
Pequena Pérola
Dedico: este conto para minha amiga Nicolly, a minha pequena pérola da vida real, que esteve sempre ao meu lado desde que fui transferida àquele hospital, e que não importava o quanto nos separássemos, logo estávamos unidas novamente por força do destino, e espero que possamos ser eternamente amigas.
Pequena pérola. Te chamei desse modo tão carinhoso, pois para mim combinava perfeitamente com você, sempre foi pequenina perto de mim, e é muito preciosa por tornar cada dia da minha vida mais agradável e feliz. Poucas coisas têm me trazido alegria nesses tempos tão difíceis, então valorizo a maneira como me faz sorrir.
Sei que você já é uma mulher no auge dos seus 24 anos de idade, com tantos sonhos e desejos assim como qualquer outra mulher nessa faixa etária, mas as oportunidades lhe são negadas por puro preconceito e falta de caráter das pessoas ao nosso redor. Tenho tentado lidar com isso, mas parece que não funciona do jeito que eu quero, e assim só me resta imaginar que no futuro tudo será diferente.
Eu digo quase chorando que um dia você conseguirá ser professora, se casar e ter filhos, até acredito que seria possível, afinal minha pequena e linda pérola é capaz de qualquer coisa. O que impede a realização desses sonhos é esse mundo decaído em que vivemos.
Ah, estive me lembrando do dia em que te conheci, acho que não foi legal, não causei uma boa primeira impressão. Você se lembra disso, pérola? Acho que lembra sim, deve até estar rindo da vergonha que passei, queria ouvir sua risada agradável, é bom te fazer rir, embora seja em situações humilhantes para mim.
A guerra estava presente, o que levou seus pais a se deslocarem para um local mais seguro, eles não queriam que você fosse morta de formas brutais e desumanas, talvez por meio da eutanásia em um hospital apoiado pelo governo, fuzilada e jogada numa vala imunda, ou sufocada por gases tóxicos numa câmara de gás, sendo considerada apenas mais uma naquele grupo de pessoas marcadas igualmente por fitas azuis amarradas nos braços. Opções essas macabras, tenebrosas, assustadoras, para seus semelhantes.
Foi assim que você saiu da Alemanha sombria, e veio até esse hospital na linda Escócia, e poderia até não ser um local tão longe daquelas atrocidades, mas pareceu uma distância adequada para seus pais. Seus olhos mostravam dúvida, aflição, você parecia assustada de estar em um lugar desconhecido, olhava tudo com certo receio e se escondia atrás de sua mãe, por isso decidi te receber ali. Sei que foi uma recepção vergonhosa, mas ainda não tinha consciência do que eu estava fazendo, peguei um urso de pelúcia, entreguei a você, sorri e falei:
— Ei menininha, vai ficar tudo bem, estará segura aqui.
Sim, você riu, uma risada tímida e acanhada, depois olhou para o chão, dizendo baixinho:
— Eu sou uma mulher.
Fiquei surpreso e sem graça de ter entregado um urso de pelúcia para uma mulher, talvez porque em relação a sua síndrome fui orientado de forma errônea, pois diziam que mesmo na fase adulta, pessoas como você não possuem noção da idade real e são eternas crianças. Mas ali estava você, afirmando com toda a certeza que é uma mulher e não uma menininha. E a partir desse início inesperado, as coisas foram ficando mais interessantes com o passar do tempo.
Estranhei a maneira como seus familiares lhe tratavam, eles simplesmente te deixaram no hospital e foram embora, você nem sequer conheceu a casa que compraram na Escócia, e desde que está aqui, seus pais visitam apenas duas vezes por ano, uma no seu aniversário e outra em um dia qualquer no verão. Mesmo com essas poucas visitas, buscavam interferir em tudo, fazendo perguntas por cartas, telegramas, e até entrando em contato pessoalmente com os profissionais.
Talvez as coisas teriam sido melhores se eles simplesmente desaparecessem, pode dizer que isso é um desejo ruim meu, mas penso como tudo teria sido diferente na ausência deles.
Relembrando novamente do passado aqui, gostei bastante de nosso primeiro beijo, e o mais surpreendente é que foi você quem tomou a atitude do beijo. Eu estava medindo temperatura e pressão arterial de um paciente, e aí você se aproximou e ficou olhando, como se esperasse o trabalho terminar. Quando terminei, liberei o paciente, e perguntei:
— Você está bem? Há algo que eu possa fazer?
