Então te vejo
O que eu não queria ver...
Mas ainda assim vejo...
O relógio marca 11:00 da manhã de sexta-feira, e André só pensava em ir pra casa porque estava com muita fome, mas as suas expectativas foram frustradas, quando a sua professora lhe chama:
—André, preciso falar contigo. Tem como você ficar uns minutos depois da aula? — Pede a professora sofia.
—Posso, professora...— responde com uma certa má vontade.
—Muito obrigada! — Responde a professora sorrindo.
Os minutos se arrastaram até que a campainha do sinal batesse e todos os alunos saíram correndo em direção ao portão, em apenas alguns segundos a sala de aula ficou vazia permanecendo apenas André e Sofia.
Enquanto André permanece sentado, Sofia puxa uma cadeira, senta próximo e olhando em seus olhos começa a falar:
—André, na semana que vem, a nossa escola comemorará a semana da inclusão e esse é o seu ultimo ano da escola, por isso eu queria te convidar para você realizar uma palestra sobre deficiência... O que você acha? — perguntou olhando nos seus olhos, enquanto um sorriso começa a esboçar em seu rosto.
—Professora, você sabe o quanto eu adoro escrever e que sempre fui um bom aluno em português, porém em menos de dois meses, eu me formo no ensino médio e irei pra outra escola, por isso não vejo nenhum sentido em fazer uma palestra sobre inclusão... — retruco de cabeça baixa.
—Meu avó me dizia que nem toda a semente que plantamos iremos colher, por outro lado as vezes colhemos frutos que nunca plantamos a semente. Por isso pense que seria uma oportunidade única, de você falar de sua luta e de se mostrar! — insiste Sofia tocando levemente o seu braço.
—Mas... Me mostrar que é o problema! Como você sabe, professora eu tenho baixa visão e sou bem-adaptado... Depois que coloquei as lentes de contato, quase ninguém percebe! Por que, justamente agora, eu vou expor a minha fraqueza para a escola toda?— Indago ainda de cabeça baixa, torcendo as mãos de nervoso.
—André, a deficiência não é a sua fraqueza! Como também não é um carma que se tenha que expurgar! É apenas uma condição física, que pode até te limitar, mas nunca vai te impedir! Agora é um momento muito importante em sua vida, imagina você dizendo para uma escola toda, que está vencendo essa etapa, que todas as suas dificuldades foram superadas? Que você venceu exatamente igual a todos, vai ser muito mais que uma palestra, porque não será apenas as suas palavras, será a sua história vai falar por si mesma!— falou exibindo um sorriso incentivador.
—Sabe, professora? Eu tenho muito medo do que as pessoas vão pensar de mim depois dessa palestra... — sentado na minha cadeira começo a bater o pé no chão de uma forma descompassada para disfarçar o meu nervosismo.
—Eu acredito que o pensamento das pessoas não deve ser a sua preocupação... — responde Sofia enquanto levanta os óculos com a ponta do indicador, um gesto que ela sempre repete quando está pensando cuidadosamente no que vai dizer e continua a falar: — Eu entendo o seu medo, até pelas situações que você já passou, mas tenho certeza de que as pessoas que gostam de você vão continuar gostando e ainda acredito que essa pode ser uma ótima oportunidade para outras pessoas te conhecerem e você ainda fazer novas amizades!
—Sim, pode ser... — Respondi meio reticente, mesmo diante do sorriso incentivador de Sofia. —Mas, e se eu aceitar; o que eu deveria escrever? Como abordar o tema? Confesso que não sei como escrever...
—Ah, acredito que você deva escrever e se preparar da forma que você achar melhor, mas acho que posso te ajudar— Mal termina de concluir a frase, encaminha a sua mesa abrindo a sua bolsa e começa a revirar uns papéis.
Enquanto ela está distraída, começo a observá-la, ela é muito bonita, um rosto delicado, olhos castanhos, bochechas rosadas que combinava com o batom que usava, tinha um cabelo castanho cacheado e muito longo que mesmo preso a um rabo de cavalo alto ele conseguia chegar bem no meio de suas costas, usava brincos de argolas douradas, uma camiseta branca sem detalhes e uma saia longa e rodada com uma estampa florida...
—Achei! — diz com uma voz triunfante, despertando do transe em que eu estava.
Se aproximando, me entrega algumas folhas e começa a falar:
—Esse texto se chama "Três Dias Para Ver" de Helen Keller acredito que ele vai te ajudar muito! — disse voltando a sentar perto de mim.
— Mas quem é essa autora? — Pergunto curioso examinando as folhas.
