Metáfora de Calíope
#PRATODOSVEREM 👁️| banner de cor verde-claro com um ramo de folhas do lado direito. No conto inferior esquerdo, um carrinho de bebê de flanela branca e suporte de rodas de madeira. Ao meio, lê-se "Metáfora de Calíope" nome do conto. Ele foi escrito por Letícia Vitória
Exalo o ar puro da rua benignamente. Escuto sons. Passos se arrastando aos quatro pontos cardeais. Estou no centro de tudo o que me acontece à volta. Não giro neste centro. Tampouco gira ele comigo. Esse mar de gente me conforta. Muito embora não dance os passos que eu mesma aprendi a dar desde pequenina. Em formato de tesoura, porém ainda assim, um atrás do outro. Muito embora eles me fizessem cair.
Quem me dera naquela idade eu já soubesse um dos motivos pelos quais tinha de chocar-me facilmente contra uma das paredes à volta do espaço onde me punham para praticar meus tenros passinhos diminutos.
Sempre tinha medo de ficar em pé quando me punham. Eu ficava chorando. Queria estar no chão e senti-lo frio sob minhas perninhas rechonchudas e inclinadas às férteis arteirices infantis.
Minha casa sempre fora uma redoma.
O centro do mundo.
O meu centro do mundo.
Ali eu estava guardadinha, miúda. Como numa mantinha de bebê.
Mamãe dizia-me que era lindo me vir sorrir. Principalmente quando me aconchegava à sua barriga, encostando meu rostinho ali enquanto este alargava-se num sorriso puramente airoso e meus bracinhos ficavam suspensos no ar. Mamãe disse para mim recentemente que gostava quando era surpreendida assim. Exatamente assim. Ela sorria! Sim, sorria. E dali a pouco era o suficiente para que suas mãos moldassem-se ao formato de meu rosto redondo e beijasse minhas bochechas num rompante deleitoso. O que fazia com que sorrisse embevecida e unisse as duas palmas das mãos as batendo juntas numa alegria que parecia infindável.
Conseguia ouvi-la rindo de meus artes. O riso era tátil. Suas mãos gostosas e quentinhas seguravam minha fronte pequenina amorosamente. Elas estavam lá. Sim. Estavam lá para quando eu quisesse senti-las me dando afaguinhos.
Sempre estiveram lá. E sempre as reconhecia.
E lá se vinha minha irmã mais velha. Aos protestos e quase-prantos, pois a atenção que era para lhe ser dada, cabendo isto à mamãe, roubara-lhe eu. Tão somente a mais nova figura pequerruchesca da casa.
Não tinha eu lá estas culpas todas. Não. O porém foi que, quando menos se tinha esperado, Verena estava afeiçoada a mim. Comigo nos braços. Louca por mim. E com ciúme já aguardado, acho eu; como assim foi em minha época com mamãe. Ela não me soltava. Não importava quem chegasse perto para me ver. Verena não estava nem aí. Ela não queria saber.
Tinha eu meu primeiro ano de vida.
Todavia não consigo lembrar da maneira que via os rostos da mamãe e da Verena. Se conseguia vê-los, embora tão pequena fosse, de maneira nítida. Lembro de ouvir estalos de dedos. Uma, duas, três... Por vezes. Incontáveis delas, por parte de minha irmã e de nossa mãe. Não posso dizer que talvez não visse coisa alguma. Porque via.
Borrões.
Houve um dia em que minha irmã se assustou com o fato de que eu seguia o barulho e reagia ao estalar de seus dedos. Mas não aos seus movimentos irrequietos. Ela os testou mais de uma vez.
Depois ofegou. Me pôs de volta ao chão. Afastou-se? Não sei. Mas eu ouvi gritos: a mamãe. Ela tinha ido chamá-la para dizer o que tinha descoberto. Eu me virei e comecei a me arrastar pela sala alguns instantes depois, ignorando o som de seus pés.
Porém confusa, inda assim.
Isso era o que recebia o nome de impotência?
Verena descrevia-me algo. Este algo, dizia-me ela, ao acordar não uma vez ou outra, quando pedia, mas quase sempre:
— Veneza, a luz desponta hoje. Lá no alto. A luz é alegre. As flores saem para vê-la toda vez que se anuncia. O céu, já lhe falei dele: é azul e junto dele há algodões brancos e disformes...Veneza, esta é a forma com a qual descrevo-lhe o dia.
