Cardio-patas: um amor veterinário de Lola-Cãolírio
O meu primeiro dia na clínica veterinária precisava ter sido mais caótico. Não. É sério. Precisava mesmo! É um desejo tão amargo. Sinto que nessas horas eu me dou bem usando do meu sarcasmo. Não ouso deixá-lo separado de mim quando alguma coisa dá errado. E dá sempre errado para mim. Ou quase. Acho que você é pessimista, Moriah. Sim, você é pessimista até demais. Apoio meus cotovelos no balcão de mármore, levando minhas mãos à cabeça, passando-as por cima dos cabelos castanhos-claros. Minha testa está vermelha, eu posso senti-la esquentar. Eu não devia ter trancado a faculdade? O que o meu eu de quinze anos pensaria do Moriah que agora não passava de um bichinho assustado com o próprio emprego remunerado? Eu devia ter trancado essa droga de faculdade enquanto ainda tinha tempo. Enquanto pensava se ia ter nervos! Era melhor ter me dividido ao meio e corrido atrás da outra metade depois, lá na faculdade, pulando de uma perna só.
Estaria muito feliz se tivesse feito assim!
Agora, eu estou aqui. No meio desse mar de jalecos brancos, cabelos longos, com luzes, cacheados, escorridos, crespos... Estetoscópios, e nervos quase estourando na cabeça, e seringas, e cápsulas, e sedativos, e gaiolas, e cães latindo! Onde eu fui amarrar meu burro? Suspiro descontente.
— Aaaaaaah, eu quero literalmente tropeçar sem motivo algum nesse chão geladinho da clínica e acabar em minha bela cama e morrer de um grande cochilo... Uhhh! Que soninho... — bocejo, enquanto me expresso languidamente, sem vergonha alguma de chamar atenção de quem quer que passe pela recepção.
— Moriah! Acorda! Ei! Tá babando no balcão, cara! Tsc! — Zebhi ri com pena de mim, e dá um tapa seco no topo do meu antebraço, só para me irritar. Ela gosta de rir da indisposição biológica alheia. Percebo que o ar escapa das suas narinas.
— Hmmmmmmmmmm? Ah, Birita, é você? — eu disse, de modo sonolento, enquanto tentava controlar outro bocejo; na verdade, não estava me importando o mínimo com a azucrinação vinda de sua parte. Mas respondi assim mesmo, a contragosto: — Ô, caramba! Me deixa tirar ao menos mais um cochilinho, vai! Nem eu sou tão rude com você para arrancar sua felicidade assim, de cochilo. Afe, insuportável! — soltei um gemido descontente, deitando minha cabeça no retângulo escuro de pedra, gélido ao encostar minha testa nele. Era uma sensação tão boa!
— Espera aí! Tu é sempre carrasco assim ou hoje é o dia em que o meu bumbum resolveu virar em direção à Lua? — ao olhá-la de relance, Moriah constatou autodefesa, confusão e sátira, mesmo muito sonolento. Ou talvez ele estivesse enganado em pensar ter identificado tanta coisa assim. O cansaço é um inimigo disfarçado de amigo, e o alvo desse desgraçado sou eu!, pensou.
— Nah, Birita, você sabe que eu te amo. Eu só não sou um recém-formado em Medicina Veterinária lá muito competente... — sustentou a sua desesperança em si mesmo, deixando a cabeça pender para a frente e para trás, gesticulando, com a mão direita espalmada, — Mas carrasco, ah, isso não!
— Deixa de se ridicularizar, você não é isso! — Zebhi reiterou, as sobrancelhas saltadíssimas. Projetou-se para a frente, jogando seu corpo, tentando olhar nos olhos do colega de profissão. — Você diz tudo de horrível de ti. Mas eu só vim te dar um copo de café pra ver se para de dormir em todo canto. Principalmente aqui, na recepção. Onde encosta, dorme. Isso não é saudável, Moriah. Você não tá cuidando da sua saúde. E isso me preocupa.
— Ah, cara! — só posso suspirar, já que não sei reagir bem a elogios. — Birita, você é um amor, mas...
— Mais nada, Mori. Eu já ouvi essa justificativa vezes demais para concluir que você adora auto ladainha sabotadora. — ela verdadeiramente se queimava por dentro de desconforto e agonia ao vê-lo pensando e falando mentiras sobre si mesmo. Um pouco revoltada, Zebhi foi realmente dura ao dar um ultimato: — Aqui. Tá bem amargo, como você gosta que eu traga quando está exausto por causa da rotina agitada. Da sua amiga mais cordial que você, Zebhi.
