Uma volta por setembro
Primavera. Muitos dizem ter uma gigantesca admiração por esta época do ano. Quem saberá não estiverem mentindo? Mas será que só é bonito quando vê as flores desabrochando, exibindo cores fortes de até arderem o olho, testemunhando sua saída do casulo como uma borboletinha mínima ao sol da tarde?
Induzo a pensar. Ou apenas se assim quiserem: não achas bonito quando, por exemplo, uma pessoa se despe a alguém especial como se aquilo pudesse trazer à duas almas efervescentes, quentes de paixão um resquício do que significa um ajuntamento de corpos suados em júbilo e êxtase abstrato, dois sentimentos vorazes, ao mesmo tempo ímpares e que lhes repuxam infindamente ao encontro de um e de outro, sem lhes pedir permissão? És jogado a isto involuntariamente. Em todo momento nessas circunstâncias, é inibido de usar a razão.
Desejos físicos estão no controle. São só dois corpos perdendo a inocência antes nunca
violada…O amor romântico é… Empírico? Considera-o tal?
Para alguns, o amor é tão minúsculo! Uma coisa dessas assim, acolhedora, lapidada por seres de um céu inalcançável e belo… Torna-se tão... Perto do nada.
Algo a ser mostrado de várias formas passa a ser resumida em apenas uma: de que o
amor que está nas pessoas é capaz de curar qualquer ferida, momento ruim, lembrança ruim, pessoas de má índole… Poderia citar uma infinidade de comparações. Contudo não quero dar voltas e voltas replicando o que está já fincado na mente dos alguéns por aí afora.
O amor coexiste. Como coexiste o abstrato? Aquilo que não se toca, aquilo que não se vê, aquilo que necessita de apoio para tal finalidade. Coexistir? Falta-lhe algo, não? Nós somos o algo. Porque de nós, sentimentalistas, ele parte. Cria asas, pousa em corpos frívolos nos véus escuros de uma noite.
Há quem diga que existem vários tipos de amor. Existir. Se algo já existe, é sólido em
subconsciências. Ao falar de amor, podes e vais pensar na parte angelical, alegre, na qual duas almas se encontram e se completam em fusão fugaz. Avassaladora. Sem ninguém que os aparte ou proíba.
A noite. Por quê pensamos nela ao sermos traídos por quem amamos e nos amou? Será a senhora noite a única fase do dia em que podemos nos debulhar em mártir que não passa, não passará nunca? Ou também podemos andar pela casa vazia a distribuir lágrimas em cada cômodo que quisermos? Vamos. A casa está vazia! Não tens por quê esperar uma fase de véus noturnos para chorar todas as lágrimas de uma só vez.
Ele não precisa saber que choras; ela, de mesmo modo. Ora! Tem ao teu dispor os astros. Pra quê carne e ossos? Astros. Em silêncio testemunham tuas lamúrias sem precisar propagar. Sem que outro o saiba. Se não fosses tão dependente de carne e ossos você compartilharia segredos com os habitantes celestes. Só eles lhe bastariam!
Não sei para quem diabos digo isto. Siggert está aqui comigo. Não estou me centrando em ensaiar a ótima peça que fomos sugeridos a escrever para a primeira aula de Literatura no início do próximo mês, em setembro. O professor não nos deu algo preparado. Éramos nós e nossas duplas que fomos incumbidos de escrevê-la. A gente pegou uma música brasileira. Achamos tudo nela incrível: desde o audiovisual até a letra.
Mas nós dois somos estrangeiros. Por isso deu um trabalhão para traduzir e tudo. A gente ficou uma boa parte do dia trancados no quarto porque decidimos que precisaríamos de concentração: nem o primeiro verso entrava na nossa cabeça! Foi um inferno. Até que a Vandety, minha irmã, veio perguntar por que diabos eu não tinha levado o Siggert até a cozinha pra lanchar.
— Siggert, você vai ficar ao lado da sua amiga malvada? Ela não está te deixando sair dessa zona chata de peça escolar, é? — surpreendeu-se a mais velha.