Assim sendo, espreguiçava-me. Punha meus braços ao alto, de modo que pudesse esticar meus dedos. Como se quisesse, pudesse alcançar o céu azul. E a luz da qual ela disse que todos chamavam sol.
Gargalhava. Verena tinha uma mania incontrolável: mania de gostar de poesia.
E então, por isso me dizia:
— Amo te descrever os aspectos diáfano-noturnos. Pode achar estranha a forma como lhe falo. Mas é exatamente assim que gosto de me expressar.
— Bem... Não é como se tomasse como algo horrível. Eu gosto de lhe ouvir falar, Verena. Meus ouvidos são amigados às vozes.
À época, já tinha aprendido a articular palavras e frases inteiras. E, a partir daí, já podia ser entendida pelas duas mulheres que viviam à minha volta, me protegendo dos perigos invisíveis a mim mesma. Chegava até a ser engraçado saber que elas duas me protegiam dessa maneira. Ria das suas preocupações excessivas para comigo.
— Acalmem-se vocês duas. Este passarinho que mora num ninho confortável não voará tampouco em direção à janela — era o que eu dizia.
— Ora. Temos de nos preocupar, Veneza — dissera minha irmã àquele dia, com um melisma doce e tristonho em seu tom de voz solene. — Temos medo de que você se machuque lá fora. E de que alguém também seja arrogante, te trate mal e não te entenda. Sequer tente.
Não ralharia com ela se o meu desejo de enxergar o dia fosse menor do que todas as outras coisas que pudesse fazer sem um pouco de orientação que fosse.
— Ninguém poderá me entender se não puderem me vir, Verena! Eles têm de me vir. Ora. Eu mesma me acho tão ou mais estranha por não poder enxergar! Por distinguir apenas o seu rosto e o da mamãe... Ainda não consigo me dar por satisfeita! — as palavras pesam-me quando as profiro: ainda parecem suspensas em minha boca. Engulo a seco.
E tão seca e tão precisa é a minha vontade de chorar.
— Veja lá como fala. Não aja e não fale assim tão ríspida! A mamãe pode escutá-la! Já pensou no quanto ela se sentiria impotente e magoada?! Oras, minha irmã! — ouço-a largar as roupas que dobra num tamanho ímpeto e cólera que nunca pareceram-me comuns até àquele dia.
— Oh, Verena! Desculpe, desculpe-me. — girei para onde achava que a sua voz soava mais alta.
Minhas sobrancelhas arqueadas denunciavam o medo que a mínima ponta de discórdia entre elas e mim poderia causar se eu a partir daquela vez não aprendesse a medir minha ferina angústia.
— Oh, não! Não se desculpe, minha irmã! — correu para longe das roupas e veio até mim, embebida em consternação; senti o seu beijo e o seu toque numa de minhas mãos. Ela as beijou e disse: — Mas... Tente não falar assim para que mamãe ouça! Ela ficará ressentida. Eu ficarei triste também. Por favor!... — sussurrou ao meu ouvido.
— Tudo bem, tudo bem. De agora em diante terei este cuidado... — falei decididamente, com medo de que minhas queixas a incomodassem mais do que daquela vez. Eu não queria magoá-las mais assim ou de qualquer outro modo. — Mas... Diga-me... Você vê as tardes passando, não vê? Como elas te parecem? Descreva-as, descreva-as! Por favor, Verena! — peço eu ferozmente, depois do tempo que passamos caladas — e que pareceu-me eterno.
— Sim! As vejo! Eu as vejo! E elas são...
Verena as descrevia bucolicamente. Pedi-a para ser ajudada pela poesia. Enquanto ouvia, formulava metáforas sobre mim mesma e sobre os borrões:
Ora como o dia,
Ora como a tarde.
Claros.
Quase adormecidos também.
Oscilando. Entrançando-se.
Porque quando a noite chegava, eu dormia.
E minha irmã dizia que ela era triste.
E detesto chorar numa noite escura.
— Vamos sair hoje. Dar um passeio pelo centro da cidade e visitar uma ponte. Quero que te seja uma surpresa — ouvi minha irmã dizer.
Saltei da cama em polvorosa. Só não pude pular por causa da minha bengala em contato com o chão, que antes estava encostada à cama. Tateei à sua procura e me apoiei nela segura de mim. Eu podia cair, claramente. Então tive que me contentar em mexer os dedos dos pés em uma harmonia singela.
— Isso! E quando iremos, Verena? — sussurrei animadamente a interjeição, movendo as sobrancelhas para cima.
