O canto dos Beneditinos
*Este conto tem gatilhos, pode ser sensível para algumas pessoas.
Caminhou até a grade do viaduto Santa. Efigênia e pôs-se a olhar para baixo, a garoa fina molhava o piso, era uma das poucas vezes que via aquele viaduto para pedestre quase vazio, fora os fins de semana. Ele liga a Rua Santa Efigênia ao largo de São Bento, sempre cheio de gente, camelôs, pessoas indo para o metrô e à Igreja do mosteiro de São Bento, onde os Beneditinos executam cantos Gregorianos às seis da tarde. Era para lá que ele se dirigia, ia ouvir aquelas vozes executarem com perfeição cantos que parecem celestes, não dá para explicar, só ouvindo para sentir o que é aquela música e o que ela pode fazer. Lá embaixo, na calçada, sombrinhas e guarda-chuvas dançavam em perfeita sincronia de cores e tamanhos, os carros passavam lentos pela rua e o movimento em direção ao metrô estava aumentando. Na outra ponta do viaduto estava uma mulher, também olhando para baixo, vestida de azul, uma criança a acompanhava estática, segurando na grade, havia algo estranho no ar, era uma atmosfera que ele conhecia, ela não estava apenas observando o movimento, ia jogar-se de lá, via isso. Ela sentiu que estava sendo observada e olhou em sua direção, de onde ele estava na ponta oposta do viaduto, mal podia ver sua fisionomia, mas não precisava disso, sabia da agonia profunda dela, sentia o cheiro de suas lagrimas salgadas, a criança também o sabia, também chorava.
Iniciou uma caminhada lenta na direção da mulher, se demorasse poderia ser tarde, mas se acelerasse ela se jogaria antes que ele tivesse a chance de falar com ela, ninguém no viaduto naquela tarde com garoa de quarta-feira. Nem mesmo os costumeiros ambulantes, quinhentos metros até o fim do viaduto, metros que eram vencidos a cada passo. A mulher percebeu a intenção dele. Ele parou, ela apertou as mãos na base da grade. A criança começou a chorar mais alto. Com um vestido fino azul e florido, ela tremia de frio, a criança com um agasalho de capuz olhou para ele, parou de chorar. A mulher também se virou em sua direção. Ali a pelo menos três metros da mulher, o olhar dela era como aço polido, frio e duro, a criança correu na direção do estranho, abraçou-o e a mulher então disse.
— Estava te esperando, agora posso concluir o que comecei, cuide do meu filho.
Ele estremeceu ao ouvi-la, sua voz era densa e triste, ele de início não respondeu, ficou olhando-a, sabia que cada palavra naquele momento era crucial, e uma palavra em falso seria o fim, ela estava, agora, sentada na grade, com o corpo pro lado de fora do viaduto, tudo era silêncio.
— Não deveria fazer isso. — começou mal, pensou ele — Quero dizer, seu filho. Ele precisa de você.
— Não precisa não, ele tem apenas dois anos e jamais se lembrará disso, nenhuma memória antes dos três anos sobrevive e ele agora tem você. Se você não tivesse aparecido ele ia comigo lá pra baixo. Prometa que irá cuidar dele.
— Tudo bem, eu prometo. Mas passe para o lado de cá.
Ela sorriu um riso franco e cansado.
— O único lado para o qual irei passar é para o outro.
Projetou-se para frente de forma inesperada, mas não se soltou de todo, pediu para que ele se aproximasse com a criança para que ela pudesse beijá-la pela última vez. Ele o fez com a criança ao colo aproximou-se, pensou em agarrá-la, mas se o fizesse, correria o risco de deixá-la cair e não conseguiria segurar nem um, nem outro. Ela beijou a criança e olhou-a por mais de um minuto, então ele estendeu a mão, o sino da igreja iniciou seu badalar, dezoito badalos, representando às dezoito horas daquele dia chuvoso, como num relâmpago ele clareou a mente.
— Porque antes de partir, não vem comigo ouvir os cantos Gregorianos? Depois poderá fazer o que quiser. — ela ficou em dúvida e isso era ótimo — Olha, não quero saber o que você passou, nem mesmo os seus motivos, eles devem ser muitos para você decidir fazer o que irá fazer. Cumprirei minha promessa e cuidarei desta criança, também não tentarei impedí-la, mas peço em troca que venha conosco ouvir os cantos Gregorianos, depois parta com Deus e em Paz, se é que encontrará isso após saltar. Têm esta dívida comigo.
Esta última frase foi dita como num sussurro, um pesar contundente. Ela aquiesceu com a cabeça um sim, deu-lhe a mão e seguiram para a igreja. Não falaram nada, lá dentro, apenas algumas pessoas que por conta da chuva se abrigaram e aproveitaram para ver a apresentação dos Monges Beneditinos. O órgão e seu som formidável, as vozes uníssonas, formavam notas e cores maravilhosas. Ela chorou, olhou para o lado e a criança com a roupa úmida dormia de cansaço e embalada pelo som das canções.
Exatamente quarenta minutos depois a apresentação acabou. As pessoas saíram e eles ficaram por lá. Ele com os olhos fechados e a criança adormecida no colo, ela com olhar maravilhado e silencioso, sorriu, abraçou-os.
— Eu Te Amo, não importa sua decisão, nem o que passou, sempre irei te amar — ele disse isso ao ouvido dela — Sei que quer mais que isso, mas não o terá se desistir.
A mulher agora chorava copiosamente, nunca alguém lhe disse que a amava de forma tão pura e verdadeira, levantou-se, pegou o filho no colo, agradeceu e saiu caminhando, próxima à porta da igreja, olhou pra trás e disse:
— Não desistirei.
Ele não mais a viu por muito tempo. Cinco anos depois, esperava por mais uma apresentação dos cantos Gregorianos, uma bela mulher sentou-se ao seu lado, um garoto de mais ou menos sete anos estava com ela, todos sorriram e não foi preciso palavras para ver que a vida prevalecera apesar de tudo.
Ps: Em 1997 no viaduto Santa Efigênia, vazio como num fim de semana, era quarta-feira de garoa as 17:30, eu molhado pela garoa, observava o movimento, na outra ponta do viaduto uma mulher olhava para baixo, a pelo menos cinco metros antes que eu chegasse a falar algo, ela saltou, a criança chorava, eu também chorei, a polícia levou a criança, ouvi com pesar e só, o canto triste dos Beneditinos... Queria que tivesse sido diferente, nunca me esquecerei.
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