Minha garganta roeu ao ouvir ela perguntar aquilo até a última palavra. Minha boca tremeu em impaciência, projetada para a frente.
— Vandety, minha querida irmã mais velha… — respirei o mais fundo que pude e olhei para ela com uma cínica expressão de paciência. Até sorri. Sou mesmo muito fingida quando quero. — Se você quisesse mesmo nos ajudar, estaria aqui com a tradução dessa música também. E não me tirando do sério com essas piadas ridículas — retomei, minha impaciência exalando aos pouquinhos e pela abertura odiosa da minha arcada dentária quando mesmo assim eu tentava uní-los. Terminantemente recuso-me a pagar um horror de dinheiro ao dentista. Vandety adora reclamar disso. É quase como se, se ela não tirasse no mínimo 5 segundos do seu tempo curto para me irritar, seu dia não estaria completo...
— Olha, eu acho melhor você vir. — Siggert disse, olhando preocupado na direção de
Vandety. — Quase sempre sou eu que tenho que aconselhar pacientemente a Kiff. Muitas vezes chega a dar certo. Mas você deve saber, Vandety, que não é nada fácil lidar com esse vulcão aqui. — tentou cochichar por cima do ombro da Kiff. — Não vou dizer que todas as vezes é fácil mantê-la uma simpatia. Eu, que sou eu, me estresso!
— Sabe, Eron. Se as mães soubessem as personalidades dos filhos antes de nascerem, eu gostaria que isso fosse revelado aos irmãos também…
O menino de olhos de vidro ri sem querer, enquanto sua dupla do trabalho de Literatura lhe lança um olhar reprovador, seguro e rijo.
— Desculpa… — pede em baixa voz abafada pela mão.
— Ei! Dá pra parar com as pilherinhas? Certo que nós já temos uma boa parte dessa peça. E não. Antes que você me zoe, o Siggert não escreveu tudo sozinho! Afinal eu também gosto da matéria! — a menina ergue um dos seus maiores dedos, interrompendo a irmã antes mesmo que possa se pronunciar.
— E então ela teve a brilhante ideia de complementar a tal peça com essa bendita música, que já está nos dando nos nervos — complementa, batendo a palma da mão em suas anotações em pauta.
Kiff confirma.
— Vai continuar me irritando? Porque se sim, queira se retirar. É uma pena que eu seja péssima com Português brasileiro!
— Por favor, Vandy! Nós temos que ensaiar a peça também! A gente nem começou a
decorar as falas! — Siggert pediu, com a sua apreensão habitual.
Vandy os olha de uma ponta a outra, de esguelha.
— Hmm. Sim.
— Finalmente! — os dois se dão o direito de soltar o ar contido em segundos que
pareceram mais uma eternidade.
— Vai ser moleza! Passa o notebook pra cá! — toma um lugar para si no meio das duas
crianças, remexendo-se um tanto para acomodar-se.
Então… Setembro chegou. O predominante clima primaveril invadia sem pedir licença as ruas, praças e jarros decorativos à frente das janelas das casas. O mês costumava ser
empático. Todos pareciam saber qual era o intuito dele. Setembro trazia consigo um
simbolismo ímpar: o de celebração e valorização às vidas. Em Setembro, todos lembram de seus bons preceitos, distribuindo panfletos amarelos com umas frases de auto-estima tanto juvenil quanto adulta. Em apenas um mês monocolor somos capazes de conscientizar mais mentes, mais pessoas, mais vidas? Em um mês nós pintamos tudo com a cor do sol, do ouro, das ideias fresquinhas postas numa folha de caderno dedicadas a apenas um mês. Pessoas movidas a serem melhores. Apenas em um mês. Toda a bondade guardada por oito meses. Por que post-its com frases motivacionais e repletas de esperança ao lê-los não são distribuídos todos os dias?
Oito meses.
É preciso que esperemos todos estes?
Oito meses para amarmos de forma diferente a quem sofre sem querer?
Porque não há apenas amor romântico marcado em nosso consciente.
Há o amor próprio,
Unilateral: apenas de mãe, de pai, de avó ou avô, de irmãos.
Há também o empático. E é exatamente este que Kiff e Eron escolheram representar.