— Falou a que se não tomar um copo médio de café cedo da manhã, é capaz de matar meio-mundo. — ele satiriza, enquanto ela vai ouvindo uma gargalhada preguiçosa.
— Para de me stalkear, idiota! Entrou lá em casa às cinco e meia da manhã, por acaso? — ela lhe dá um tapinha meio forte no ombro esquerdo.
— Acho que comecei a cochilar quando entrei pela janela de correr do teu quarto. Ainda bem que você não tem apneia!
E assim, Moriah arrancou-lhe uma gargalhada espontânea, por sua vez.
— Obrigado pelo café, minha amiga! — ele conseguiu lhe dizer, apesar da voz arrastada, e levantou-o, segurando o recipiente entre o polegar e o indicador, ouvindo o líquido dentro do copo se mexer, em temperatura satisfatória.
A recém-formada afastava-se. O jaleco esvoaçando, enquanto mantinha o rosto virado na direção dele, levantando a prancheta vazia, na qual estava preso um documento impresso e ainda em branco.
— Só você para me animar esta droga de vida, Birita...
Destampou o copo, tomando um gole sem açúcar que deixou a sua agrura impressa na garganta por poucos segundos. E depois outro. Ele esperava que a sensação arrefecesse mais a cada segundo após os átomos da cafeína lhe darem algum pouco ânimo.
Uma recepcionista toma o seu lugar detrás do balcão. Ela tem uma expressão de tédio e parece não ligar demais para sua própria expressão, para que soe minimamente amigável. O rapaz à sua frente mergulhou num pensamento:
Ê, minha filha... Parece que teu curso de Assistência Social se perdeu no meio do último período... Credo, que mau humor! — pousou a bebida no ar, enquanto seu rosto carregava ainda a mesma expressão de desalento, porém dessa vez somada aos lábios crispados.
— Você quer alguma coisa? — perguntou uma voz mecânica e grosseira, notando que Moriah estava parado ali por minutos demais.
— Hã? Não, não. Eu... Eu vou atualizar uns prontuários! — esfreguei uma mão na outra. — É... Só isso... — falei com ligeireza, atirando meu corpo ao corredor, como um raio fúlgido.
— Não, esse não... Esse também não... Este aqui? — ele verifica se o prontuário junto à prancheta está preenchido, enquanto abre-os, pega-os de um por um e fecha os armários em sequência. — E você?... — as sobrancelhas lhe moldam ao rosto uma feição de inquietação: — Também não, poxa! Cadê?!...
— Moriah?
O rapaz sobressalta. Fecha a porta do armário de súbito e se vira, completamente espantado:
— Ah... — suspira mal — Oi, Abrão. O que foi? Você precisa de ajuda?
— Cara, meu nome nem é esse... — o outro balança a cabeça, incrédulo, olhando para os lados e vendo se ele não está confuso.
O de corte meio cheio e cabelos-de-caracol passa dois dedos em volta da boca, finalmente caindo em si:
— Ah... Tá. E me desculpa, qual é mesmo o teu nome?
— Me chame de Veras. Morpheu. E quem é Abrão? — ele dá um risinho frouxo e confuso, espalmando a mão esquerda. Na direita, ele carregava uma prancheta. Moriah estendeu uma de suas mãos fracamente, a fim de perguntá-lo se aquele não era o prontuário que não achara dentro dos armários cinza com um pouco de corrosão por causa do tempo.
— Hã... — ele ponderou, passando a mão pelo queixo. — Era um estagiário da minha turma, a gente veio junto pra essa aula prática...
— Eu definitivamente não ouvi nenhum nome parecido. — Veras afirma, pausando a fala, negando com a cabeça.
— Por que está aqui?
— O professor tinha seu nome numa das listas. Você é da outra turma, mas tem algumas pessoas da sua turma lá no canil da veterinária acompanhando a gente. Pediu pra te chamar — aponta para Moriah, um sorriso frouxo se revela em seus lábios, depois para trás com o polegar.
— Ah, sim.