—Ela foi uma escritora, filosofa e jornalista que nasceu no Alabama, por causa da meningite ficou cega e surda, sendo a primeira aluna surdocega a concluir um bacharelado. Ela escreveu vários artigos e fez varias palestras pelo mundo sobre a inclusão. — disse com um brilho de entusiasmo na voz, — esse é o meu texto preferido de sua autoria, nele ela conta o que faria se tivesse três dias para ver.
—Poxa vida! Isso sim é um exemplo de superação! — respondi admirado.
—Ela realmente era uma mulher incrível! A princípio se comunicava através do uso de libras, ela estendia a mão e a pessoa fazia os sinais na palma de sua mão e respondia da mesma forma, com o tempo ela aprendeu a falar...—Concluiu Sofia ainda mais empolgada.
—Mas isso não é possível!—Retruco espantado. —Se ela não enxergava pra fazer a leitura labial e nem ouvia para poder reproduzir o som, como isso era possível?
—Com a ajuda de sua professora, Anne Sullivan, ela aprendeu! Ela tocava na garganta da Anne enquanto ela falava, sentindo a vibração e reproduzia o som. Na verdade ela possuía uma sensibilidade tão grande que se tocasse em uma árvore e tivesse um passarinho cantando ela conseguia sentir a vibração do canto desse pássaro!— concluiu sorrindo.
—Realmente ela era uma pessoa incrível! — exclamei com a mão no queixo.
—Sim, ela era! Mas a gente só descobriu isso porque ela teve a coragem de contar a sua história e que tal você fazer o mesmo e permitir que as pessoas conheçam a pessoa incrível que você é? —Pergunta me desafiando.
—Eu não acho que a minha vida seja tão interessante como a da Helen Keller...— respondo pensativo e respirando fundo continuo a falar:
—Eu aceito o desafio, mas seria muito bom se a senhora pudesse ler o meu texto antes pra me dar uma força, pode ser?— pergunto ainda assustado com a possibilidade de falar com tanta gente...
—Com toda certeza! Mas vou deixar bem claro, que não vou interferir no seu discurso, combinado?— responde estendendo a mão para que eu a apertasse selando o nosso acordo
Após apertar a sua mão respondi:
—Combinado, professora! Agora eu preciso ir, prometo ler o texto e caprichar na minha apresentação!— respondi pegando minha mochila e me levantando da carteira.
Finalmente o grande dia chegou quinta feira no dia 21 de setembro, a minha palestra era o ultimo evento da semana da inclusão e toda essa espera me deixava bastante nervoso. Confesso que tenho a agradecer ao meu melhor amigo Nícolas, que teve a paciência de treinar comigo, o meu discurso todos os dias, inclusive hoje a gente levantou mais cedo pra treinar mais um pouquinho eu não sei se conseguiria enfrentar esse desafio sem o apoio dele.
Mesmo chegando no horário, o teatro da escola já estava lotado e isso apenas aumentava o meu nervosismo. Por recomendação da própria professora me sentei na primeira fila e claro que assentado do meu lado estava o Nícolas.
Foram apenas alguns minutos de espera, mas por causa do meu nervosismo me pareceu uma eternidade, enquanto espero fiquei pensando como meus colegas reagiriam depois de tudo o que eu falasse, mas fui desperto dos meus pensamento com a voz da professora:
—... Agora com vocês André de Souza, que no último dia da semana da inclusão contará a sua história e um pouco sobre a sua deficiência!— concluiu a sua frase me convidando a subir no palco.
Com uma certa dificuldade, e com muita insegurança subi ao palco, me posicionando atrás do púlpito ao som dos aplausos, tentando controlar a minha ansiedade respirei fundo e comecei a falar:
—Bom dia a todos, agradeço mais uma vez, a oportunidade e a professora Sofia pela orientação e incentivo, pra quem não me conhece meu nome é André e estudo no 3º A, sou deficiente visual com baixa visão, com uma acuidade visual de 20% no olho esquerdo e com cegueira no olho direito. O diagnostico é alta miopia, com estrabismo, nistagmo e degeneração da retina. Tudo isso é uma linguagem técnica e bastante complicada. Mas de uma forma breve, eu tenho um alto grau de miopia, que mesmo usando a correção seja óculos ou lentes de contato, não consigo ter uma visão plena ou igual à maioria das pessoas...— fiz uma breve pausa e percebi que todos permaneciam em silêncio, demonstrando interesse em minhas palavras.
