos por telefone o sentimento maior era esse, mas não mais que o amor puro e reconfortante, daqueles com gostinho de lar.
― Ah, oi, vó ― a cumprimentei compartilhando seu riso.
― Como você está? Sonhei com você esta noite, por acaso acordou sentindo algo diferente?
Um suspiro veio lá do fundo ao massagear a minha testa dolorida, mas em nada diminuiu o sorriso em meus lábios, porque Louise era isso. Tantas perguntas, tanto entusiasmo, tão típico dela. Enquanto eu ainda tentava manter meus olhos abertos, provavelmente ela já devia ter andado por todo o Palácio de Aiden, se não, pela Ilha inteira.
― Estou bem. E não, não acordei sentindo nada de diferente hoje. ― O que não era exatamente verdade, apesar da queda, o meu corpo ainda sentia a intensidade daquele sonho, mas a sua pergunta não tinha nada a ver com isso e o assunto que ela desejava retomar, eu pretendia evitar. Razão esta, que me fez mudar o foco da conversa. ― Como a senhora está? O que tem feito?
― Estou ótima... ― O tom reconfortante da sua voz se misturou a um barulho estrondoso, interrompendo-a. ― Hermínio! Tenha mais cuidado com esses vasos. Desse jeito não vai sobrar nenhum para a feira e eu já disse que não estou com tempo para novas encomendas.
O meu riso voltou com força, certas coisas nunca mudavam. As férias estavam próximas e isso significava o grande movimento nas feiras de artesanato que a comunidade dos Aileen promovia, e Louise, como uma excelente oleira e pintora, era a fornecedora principal do Sr. Hermínio, um dos comerciantes. Era quase inacreditável que ela ainda conseguisse ajudar nesses eventos da família. Não era como se tivesse tempo de sobra ou que, como uma Aileen, fosse a sua obrigação. As suas responsabilidades eram outras, bem maiores e mais importantes, como membro real do Conselho de Aiden. E desde que ficara viúva, teve que assumir ainda mais compromissos que antes eram destinados ao meu falecido avô Jeremy.
― Me desculpe, princesa. Sobre o que estávamos falando? ― Ela se calou recorrendo a alguns segundos reflexivos, mas não demorou para retomar: ― Ah sim! Então, estou em casa. Na verdade, só vim fazer a entrega das encomendas da feira, mas tenho que voltar para a Ilha o quanto antes, Johan e Agnes precisam da minha ajuda por lá.
De novo a saudade apertava. Se não me falhava a memória, devia ter pouco mais de seis meses que eu não via os meus avós paternos, e nunca ficávamos tanto tempo sem nos ver. Johan e Agnes eram outros dois que, assim como Louise representava a família Aileen no Conselho, eles representavam a família Irwin, mas contrariamente à minha avó materna, há muito haviam abdicado de sua casa na comunidade dos Irwin para se fixarem exclusivamente na Ilha de Aiden.
― Dê um abraço neles por mim, diga que estou morrendo de saudades.
― Eu darei, não se preocupe. Agnes ficou pesarosa por não ter lhe feito a costumeira visita em seu aniversário, mas é que as coisas realmente estão complicadas em Aiden. Johan tinha até sugerido ir buscar você nas férias para passar alguns dias conosco.
Lá estava eu sorrindo outra vez, me perguntando quando que meus avós iriam perceber que eu não era mais a criança que eles precisavam buscar para passar as férias em Aiden, e sim uma mulher crescida, com idade suficiente para dirigir e cuidar das próprias viagens.
― Não terei férias. Quer dizer, na faculdade terei, mas não no meu estágio. Diga ao meu avô que assim que puder, prometo que irei para lá passar um final de semana inteirinho com vocês, está bem?
― Bem, se não tem outro jeito ― suspirou ela meio a contragosto, entregando-se a um intervalo resignado. ― Sabe, hoje tive aquele mesmo sonho com você. Posso sentir, está chegando a hora, meu amor. ― Essa não. Tão bruscamente ela tinha voltado ao assunto e lá íamos nós falar sobre aquilo de novo.
― Vó, já conversamos sobre isso. Acho melhor a senhora desistir dessa ideia e se conformar, porque eu já me conformei há muito tempo.
O chiar de uma respiração profunda veio do outro lado, e eu sabia que era apenas uma preliminar para o discurso que viria a seguir. Louise era o meu porto seguro e eu a amava muito, mas às vezes era tão cabeça dura. A fé que ela tinha nas coisas vindas do coração eram a base de sua própria existência, e quando colocava algo na cabeça, ninguém tirava. Ela acreditava cegamente que eu era uma fada, mesmo com todas as evidências provando o contrário.
Como uma das principais representantes da sua espécie, conhecedora da árvore genealógica dos Aileen e dos Irwin, minha avó sabia muito bem que toda fada já nasce com seus poderes, portanto, irrevogáveis, mas que eles só se afloram na puberdade e tão somente lá pelos onze a quatorze anos. Eu tinha acabado de fazer vinte. Vinte anos e não possuía poder nenhum! Eu era uma humana igualzinha à Sophi, exceto pela aparência, é claro.
