
Um natal não tão solitário
Mais um dia de trampo encerrado para Gilberto, que deixava o carro Fiorino branco plotado com a logomarca da lavanderia na empresa e guardava as chaves no lugar costumeiro. Despediu-se de seus colegas começou sua caminhada como nos últimos dias, da lavanderia até o ponto de ônibus próximo ao shopping, pertinho da rodoviária. Seriam aproximadamente trinta minutos de caminhada para chegar, esperar por algum tempo e embarcar no coletivo para chegar até em casa. De seu trabalho não havia uma linha direta e sua moto estava na oficina, em plena véspera de Natal.
Belo período para a moto deixá-lo na mão, no momento em que, apesar da pandemia, as oficinas estavam movimentadas para revisões nos veículos para a galera viajar. Os destinos favoritos do pessoal de Montes Claros, na região norte do estado de Minas Gerais, eram Porto Seguro, na Bahia, e Guarapari, no Espírito Santo. Em comum, a praia.
Lembrou-se da piadinha: “O que têm em comum o mineiro e o rio? Ambos correm para o mar.” Com razão, visto que Minas Gerais não tem mar. E aquela região específica, na maior parte do ano, convivia com seca e encarava um calor escaldante, com chuvas quase irrisórias.
Que se danasse a pandemia! Mineiro quer mar, uai!
Mas ele, Gilberto, não pretendia ir. Tinha amor à vida, conseguira o emprego de entregador de lavanderia há dois meses e não tinha grana suficiente para viajar nem se quisesse. Ele sossegaria o facho na véspera de Natal, não importava se morasse sozinho. Beto, como o apelidavam, tinha seus trinta anos, havia tomado um pé na bunda da ex há cerca de dois meses e tirara esse período para refletir sobre as mancadas que dera. Sim, fora um embuste que inventara de tentar sustentar um namoro e uma aventura ao mesmo tempo, dançando nas duas.
Ansioso para chegar em casa e se livrar daquela máscara o quanto antes, o homem de cerca de um metro e setenta de altura e físico de peladeiro de fim de semana (que ele tentava manter andando de bicicleta) correu assim que avistou o ônibus. Alcançou assim que parou, entrando esbaforido e passando pela catraca. Por sorte, aquele tinha ar condicionado para amenizar o calor do meio-dia.
Chegou, livrou-se da máscara, almoçou e passou o resto do dia na internet conversando com os amigos. Estava cansado e era melhor ficar sossegado mesmo. Morar sozinho não era tão ruim, sobretudo quando se queria recomeçar. Este ano fora difícil.
Beto era de Bocaiuva, cidade próxima a Montes Claros. Há cerca de dois anos, viera para conseguir um emprego e começar a estudar na faculdade. Era melhor que transitar entre duas cidades. Por conta da pandemia, as aulas tiveram que ser online com uma internet bastante instável, perdera o emprego anterior, pois a pequena lanchonete em que trabalhava como entregador acabou por encerrar as atividades. E voltar a Bocaiuva não era uma boa, tanto ele quanto seus pais decidiram só voltarem a se encontrar presencialmente quando tivessem certeza de que não haveria riscos.
Então, sim, o Natal dele seria solitário em uma pequena casa no bairro Vila Greyce. A casa tinha dois cômodos, limpos e com alguma organização. Para uma pessoa só, estava de bom tamanho. Por volta de dez da noite, sentiu sono. Era meio atípico dormir naquele horário, mas fazia algum sentido por ter trabalhado intensamente na última semana. Estava pregado.
Ligou o ventilador, apagou a luz e deitou na cama para dormir. Não demorou a pegar no sono, mas decorrido algum tempo, acordou com um barulho. Já até suspeitava quem seria o autor.
― Hm... – murmurou. – No mínimo deve ser o Freddie querendo sair.
Tateou a mesinha de cabeceira, onde encontrou o smartphone. Eram onze e quinze da noite ainda. Ligou a lanterna do telefone, que revelou que um gato estava enroladinho no canto da cama dormindo a sono solto. Era preto, uma das patas dianteiras era toda branca, e as demais pretas com as pontas brancas, tal como o peito e o focinho. No nariz, uma mancha preta que parecia um bigode, lembrando o cantor Freddie Mercury, vocalista do Queen, que lhe inspirava o nome.