— Venha comigo. Uma golden retriever está em observação há alguns dias. Ela ainda estava em adestramento, ia ser a cadela-guia de uma deficiente visual, só que por ser muito novinha e um pouco agitada, ela acabou driblando os adestradores e ganhou a rua. Eles passaram duas semanas a procurando, perguntando aos moradores das casas e ruas mais próximas se ninguém a viu... Bom, e então a encontraram perto de umas latas de lixo, numa rua comercial. A cadela ingeriu uma grande quantidade de chumbinho e está agonizando desde que ingressou na clínica. Não sabemos o porquê, mas ela ainda não morreu, por sorte.
Moriah assente para Veras, com um misto de surpresa e consternação. Quase não encontra palavras para respondê-lo, todavia rebate pensamentos depreciativos que engolfam sua mente:
— Me leva até lá? Eu vou vê-la também.
Veras e Moriah vão ao canil da veterinária. Centralizado à porta corrediça de vidro temperado, está escrito um nome, em letras garrafais, sobre uma placa de metal oxidada pelos cantos:
"INTERNAÇÕES / SALA DE OBSERVAÇÃO
& SEDATIVOS."
Morpheus segura o puxador e a empurra, dando passagem para o outro. O professor dá uma pausa em sua explicação, ação pela qual toda a atenção dos demais é cauterizada, concentrando-se diante dos dois rapazes detrás deles:
— Eu dizia que há dois tipos de intoxicação grave por chumbinho. O primeiro tipo é o acidental. O segundo é o do tipo criminoso. A intoxicação acidental por chumbinho é aquela em que ocorre o espalhamento desse veneno granulado pela casa, e então, o seu animalzinho vai lá e tenta brincar ou comê-lo por acaso, por achá-lo algo curioso. O do tipo criminoso é quando o envenenamento é planejad-
— Bom-dia, professor. Desculpa o atraso. Eu tava procurando o cara da outra turma. Achei ele. Moriah, este é o professor Kériton, ou melhor, o Kero-Kero, como todos o chamamos. Ele não se importa de que o apelido dele seja de uma espécie de pássaro. Professor, este é M- — enquanto fala, Morpheus é interrompido pelo Vacâncio, que imita outro pássaro, apenas por uma casquinha de infantilidade:
— Bem-te-viiiiiiiiiii!
O restante cai em uma gargalhada uníssona.
— Então você me acha lindo e maravilhoso, Vacâncio? — Kériton pergunta, com descontração.
— É mentira dele, só queria acumular uns pontos a mais desde que ingressou no curso, Kero-Kero!... — Grilinda o entrega.
— Bem-te-viii... — Vacâncio diminui o tom de voz gradualmente. — Olha a boca, Grilo-Lindo! Não queima meu filme!
— Bem. Como ia dizendo o Veras, sou Moriah. É um prazer estar aqui e ter a chance de aprender com vocês — ele dá um sorrisinho tímido e aperta sua mão com nervosismo, assentindo ao professor e aos presentes.
— Seja bem-vindo, Moriah. Galera aí, ó! Bora parar de brincar com coisa séria que eu preciso continuar explicando o quadro clínico da paciente... — Kero-Kero adverte, com um meio-grito, gesticulando em direção da cadelinha debilitada.
A pequena golden está numa maca larga e retangular, coberta com um papel manteiga. Moriah percebe que ela já está medicada. À vista, dentro de uma sacola plástica, está o veneno. Parte dele, já mastigado. Ela está sem forças, e a falta dela é exprimida por algumas lágrimas seguras em seus olhos, que não escorrem.
— Ei, garota. Por que demoraram tanto para achar você?... — Moriah encara aquele olharzinho perdido e pouco feliz. A angústia cresce dentro dele, e o formando quase chora ao encará-la. As lágrimas quase transbordando de seus olhos...
A gente tem que te salvar. Você precisa voltar para sua dona. Aguente firme. Não desiste da gente, tá bom?
Moriah acaricia seu lindo pelo amarelo, numa tentativa quase perdida de mantê-la lutando pela vida.
Após terminarmos lá dentro, o professor disse para nós que estávamos dispensados, e, como a Lola — foi o nome que verifiquei na etiqueta, — já estava medicada, disse que ela também precisava de repouso. Então eu aproveitei para seguir os outros até a recepção. As portas de entrada da clínica veterinária acabavam de ter sido lavadas, e pequenas gotas de água misturavam-se ao sabão, e escorriam juntos pelas vidraças limpinhas. As pessoas que passavam em frente ao local estavam assumindo formas hilárias e escorridas. Olho bem à frente, meio distraído e ainda cabisbaixo por causa da situação de Lola. Aquela imagem tristinha de seus olhos lacrimosos não me sai da cabeça. Você, Moriah, é um pessimista de coração molenga.