—A baixa visão não é algo fácil de se explicar, e muitas vezes ela não é perceptível e pra facilitar um pouco passei usar o "cordão de girassol" que foi criado em 2016 pelos funcionários do aeroporto Gatwick em Londres utilizando-o para identificar pessoas que possuem deficiências não visíveis ou doenças raras. Em 17 de julho de 2023, foi promulgada uma nova alteração na Lei Brasileira de Inclusão, tornando o cordão de girassol como símbolo das "deficiências ocultas"!— retiro o cordão que está em meu pescoço exibindo-o, esperei que o burburinho diminuir pra continuar:
—Por repetidas vezes, me perguntam como eu enxergo e para responder essa pergunta, foi preciso muito estudo e pesquisa, sou deficiente desde criança, ou seja nunca enxerguei como vocês enxergam... Mas os meus pais perceberam a minha baixa visão por causa do meu comportamento que era diferente das outras crianças de minha idade; eu sempre aproximava o rosto dos brinquedos antes de tocá-los e assim aos meu dois anos de idade ganhei o meu primeiro par de óculos. E a cada consulta ao oftalmologista, eu me sentia feliz, porque eu ia ganhar um óculos novo, e vocês não imaginam a emoção que é poder ver o mundo mais claro, o sol mais brilhante, a copa das arvores ganharam um contorno muito mais bonito! E foi com oito anos de idade que eu vi pela primeira vez a cor dos olhos de minha mãe, eles são verdes e um pouco parecido com os meus!— Dei uma pausa pra segurar a lágrima que começava a querer cair...
—Mas ainda explicando sobre a visão, uma pessoa sem deficiência visual ela tem um campo visual de 180 graus, e o mesmo não acontece comigo e por isso é muito frequente pessoas passarem do meu lado, —eu não perceber, por causa disso, pessoas que desconhecem a minha condição se sentirem ignoradas! A maneira que eu enxergo é diferente, como se diante dos meus olhos existisse uma eterna cortina de água, a imagem não chega com a mesma nitidez, a luz não vem com a mesma intensidade e os objetos nem sempre os vejo com uma forma tão precisa. Alguns detalhes me passam desapercebidos e não sei precisar a exata distancia em que eles se encontram! — dei uma pausa e bebi um pouco de água que estava em um copo, em cima do púlpito e disponível para mim, —é muito importante compreender que a baixa visão, mudou o meu comportamento se comparado as outras pessoas, meus passos não são tão ligeiros e talvez um pouco arrastados é uma maneira de tatear o chão para evitar quedas e tropeços, o hábito de tocar nos objetos é uma maneira de complementar a visão e compreender o espaço onde eu estou, lugares barulhentos ou muito cheio de pessoas dificultam a minha locomoção, então se eu evitar esses lugares, por favor não julguem antissocial!
Dei uma pausa em meu discurso tentando sentir a reação das pessoas diante das minhas palavras e foi nessa hora que o meu coração acelerou, no lugar onde eu estava sentando, agora estava ocupado por Stella, que estuda na mesma série que eu, porém em outra classe. Ela é a minha paixão desde a oitava série, ah meu Deus, como é linda! A cor negra da sua pele, o seu sorriso branco, seus olhos negros brilhantes, o cabelo crespo sempre enfeitado com uma faixa e o seu corpo magro como toda jogadora de basquete, afinal ela é cestinha do time! Eu sei que ela nunca me notaria, afinal somos de mundo totalmente diferentes... tentei recuperar o controlar as minhas emoções, me desligando da plateia e retomando a minha fala:
—E como estamos na semana da inclusão, acredito que todos nós já compreendemos que o conceito inclusão representa um ato de igualidade entre os diferentes, e pra que essa igualdade exista se torna necessário respeitar a individualidade! E por isso, faço um pedido quando uma pessoa com deficiência, pedir algo relacionado a acessibilidade, entenda que a escola atender esse pedido é o cumprimento de um direito e não um favor! Não façam piadinhas dizendo que é vantagem ou favoritismo... Não julguem, porque por mais autônoma que essa pessoa seja, em alguns momentos de sua vida, ela vai precisar de ajudar, em um ano que eu estudei aqui, pedi pra uma professora, que eu pudesse sentar na primeira carteira, por causa da baixa visão, ela me desacreditou dizendo que a minha caligrafia era bonita demais para quem tem baixa visão... Foi preciso que minha mãe viesse aqui, munida de todos os laudos para comprovar a minha necessidade; mas nem tudo são espinhos, porque nessa mesma escola, quando fui fazer uma avaliação com um outro professor, ele me entregou a prova por último e de forma reservada, me explicou que ampliou a letra para que eu pudesse ter mais facilidade em responder as questões, e aproveito agora diante de todos para dizer que sou eternamente grato pela sua preocupação e empatia!