O professor Herimund os encorajou a isso. Eles se entreolharam vermelhos. Enquanto ele lhes dizia isso, cansado do conceito de livros didáticos, o docente se esforçava bastante para reconstruir conceitos austeros, mas que ao menos despertem a curiosidade de seus pequenos alguma vez. Ele bem sabe que fazê-los decorar as gerações românticas e como cada um dos autores desenvolveu seu estilo de escrita dentro delas dá um baita sono por ter ocorrido há séculos atrás.
— Vai ser um micão para nós dois, Eron! É bom que fique ciente. — cochichou
indelicadamente para o amigo. — Não dá para entender a desses professores!
— Ô se sei, Kiff! Sorte é a deles por não estarem mais na nossa pele!... Queria mesmo ter visto eles atuando quando tinham a nossa idade! Não seria engraçado?
A garotinha ri fino, inicialmente vacilando ao deixar seus dentes horrorosos à mostra. Tapa a boca quando sente os dentes em contato com a mão com a qual tenta em vão segurar o riso.
O atrito da mão de Herimund contra a mesa dele dá-lhes um sustão dos grandes,
fazendo-os calar a matraca…
— Já expus bons motivos para encorajá-los a participar deste evento desde as aulas
anteriores. Vale nota! Acho que se sairão bem e agora não há como fugir mais — o docente diz, com um sorriso menos simpático do que qualquer outra coisa em seu rosto, por mais que tente. — Acho que ninguém da turma queira representar a época do trovadorismo, com aquela enorme escansão de poemas, jograis e menestréis, diferenciar cantigas, não é? — olhou na direção deles, com uma das sobrancelhas arqueadas.
Os dois, por sua vez, olharam para Herimund com rostos sobressaltados em conjunto de
suas próprias sobrancelhas, negando.
— Vamos! O pátio está pronto! Acho que falei que quero que a turma toda represente o subjetivismo romântico de quantas formas diferentes conseguirem! Já vi que alguns alunos trouxeram umas fantasias para complementar o número… Estou verdadeiramente ansioso!
— Então… Sobre isso… Nós também trouxemos as nossas… — Eron falou, hesitante ao invés de uma só vez. Um leve rubor assume sua fronte negra assim que o garoto olha para a irmã de Vandety.
— Ahahahaha. Siggert, meu garoto! Costuma falar demais quando está nervoso, não é?
— pergunta Kiff para ele entre os dentes, dando-lhe com prazer um beliscão no braço direito.
Eron faz uma careta de dor apertando os olhos, olhando para a amiga como se dissesse: "Vandy tinha razão! Você é mesmo malvada. Como diabos sou seu amigo?!"
Ao que ela lhe mostra a língua.
— Vamos, Siggert! Vamos pegar as nossas fantasias — tem felicidade cínica na voz. —
Já que não podemos ignorar a existência dessa droga de peça! — reclama, puxando-o pelo braço. O professor segue bem à frente deles.
Uma espécie de staff à paisana se concentrava em ambientalizar o pátio. Ao fundo de um espaço aberto, viam-se as carteiras das salas de aula dispostas aos telespectadores. Coisa simples. Para o professor Herimund o que contava mesmo eram os textos elaborados pelas turmas. Estes sim, deveriam estar em ordem e bem escritos. Era o que o levava ao êxtase
em seu mais belo conceito.
Os primeiros a se apresentarem eram a irmã de Vandety e o Eron. O pátio ainda não
estava apinhado de gente, o que significava uma melhor visibilidade das pessoas que
cruzavam de um lado a outro aquele recinto. Kiff erguia a cabeça de quando em vez para checar se a irmã mais velha estava por ali com as fantasias em mãos; para a sorte desses dois, Vandety não gostava de se atrasar. E tanto quanto qualquer outro parente ela estava feliz por ver seu toquinho de gente se apresentando com o Siggert. E não só por causa da performance ou do texto que as crianças escreveram juntas.