— Ora. Neste instante! — pelo seu tom de voz, ela estava com vontade de rir da minha expectativa inquebrável. Nem liguei. Ela deve me achar uma bobona toda vez que pareço querer estar feliz à beça e demonstrá-la. Mas tudo bem. Ela também não fica atrás com a proteção exagerada que me oferece.
Besta és tu, ó Verena!
— Anda, vem. Vamos nos aprontar. Eu estou do seu lado. Acho que consegue percorrer daí até aqui. A distância é pequena. Mas continuarei por perto, não se espante. Vou te guiar até o banheiro.
— Ok. Vá na frente. Eu saberei por onde está indo pelo barulho de seus pés — lhe assegurei — Apenas segure o meu braço para caso eu venha a tropeçar em algo, por favor — fiz gesto com o meu membro esquerdo suspenso.
Segurei firme no meu fiel aparelho de locomoção e segui-a.
Verê já pretendia sair porta afora o quanto antes, me puxando pelo braço, mas bem de leve, enquanto de minha parte insistia para que meus pés ficassem plantados no chão por mais alguns segundos para que pudesse avisar à mamãe:
— Ô maaaanhê! A Verê vai me levar pra passear agora, viu?! — gritei em direção à cozinha, ansiando ser ouvida.
— Xiu, Venê! Não precisa denunciar a fuga alheia assim, né? Se cair um explosivo na nossa cabeça numa manhã tão linda e bucólica como esta que se faz hoje, vai anunciar pra mamãe aos berros também? — me impele, com voz tão fina e cortante que arruina o meu tom de metodismo e seriedade: rio. — Vamos logo! Você começou a reclamar de uns tempos pra cá de que só saía atrelada a nós! Então por favor. Me dá sua dó! Tsc!
— Ai, tô indo, tô indo. Sua chata. E depois, quem não avisa da bronca que vamos tomar sou eu, né? Engraçadinha!
Eu reclamava e Verena quase me fazia tropeçar nos meus próprios pés, me puxando e ignorando o meu protesto disfarçado de vontade genuína.
Eu queria ir à rua. Ouvir os sons dela. De pessoas conversando. Das buzinas. Do mundo real. O mundo que era pra ser o meu centro.
De verdade. E eu queria visitar a ponte da qual tinha se originado o meu nome também.
E eu podia ir ver o mar, pois estava com meus óculos com lentes de aumento.
A ponte Veneza dava vista ao mar. É curioso, porque a verdadeira fica na Itália. E a ponte que leva meu nome não fica lá. E nem passa por cima de um rio.
— Ei! Eu ouvi vocês lá da cozinha cochichando! Sim, eu ouvi você, Veneza! Podem ir. Verena! Toma conta da sua irmã, hein?! Às vezes te falta um parafuso mas eu te amo! Eu amo vocês! — com os fios dos cabelos desgrenhados acima e detrás da cabeça, mamãe surgiu à janela do apartamento, gritando para nós e acenando de maneira enérgica com o pano de enxugar os pratos.
Verena parou para escutá-la e eu também parei. Ela riu e eu ri junto.
— Amém! — trinou de volta. — Nós te amamos também, mãe!
Amo metáforas. A essa, dei o nome de Calíope. Porque ele não via as pessoas na rua.
Tinha uma venda nos olhos. Porém, mesmo sem vê-las, as abraçou. Amorosa e empaticamente as abraçou. E, por assim ser, faço uma consideração:
O amor pelo desconhecido exala do invisível aos olhos?
Porque sinto isso por Verena e mamãe. Embora as reconheça tão somente pelo toque.
A progenitora observou-as atravessar a faixa de pedestres, observou o semáforo: vermelho, verde. Pessoas atravessando a rua. Vindo dos quatro pontos cardeais. Separando-se depois. Algumas se aglomeravam em grupos distintos. Sorriam. O diáfano clareava o centro da cidade. O centro de tudo. Do mover-se e do experimental.
As filhas de Claríndola haviam mergulhado em meio ao mar de gente e sumiram dentre ele.
Suspirou, debruçando-se no parapeito da janela segurando o pano de pratos com o rosto apoiado numa das mãos, apertando as vistas por conta do sol:
— Quem será você, quem será... Pela rua tão à toa.... Nem parece ver o sinal verde à tua frente... Eu vejo aqui do alto... Por que tu ri à toa?...
Recolhe-se para dentro. Só resta esperar que Veneza volte junto da irmã, sã e salva.
Escrito por: Antonina_Esquilo
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