Dei uma pausa tomando um pouco de ar, olhando para a plateia tentando sentir o clima e continuei a falar:
—E por último e não menos importante, entendam que ser deficiente, não é necessariamente ser dependente ou inválido, e sim! Podemos ajudar e colaborar com qualquer atividade por isso não se espante se a gente oferecer ajuda e não nos impeçam. Afinal, não queremos inclusão apenas nos direitos mas também nos deveres... Agora vocês já compreenderam como funciona a minha visão, digo para todos que queria muito, ver um mundo menos injusto onde todas as diferenças fossem respeitadas, ainda que elas não fossem compreendidas, mas infelizmente não vejo! Mas para que essa visão se torne real, prometo plantar essa semente porque tenho certeza de que ela dará muito fruto! Então é isso! Agradeço a todos por participarem comigo dessa palestra, agradeço aos professores que contribuíram para a minha educação, agradeço a professora Sofia pela oportunidade, por acreditar em mim e me fazer enxergar o quanto esse momento é importante na minha vida! No mais me coloco a disposição caso tenham mais alguma dúvida!
Fui aplaudido de pé por todos os presentes tanto alunos, professores e diretores. Alguns colegas vieram me cumprimentar, inclusive meu amigo Nícolas:
—E aí parceiro, não sabia que você tinha toda essa oratória, não!— sorrindo me abraçou.
—Claro que sabia! Quem foi que me ajudou a ensaiar?— perguntei retribuindo o abraço.
— E ai, meninos? Pelo visto já temos um orador pra formatura!— brincou Sofia e sorrindo me abraça!
—Você gostou, professora?— pergunto um pouco tímido...
—Você foi incrível! E pelas suas palavras eu percebi que compreendeu exatamente o que eu quis dizer sobre a inclusão, você me orgulha muito André!— e me abraça novamente.
—Agora chega de confete, né?— Interrompe Nícolas, me puxando pelo braço. —Vamos embora que você me deve um açaí pra gente comemorar...
Após afastarmos um pouco da professora, pergunto para Nícolas:
—A Stella já foi?— pergunto meio sem jeito.
—Ela foi uma das primeiras a sair, mas ficou ate o final de sua palestra! — me responde sem nem parar de andar.
—Poxa, mas ela nem me cumprimentou...— retruco desapontado, seguindo os passos de Nícolas.
—Talvez, ela tivesse algo mais urgente pra resolver, ah e não acredito que você vai ficar de bico só porque ela não te cumprimentou, enquanto geral curtiu, não é possível....— retrucou cruzando os braços.
—Não é isso...— Não consegui completar a frase, porque assim que saí do teatro fui surpreendido por uma voz bastante familiar:
—Oi, André! Eu adorei a sua palestra!— Diz Stella se aproximando de mim...
—Bom... Então! Eu vou pra casa, que bateu uma fome danada! Tchau André, tchau Stella! Ah, e André assim que chegar em casa me liga, pra eu saber você chegou bem! Fui, que tô sobrando!...— e saiu correndo e dando risada.
—Ah, Stella! Não liga você já conhece o Nícolas! Ele adora fazer uma gracinha!— eu disse meio tímido, tentando remediar a situação.
—Não esquenta! Ele é legal, eu gosto dele! — e sorriu de um jeito lindo— Eu queria te dizer que achei incrível a sua coragem, a maneira como você explicou tudo! Pareceu aqueles doutores defendendo a sua tese!
—Nossa, que bom que você gostou! — respondi baixando os olhos meio sem jeito.
—Você sabe dançar?—Perguntou Stella meio sem graça, enrolando com o dedo um dos cachos de seu cabelo.— É que a formatura está chegando e vai ter o baile e eu não queria fazer feio.
—Olha, eu sei dançar sim, fiz algumas aulas... Se quiser posso te ensinar... Se o seu par não se importar, é claro!— Respondo um pouco decepcionado.
—Mas... Eu queria te pedir mais uma coisinha... Embora eu não sei se devo!— baixou os olhos com vergonha...
—Fica tranquila, pode pedir! Te ajudo no que eu puder!— respondi de forma bastante solicita.
—Topa além de me ensinar a dançar, ser o meu par no baile?— me pergunta enquanto um sorriso lindo começa brotar de seu rosto.
—Com certeza! Eu vou adorar ser o seu par!— respondo sem acreditar no que estava acontecendo.
FIM
Agradecimentos
Agradeço ao Projeto flor de Lótus pela oportunidade de falar de um tema tão importante pra mim e tão relevante pra nossa sociedade!
E a @antonina_esquilo pela força e incentivo você foi fundamental na criação dessa obra!
Por: Rogério.
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