Se não era o gato que estava fazendo barulho, quem seria?
Saiu do quarto de fininho, alcançou uma vassoura encostada em um canto e a empunhou. Não iria deixar nenhum ladrão escapar sem antes quebrar um cabo de vassoura na cabeça! Aliás, tentar roubar um pobre assalariado era uma covardia, ele pensava.
O barulho vinha da sala e Beto se esgueirou até lá. A luz da lua quase cheia entrava pela vidraça sem cortinas e iluminava algo bastante bizarro. Um ser bem diminuto fechava a porta e começava a caminhar pela sala. Tinha a altura de uma criança de cerca de um ano de idade, orelhas pontudas e cabelos verdes. Se não fosse a sua decisão de ter abandonado o álcool há cerca de um ano, poderia botar a culpa nos porres que tomava à época. O mais bizarro de tudo era que a tal criatura usava camisa, calça e sapatos brancos e uma espécie de coroa decorada com espelhos, penas de pavão e com várias fitas coloridas penduradas, caindo até a metade da panturrilha do pequeno ser.
“De onde saiu esse catopê em miniatura?”, pensou com os olhos arregalados. Perguntava-se também por que estaria se vestindo como um dos participantes do congado que ocorria nas tradicionais Festas de Agosto, sendo que era dezembro e véspera de Natal.
― Ei – disse a criatura. – Aparece aê, cara. Vim te buscar.
Ainda com a vassoura nas mãos, Beto apareceu e já foi perguntando:
― Quem... Ou o que é você?
― Sou um duende.
― Não é uma alucinação minha?
― Por que acha isso?
― Nunca vi duende vestindo roupa de catopê.
― Queria vir a caráter e não, não sou uma alucinação.
― Então que trem você é?
― Sou um duende do Papai Noel, uá!
― Cê acha que vou acreditar em Papai Noel, moço? Não sou menino, não!
― Afe... – o duende suspirou. – Só podia ser mineiro. Desconfiado...
O pequeno ser estalou os dedos e suas roupas de catopê deram lugar a roupas de duende mesmo. Camiseta listrada de vermelho e branco, calças verdes com suspensórios, sapatos pontudos e gorro vermelhos. Beto se perguntava se ele realmente estava sóbrio, mesmo que estivesse sem beber nada alcoólico nos últimos doze meses.
“Acho que o refri que bebi na janta tava batizado...”, pensou. “Mas quem batizaria meu refri?”
― Aiaiai, ô cara difícil! Custa acreditar no que tá vendo?
― Tá difícil, viu?
― Tanto faz. Você é o Gilberto, né?
― Sou. Pode me chamar de Beto.
― O Papai Noel me pediu pra te buscar, precisa de uma ajudinha sua.
― Por que eu deveria acreditar em você, pintor de rodapé?
― Larga de ser desconfiado! O bom velhinho tá requisitando sua ajuda por conta da quarentena. Ele te explica.
Não deu tempo para Beto nem pensar em nada, o duende estalou os dedos e o homem sentiu um vento congelar seu corpo, vestido apenas com um pijama curto. Obviamente, ele se abraçou enquanto começava a tremer e bater os dentes. Seus pés descalços estavam enfiados em uma grossa camada de neve, dormentes pelo frio. Naquela escuridão gelada, a única fonte de luz vinha de uma casa rústica toda decorada e trabalhada no clima natalino.
― Bora! – o duende disse enquanto puxava o homem pela camiseta do pijama.
Beto não teve outra escolha a não ser acompanhar, mesmo que suas pernas quase nem se mexessem por conta de tanto frio. Aliás, aquilo era frio demais para um norte-mineiro vindo de uma região com um calor de esturricar durante grande parte do ano.
Entraram na casa aconchegante e Beto seguiu o duende. Ainda tentava entender o que estava acontecendo, mas decidiu simplesmente seguir o fluxo e saber no que isso iria dar. Apesar do aquecedor funcionar, ele ainda sentia frio, de tal modo que arrepiava todos os pelos de seu corpo e os cabelos lisos e curtos.