Mas significativamente por eles terem escolhido representar o amor de uma forma não convencional para muitos e ainda mais por ser num dos meses mais importantes de todos os anos: Setembro…
Vandy perdera alguém para o desgaste emocional e a depressão. Ela podia ter feito muito mais para tê-lo junto, ainda presente e de cabeça fria. Mas infelizmente Kerlion se foi há 6 meses atrás. Tentou fazer com que permanecesse com ela. Vivo. Tentou de tudo. Passeios, piqueniques, exercício físico, jogos de videogames, potinho de frases motivacionais, dias de praia… Kerlion adorava surfar... Nada foi capaz de fazê-lo ficar.
— Vandy, você tá legal…? — Eron a perguntou, com as mãozinhas entrelaçadas de forma inocente.
— Ei! Terra chamando minha irmã irritante!... — Kiff balançava uma das mãos na frente de seu rosto.
— Hein? O que foi?
— Nós precisamos nos vestir! Anda, as apresentações começam daqui a pouco e você aí, com uma cara de tacho! Vou mostrá-la a direção dos banheiros! — Vandety estava ainda meio inerte e com lágrimas nos olhos meio cor de caramelo. No entanto, ainda assim seguiu-os para onde a irmã a puxava.
— Vamos. Você, aqui. E você, rapazinho, vai pro lado de lá. — comanda a mais velha,
enquanto os mais novos assentem entrando nos respectivos banheiros.
Ela bate palminhas orgulhosa das fantasias de tritão e sereia que comprou. Agora fica a
espera deles terminarem. Tomara que eles gostem, né? — ela pensa. — Caramba! Minhas mãos estão suando! — ri descrente. — Ah, eles vão ficar umas fofuras! — sorri agitando as mãos em punho, batendo os pés no chão ritmicamente.
Vandy ouve um abafado "as damas primeiro!", por parte de Siggert e, em seguida, um clique na maçaneta. Ele põe a cabeça para fora do banheiro masculino e sorri para a moça
em pé que aguarda, deixando que veja uma parte da cauda cor de menta que está vestido.
— Meu Deus, Eron! Você está um lindo rapazinho! — diz, levando as mãos ao rosto, enchendo as bochechas de ar.
— Muito obrigado, senhorita Maré! — enrubesceu e sorriu. Era assim que a chamava: uma homenagem ao seu cabelo tingido de azul.
A moça sorri de volta.
— Agora só falta a Kiff — está inquieto olhando para a porta do outro banheiro. Meu Deus, ela deve estar linda!
E era verdade. Com uma cauda salmão, seus cabelos loiros e meigos olhos cor de ouro.
— Estou pronta. Vamos? — ofereceu a mão ao seu par. Ele estava todo vermelho!
O número teatral foi de encher os olhos d'água. A irmã de Kiff estava inerte do começo ao fim. Anestesiada. Ela chorou tanto que talvez fosse capaz de encher o mar Cáspio.
Kiff representou uma garota arredia. Que se recusava a parar de ser uma atriz enquanto as fases ruins de sua vida a atingiam em looping. Com estas vieram a depressão e a
vontade de desistência. Se afogava em mar revolto enquanto suas ambições iam para o
fundo de um mar interno que ela mesma construiu. Suas cicatrizes eram tantas que ela as pôs nas palmas das mãos e não sabia o que fazer com elas, que se desprendiam de sua pele com certo custo, indo ao fundo desse mar.
Enquanto Eron insistia para que ela não afogasse neste mar de mágoas incuráveis e
vividas sem escolha.
— Sejamos tritão! Sejamos tritão ao mar! — gritava, a evocando com toda a força de suas cordas vocais, tentando trazer a sua amada para fora daquelas águas. Vacilante, a
personagem de Kiff afogava-se mais. E mais. E mais.
— Todos gritarão amém quando nós surgirmos de novo! Não desista de você! — Eron olhava em volta do contingente de água posicionado no meio daquele pátio. — Poderá até mergulhar outras vezes! Mas por favor, nade em direção à vida. Nade na minha direção, meu amor! — bradava ele.
Tão imerso no personagem que até mesmo chorava copioso, o seu corpo ansiosamente
querendo beijar a pequena boca da garota ranzinza ao fim daquele número eterno.
Por: antonina_esquilo
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