Uma moça parece querer acessar o lado interno da clínica. Ela tateia pelo chão com algo metálico. Não consigo ver direito o que é. A entrada tem um desnível, mas nunca havia percebido. Eu saio e entro dos lugares toda hora, e nunca me preocupei com desníveis nos batentes de acesso aos estabelecimentos. Ela parece mover a boca, só que a vidraça não nos permite ouvir sons claramente quando estamos do lado de dentro.
Será que ela está pedindo ajuda para entrar? Ela parece estar gritando. Posso ler em seus lábios:
Alguém me ajuda aqui! Eu não tô conseguindo entrar. Tem um batente...
Ninguém parece vê-la além de mim. Todos correm de um lado a outro por aqui, atônitos. Eu olho de um e de outro lado, mas ninguém parecia ir àquela direção. Então eu acho que devo ir até lá. A porta é giratória. E após chegar mais perto, percebo a dificuldade da pessoa. Ela não consegue apoiar o objeto de metal no chão, apenas tateia o batente de cimento e quase o localiza, mas não consegue, de fato.
— Eu posso ir ver a Lola? Onde está ela?
Meus olhos sobem a seu rosto, timidamente. Eu estranho, apesar de ele ser muito lindo. É que ela parece... Sei lá. Não sei explicar. É melhor só ajudá-la a subir aqui.
— Bom-dia. Desculpe, eu percebi que você queria ajuda só agora. Não consegue vir para dentro, né? Se apoie em meu braço, é melhor, assim você não corre o risco de cair por causa do desnível... — aproximo meu braço da altura de seu pescoço.
— Ah, sim. Poxa, por que esse lugar não tem nivelamento nem na entrada? O dono podia pensar em colocar piso alerta. Aquele com bolinhas, sabe? Pena que essa é a clínica mais próxima de casa, mas se houvesse outra, eu poria a Lola lá, quando ela precisasse. Toda vez é a mesma coisa, e eu me chateio tanto...
Me senti acusado, mas não disse coisa alguma.
— Ah, você é a dona da golden? Ela está repousando lá no canil. Como se chama?
— Florina. Florina Arruda.
— Então, Florina. A sua garotinha já foi medicada, nós fizemos um check-up completo, e ela está em repouso agora. — eu disse, nervoso. Não queria que ela tropeçasse e caísse bem na frente de todos, ainda mais por minha causa. Então a guiei bem devagar a uma poltrona azul-cobalto para que sentasse.
— Você... Você cheira a colônia de cachorro... A Lola usa exatamente essa!
Como é a história?
Fiorina disse isso bem quando eu ia deixá-la por si, sentada ali.
— Espera! Não tem como você ficar... Só um pouquinho? Esse cheiro me traz sensações boas demais para que eu o deixe passar assim...
Uma justificativa para dizer que eu cheiro igual a cachorro?!
— Tudo bem. Eu posso ficar. Mas é pouco tempo. Já vai dar meu horário. Tenho coisas para fazer em casa. Importantes.
Não tinha nada de importante, porém me vi dizendo isso a Florina. Ela encosta o nariz em meu pescoço. Eu acolho-a em um abraço levíssimo.
— Senti falta dela — ela começa a ficar com a voz angustiada. — Lola é minha grande e velha amiga há dois anos, e quando soube que ela fugiu dos adestradores e se envenenou, eu...
— Não se preocupe. Ela ficará bem.
Fiorina se inquietou em mim e eu tive de abraçá-la um pouco mais forte.
— Eu sei.
Obrigada por dizer isso, doutor...
— Moriah. Meu nome é Moriah.
Florina estava de casaco rosa-choque e vestido de verão, com alcinhas, na cor branca. Ela tinha os cabelos encaracolados e longos, indo até a cintura.
Eu vou odiar dizer, mas ela também cheirava muito bem. E ainda bem que manteve os olhos fechados, porque eu parecia uma múmia movida a cafeína naquele instante.
— Não chore... — lhe enxugo uma lágrima do rosto.
— Pode me levar ao canil?
Moriah, você odeia admitir, porém aquela voz e aquele perfume doce e de veraneio impregnaram em ti, não foi?
— Sim. Eu levo a senhorita, Florina.
Ela dá uma risadinha e diz:
— Você me parece um ótimo veterinário, Mori. Vou chamá-lo assim. É menos sério.
Por: antonina_esquilo
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