Do Outro Lado
No entardecer turvo, onde a névoa envelopava cada canto da cidade adormecida, Galadriel andava perdido em seus pensamentos e pressentimentos, movido por uma inquietação que lhe escapava.
Desde o momento em que despertara, algo parecia fora do lugar. As suas memórias, antes tão nítidas, agora eram uma massa difusa, como se a realidade ao seu redor tivesse se distorcido.
Caminhar pelas ruas desertas intensificava essa estranha sensação de deslocamento, como se o mundo que ele conhecia se afastasse dele lentamente.
A cidade, sua cidade, não parecia mais a mesma. O familiar tornava-se desconhecido, cada esquina revelava contornos que antes traziam conforto, mas agora se transformavam em sombras de um passado deixado para trás.
As pessoas com quem cruzava, rostos que outrora eram próximos, agora lhe ofereciam apenas olhares vazios e distantes, como se ele não existisse.
Ele tentara, em vão, estabelecer contato — até tentara falar com Kyron, um velho amigo de infância sentado na praça — mas este apenas passou pelo vazio ao seu lado, ignorando sua presença por completo.
Um calafrio percorreu o corpo de Galadriel. "Por que ninguém me vê?", ecoava em sua mente perturbada.
Enquanto a noite tomava conta do céu e a névoa tornava-se mais espessa, a sensação de que estava à beira de uma revelação iminente, algo obscuro e trágico, começou a dominar seus pensamentos.
Foi então que avistou um grupo na penumbra, pessoas vestidas de preto, curvadas sobre uma lápide solitária. Guiado por uma urgência assustadora, Galadriel aproximou-se, os pés quase deslizando sobre o chão molhado pela umidade.
Quando seus olhos pousaram na inscrição fria da pedra, o seu coração parou: era o seu nome gravado ali. Com a força de um golpe invisível, as memórias jorraram como um rio furioso. O som de espadas afiadas cruzando o espaço, o impacto do metal cortante e, em seguida, o vazio que o seguiu imediatamente. O entendimento abalou-o — ele estava morto.
Não era um pesadelo passageiro, mas uma dura realidade.
Como poderia não ter percebido antes?
Como poderia estar tão cego ao seu destino?
Perdido em desespero, Galadriel vagou pelas ruas de pedras vulcânicas, uma última tentativa de ser visto, ouvido, reconhecido. Mas independentemente de quantas vezes tentasse, as pessoas seguiam ignorando sua existência, transformando-o em um fantasma na própria cidade.
Até que, em meio à sua solidão sufocante, encontrou algo diferente — uma figura solitária parada na calçada. Uma jovem bruxa do clã da Luz com um olhar profundo, que refletia a solidão e compreensão que ele sentia.
"Você está perdido", ela disse, e Galadriel, sem forças para contestar, assentiu em silêncio.
"Eu estou morto", sussurrou, quase como se buscasse convencer-se da afirmação.
A bruxa, porém, não se surpreendeu.
"Sim", respondeu com ternura, "e precisa aceitar se quiser encontrar a verdadeira paz."
Nesse instante, Galadriel compreendeu uma verdade ainda mais amarga: ela também não pertencia ao mundo dos vivos.
Ele estava tão imerso em sua própria agonia que não perceberia de outra forma. Ao tentar questionar por que ninguém, exceto ela, conseguia vê-lo, a resposta veio acompanhada de um olhar profundo: "Eles não conseguem ver o que não conseguem entender. Somos sombra de um mundo que eles não mais conhecem."
Essas palavras carregavam um peso monumental. Galadriel finalmente entendeu que suas tentativas de se reconectar com os vivos eram em vão. O que atravessava agora era um limiar que eles jamais compreenderiam.
A resistência dentro dele começou a derreter, e uma quietude foi tomando seu coração. Não havia mais o que temer. A aceitação de sua própria morte se tornava uma porta que se abria lentamente, levando-o a um espaço de serenidade, tão distante do caos que o consumira.
Enquanto a névoa ao redor se desfazia, uma luz suave e acolhedora surgiu, envolvente como um abraço. Galadriel sentiu sua presença suavizar e, pela primeira vez em muito tempo, experimentou a verdadeira paz.
Seu olhar lançou-se uma última vez sobre a cidade ao longe, carregado de nostalgia, antes de finalmente desaparecer nas tranquilas águas do outro lado.
A porta para um novo mundo de infinitas possibilidades se erguia à sua frente, prometendo uma liberdade avassaladora, algo que nunca experimentaria entre os vivos. Sem as amarras do corpo humano e o peso da existência anterior, ele vislumbrava horizontes que antes seriam inimagináveis.
Ele não sabia exatamente o que o aguardava naquele outro lado, mas tinha certeza de uma coisa: não estava mais condenado a um destino imposto por outros. Não precisaria caçar nem matar criaturas sobrenaturais.
Poderia, enfim, ser o que sempre desejou e fazer o que seu coração realmente almejava. À medida que avançava em direção a esse mundo estranho e sedutor, a percepção de que a humanidade caminhava para um fim se tornava cada vez mais gritante.
Não se tratava de punição divina ou de vingança do sobrenatural. A humanidade estava criando seu próprio fim, dia após dia, com suas escolhas impensadas. Galadriel entendia, então, que o extermínio do mundo humano não seria resultado de uma maldição ancestral ou de um poder misterioso, mas da própria arrogância e negligência.
As forças místicas que habitavam a invisibilidade da realidade observavam a autodestruição humana com indiferença, cientes de que não tinham papel no colapso iminente da civilização.
Com essa nova compreensão, Galadriel sorriu — um sorriso que lhe era estranho há muito, talvez nunca tivesse sorrido assim.
Sem arrependimentos e sem olhar para trás, seguiu adiante. O que importava era o que se apresentava à sua frente: um novo começo, uma nova era, uma nova existência.
O caos, ele sabia, estava apenas começando, mas a paz agora preenchia seu ser, e o desconhecido era seu lar.
936 Palavras
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