Louise sempre dizia que qualquer bom estudioso da história das raças reconheceria as minhas características físicas como genuínas e inerentes às primeiras fadas que habitaram nosso planeta. Segundo ela, o loiro amanteigado do meu cabelo era de um tom especial, quase único, e que o azul dos meus olhos era o autêntico azul poente, também raro e exclusivo às fadas de sangue muito puro. Fato que tinha uma explicação óbvia, visto que eu era filha de fadas de sangue real.
Contudo, isso não significava que o pouco de sangue humano que provavelmente eu possuía em minhas veias, não falasse mais alto. Na verdade, com a grande miscigenação que ocorrera ao longo dos milênios, aparência não significava absolutamente nada. Se mostraria intolerante e preconceituoso aquele que quisesse definir uma raça por sua cor ou seus traços físicos.
― Desistir? Não é questão de desistir, eu sei que você é uma fada. Sabe há quantas gerações da nossa família todos nasceram fadas? ― Dez, sim, eu sabia. Ela havia me dito isso milhares de vezes. ― Dez! Há dez gerações somos fadas puras, não existe mais sangue mestiço em nossas veias. Portanto, não há a menor possibilidade de você não ser uma fada ou até mesmo de ser uma mestiça. Você não pode desistir assim, talvez seja por isso que seus poderes ainda não se revelaram.
Se eu desisti? Sim, definitivamente eu tinha desistido. Houve um tempo em que tudo que eu sonhava era ser igual aos meus pais e avós, mas a cada ano que se passava e que os meus poderes não vinham, a frustração só aumentava. Até que um dia me conformei e resolvi encarar a realidade, meus sonhos se tornaram outros, mais simples e menos sentimentais.
Eu só não entendia por que era tão difícil para Louise aceitar isso, se até os meus pais haviam se conformado. De acordo com Petre, não ser uma fada me livraria de vários problemas, pois assim eu não herdaria dos meus avós o lugar de membro real do Conselho de Aiden. Este era um fardo que tanto ele quanto Ava dispensaram anos antes, e eu me sentia extremamente aliviada por ter uma boa desculpa para não carregar uma responsabilidade tão significativa.
― Liz, você ainda está aí?
― Sim, pode deixar, vou pensar sobre isso. ― Era mentira, e eu não gostava de mentir para minha avó, mas também não suportava magoá-la ou vê-la triste, por isso era melhor falar o que ela queria ouvir e encerrar logo o assunto.
― Isso, acredite, quando menos esperar, vai acontecer. Qualquer coisa estarei aqui por você, mas você sabe disso, não é?
― Claro que sei, vó. ― Essa era uma das poucas certezas que eu possuía. Louise sempre esteve ao meu lado nas melhores e piores fases da minha vida. ― Eu te amo.
― Também t... mo... ito. ― A sua voz foi entrecortada por um bipe indicando que outra pessoa estava me ligando, o afastei encarando sua tela e desta vez era de fato a Sophi.
― Vó, a Sophi está me ligando. Hoje é a apresentação da monografia dela, pode ser que tenha acontecido alguma coisa, posso te ligar mais tarde?
― Claro, minha princesa. Dê um beijo na Sophia por mim e me ligue se precisar de alguma coisa.
Nos despedimos rapidamente e assim que finalizei a ligação, a de Sophi havia se encerrado. Não demorou muito para que eu recebesse uma mensagem dela avisando que logo mais chegaria em casa, e eu aproveitaria esse tempo para terminar de acordar e começar o meu dia.
Colocando o celular sobre a mesinha ao lado, levantei-me do chão e segui direto para o banheiro. Após um banho, me aconcheguei em uma roupa confortável disposta a começar o meu sábado como sempre fazia, organizando a casa. Voltando para o quarto, abri as cortinas e a janela permitindo a claridade natural entrar e se alastrar pelo cômodo. Agilmente separei as roupas para lavar e já retirava os lençóis da cama quando minha amiga, como uma lhama saltitante, adentrou o quarto correndo e berrando, pulando nas minhas costas e me derrubando no colchão.
― Eu consegui! Eu con-se-gui! ― ela gritava jogada sobre mim, lançando a boca em meus cabelos e me enchendo de beijos.
― Ai, Sophi! Precisava disso? ― Ela gargalhou e como eu não era imune às suas explosões de histeria, acabei rindo também. ― Meus parabéns, mas será que agora dá pra sair de cima de mim?
Poucos centímetros mais baixa que eu, Sophi possuía um corpo menor e mais compacto, o que pela lógica nos fazia acreditar que era mais magra. Por isso era quase inacreditável que pudesse pesar tanto, eu mal conseguia me mexer para empurrá-la. Mas os meus protestos vieram altos, quando ela preguiçosamente saiu de cima de mim toda desajeitada, me amassando com seus cotovelos.
Ao me ver livre dela, levantei-me da cama e fitei aqueles olhos que cintilavam como um campo aberto ao sol. Não demorou para nos envolvermos em um abraço forte como sempre fazíamos quando estávamos muito felizes ou quando passávamos por algum problema. Era a nossa conexão especial de amigas-irmãs.