Foi quando viu na poltrona da sala um senhor rechonchudo, de barba branca e que vestia camisa branca, calças vermelhas seguras por suspensórios e encarava, com seus olhos de grau, uma tela de smartphone. Ele encarou Beto e sorriu:
― Ora essa, se não é o Gilberto!
No mesmo instante, com um estalar mágico de dedos, o senhor idoso mudou a roupa de Beto. Em vez do pijama curto, vestia calças jeans, camiseta de manga comprida e casaco, além de uma máscara. Foi convidado a se aproximar e recebeu o smartphone:
― Gilberto, meu rapaz, eu mandei buscá-lo para poder dar uma mãozinha para mim. Com essa pandemia correndo solta por aí, tenho que me precaver, sabe?
― Ah, claro, Seu Noel! – Beto respondeu assimilando que de fato estava conversando com o Papai Noel. – Mas como posso ajudar?
― Alguém me escreveu uma cartinha, dizendo que conhecia um rapaz que sabia mexer com tecnologia e que estava trabalhando para poder montar seu próprio negócio, mas que estava triste por ter tentado uma vez e não conseguiu fazer dar certo.
― Essas cartas não são o pessoal dos Correios que adotam?
― Uma parte, sim. Outra parte das cartinhas vem para mim. Poucos adultos veem e acreditam em mim, porque há algo em você que poucos têm.
― E o que é?
― O desejo de melhorar a si mesmo. Não somente a aparência, nem a carreira profissional, mas o desejo de corrigir seus erros e se tornar uma pessoa melhor e mais empática. A Clarinha me contou tudo isso na carta que recebi.
Uma breve sombra passou pelos olhos de Beto, que começaram a marejar. Maria Clara era sua sobrinha, filha de sua irmã mais velha. Eram tão apegados que quando ele ia ver os pais, passava na casa de Fernanda, para ver a irmã, o cunhado e principalmente a sobrinha de dez anos, que adorava principalmente jogar bola com ele. Ela o tinha como uma espécie de irmão mais velho, que a incentivava a dar os primeiros passos para seu sonho, de ser uma jogadora.
Entretanto, fazia cerca de três semanas que ela partira por conta daquela maldita doença e ele nem pudera se despedir...
― Sinto muito por ela, rapaz. Mas tenho certeza de que ela vai ficar feliz com o seu sorriso, de onde estiver.
Ele sorriu timidamente.
― Há outras Clarinhas e Betinhos aguardando os presentes para quando acordarem. Ainda estou aprendendo a lidar com as tecnologias de hoje, e gostaria de sua ajuda para controlar o trenó com os presentes. Ele pode ser controlado remotamente e, como sei que seu sonho é ter um drone, acho que você vai se divertir com um test drive no meu trenó.
Beto abriu o aplicativo e começou a se familiarizar com ele, até que conseguiu fazer o trenó vermelho, desta vez sem as tradicionais renas, decolar. Não foi difícil fazê-lo percorrer o roteiro já programado por todas as partes do mundo e, à meia-noite, a distribuição começou na Oceania, depois, foi à Ásia, Europa, África, até as Américas.
Na etapa final, um estalar de dedos o colocou no trenó, que a alta velocidade o levou até sua casa junto com o duende, que lhe deu uma caixa embrulhada em um papel preto e dourado.
― Toma! – ele disse. – Este é o seu presente, tem um bilhete do Papai Noel dentro!
Beto agradeceu e viu o trenó levantando voo e sumindo no céu estrelado. Entrou em casa e se livrou do casaco e arregaçou as mangas da blusa. Depois se trocaria, primeiro queria abrir seu presente. Dentro da caixa havia outras duas caixas, uma grande e outra pequena. Na pequena, estava uma jaquetinha amarela para colocar no gato Freddie. Na grande, tinha um drone novinho e um bilhete que lhe fez brotar um sorriso no rosto:
“Beto,
Clarinha pediu para que eu te desse este drone e com certeza está feliz por você. Divirta-se e sorria mais.
Seu amigo,
Noel.”
Por: Vanessa Sakata
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