― Acabou, eu consegui ― disse ao me soltar, a mesma emoção efervescente que vi em seus olhos também presente na voz.
― Eu sempre soube que conseguiria, você se esforçou muito.
― Modéstia à parte, mas arrasei. Admito que estava um pouco tensa no início, mas depois que comecei a falar, não vi mais nada. Só apresentei ― suspirou soltando uma lufada de ar pela boca. ― Caramba, a adrenalina me deixou com as pernas moles.
Voltando a desabar sobre a cama, ela começou a contar tudo exageradamente nos mínimos detalhes e caretas como sempre fazia. Ora eu ria, ora os fatos me faziam lembrar de coisas que havíamos vivido. O tempo tinha passado muito rápido, eu me recordava com perfeição do dia em que a havia visto pela primeira vez, ainda na escola, quando eu tinha apenas doze anos e ela treze. Eu acabava de me mudar para a casa da minha avó, no interior, e estava passando pelo pior momento da minha vida.
Louise me matriculara em uma escola mista local, aconselhada pela psicóloga que eu frequentava. Os primeiros meses naquela instituição foram um tormento sem precedentes. Não por não conseguir fazer amizades, mas pela obrigação de ter que ter uma, para parecer uma pré-adolescente normal, enquanto tudo que eu desejava era deixar de existir.
Confesso que foi difícil permitir qualquer pessoa se aproximar, por isso demorou um tempo até que Sophi e eu conversássemos pela primeira vez. Além do fato de que ela era de uma turma depois da minha, o que fazia com que nos víssemos apenas nos intervalos entre as aulas. No entanto, era impossível me esquecer do dia em que aquela garota de beleza exótica chegou até mim no intervalo: "Oi! Você mora naquela comunidade de fadas, não é? A minha mãe conhece algumas de vocês. Ela me disse que você mora com a sua avó, isso é verdade? Você é órfã? Cadê seus pais?". E foi dessa maneira invasiva, ainda assim pueril, que começamos a nossa amizade.
Aos poucos nos tornamos melhores amigas, mais do que isso, Sophi era a irmã que eu não tive. Nunca existiram segredos entre nós, nem os de família, e provavelmente fora por isso que meus pais não se opuseram quando eu disse que retornaria para capital, mas que iria dividir um apartamento com ela em vez de voltar a morar com eles. Até mesmo porque se fosse para morar com Petre e Ava, talvez eu nem tivesse voltado.
― Ei, você está me ouvindo? ― Sophi estalou os dedos em frente aos meus olhos, trazendo-me de volta ao presente.
― Claro que estou. ― Claro que não estava, por isso me apressei em abrir o meu melhor sorriso inocente.
― Uhum. ― Ela estreitou os olhos, perspicaz demais para quem havia acreditado, mas sorriu em seguida, um sorriso travesso, daqueles que sempre me deixavam desconfiada. ― Como eu estava dizendo, você vai usar isto hoje à noite ― completou jogando no meu colo uma saia rodada preta e uma blusa de couro na mesma cor.
Capturando as peças, girei-as em ambas as mãos me perguntando em que momento ela tinha ido ao meu closet, pois eu nem ao menos tinha percebido. E o que ela quis dizer com usar aquilo à noite? Logo aquela roupa que havia sido um presente e que eu nunca usara por achar um tanto inapropriada.
― Mas pra que isso, vamos receber visitas essa noite? ― A encarei de volta, a minha testa franzida em contraste à sobrancelha que ela estendeu vaidosamente.
― Ahá! Eu sabia, você não estava prestando atenção em mim! ― Seu tom era a cartada final de quem não admitiria recusas, e ao jogar-se na poltrona ao lado, lançou-me um olhar que me preocupou. ― Vamos sair essa noite pra comemorar meu título de psicóloga.
Sair? Fixei-me em seu rosto esperando pelo momento em que ela sorriria dizendo que estava brincando, mas nada veio e automaticamente comecei a balançar minha cabeça. Ao contrário da maioria dos jovens da minha idade, eu não gostava de sair à noite. Não que eu nunca tivesse feito, apenas não gostava. Talvez fosse algum resquício da tradição real dos Aileen e dos Irwin que, para se preservarem ao longo das gerações, tiveram de se habituar a evitar os perigos noturnos de lugares desconhecidos. Entretanto, Sophi sabia disso, ela até tinha outros amigos para essas ocasiões.
Abri a boca para contestar e ela já foi logo me interrompendo:
― Não me venha com desculpas, você perdeu esse direito ao me ignorar. Ah, e acho melhor você passar uma maquiagem nesse galo aí no meio da sua testa, porque está horrível. ― E ela ainda ousava debochar da minha cara! Soltando uma risadinha vitoriosa, levantou-se rapidamente. ― Vou ligar para o Lucca.
Sabendo que eu iria protestar de qualquer jeito, a safada saiu correndo do meu quarto, e tão logo veio o bater da porta do dela. Ah, mas se ela achava que iria ficar por isso mesmo, estava muito enganada.
― Sophiiiiiii! Volta aqui!
Liz Aileen Irwin
Sophia Lowes
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