Minha pérola, você ficou apenas olhando para mim, tão calada, que fiquei confuso. Então decidi lanchar porque era o horário do intervalo, mas assim que eu estava saindo daquele consultório, você ficou entre mim e a porta, me impedindo de sair. Falei:
— É o meu intervalo e eu estou com fome, não acho que você iria querer que alguém te impedisse de comer, né. Tudo bem se eu sair?
Você negou balançando a cabeça, e dizendo:
— Vi a enfermeira Susy beijando um homem na área dos fundos. Você já beijou alguém também?
Todo mundo sabia que a enfermeira Susy tinha um namorado, mas ignorava e fingia não ver nada enquanto ela achava estar escondendo muito bem, e escapava do trabalho para ficar com ele. Eu diria que a coordenação do hospital sentia pena dela, pois logo seu companheiro seria convocado e talvez não iria retornar nunca mais. Mas voltando à lembrança, ali estava você, que em minha mente era uma criança, e havia perguntado sobre beijos, me deixando acuado, sem saída, acabei respondendo:
— Você não deveria estar pensando em beijos, nem mesmo espionando eles, não é certo.
Ah, você fez uma cara de decepção com a minha resposta, e disse:
— Acha que sou uma criança, mas a enfermeira Susy tem 21 anos, e eu tenho 22. Por que chamam ela de senhorita e eu de menininha? Por que ela pode beijar e eu não posso? Eu quero ser uma senhorita e quero beijar.
— Você é diferente da Susy, entende? Não é a mesma coisa — falei pacientemente.
Eu estava com fome, mas ainda fiquei ali feito um idiota discutindo sobre beijos, poderia te retirar dali e passar tranquilamente, afinal era comum para mim segurar pacientes surtados. Claro que você não estava surtada, mesmo que estivesse me irritando naquele momento.
Minha pérola, eu quase ri, porque você cruzou os braços, e sua cara de brava é meio engraçada, mas acho que sua resposta me impediu de dar risada:
— Eu vou ser uma senhorita porque eu quero e porque tenho idade suficiente para ser uma! E vou beijar também, mas como não conheço ninguém que possa fazer isso, quero que você me beije.
Você pareceu uma senhorita autoritária e cheia de vontade, vi a mulher adulta florescendo ali, uma verdadeira mulher e não uma menina com síndrome de down. Sua força era magnética, seus olhos hipnotizantes, tudo em você me atraía e me fazia sentir vontade de aproximar, mas eu temia estragar sua inocência. Não te beijei, achei melhor sentar numa cadeira e dar permissão:
— Senhorita, poderia, por favor, beijar este nobre cavalheiro?
Seu sorriso resplandecia, brilhante, um brilho cintilante, mas não chamativo e sim discreto, semelhante a uma pérola, que só se aproximava, até chegar em meus lábios e beijá-los.
Quem diria que aquele seria apenas um dos poucos beijos que daríamos? Eu não imaginava isso, e se soubesse o que aconteceria, teria te beijado muitas outras vezes.
Muitas vezes preferi me afastar, manter a neutralidade, só queria ser um enfermeiro atendendo uma paciente, e isso te deixava chateada porque acabei lhe ignorando, fui até rude com você, me ocupava com cuidados de outros pacientes e até acumulei trabalhos desnecessários. A verdade é que não queria aceitar que estava apaixonado por você, não enquanto ouvia como os funcionários do hospital se referiam a você durante os intervalos de lanche.
— Eis aqui um que deveria ser promovido! Eu trancaria aquela garota no quarto dela, fica seguindo, parece um pioio grudado no couro cabeludo, a mongoloide precisa aprender o lugar dela. Mas esse homem aqui tem uma paciência que não é para qualquer um.
— Fiquei chocada que a garota pegou uma boneca e disse que teria filhos de verdade um dia, todos sabem que isso é impossível, além de essa síndrome levar a ter pouco tempo de vida, torna estéril. Nem soube o que dizer, apenas fiquei calada.
— Por mim, ela podia ter ficado lá na Alemanha mesmo, a família nem se importa, simplesmente abandonou aos cuidados do hospital.
Com certeza tinham afirmações muito piores, não apenas sobre você, mas sobre quase todos os pacientes que moravam ali. A hipocrisia reinava e sobressaía em tudo, diziam amar, acolher, serem os benfeitores imaculados, mas na realidade não eram tudo isso, simplesmente buscavam status social.
Desde a sua transferência para um manicômio na cidade vizinha eu tenho sentido sua falta, é horrível estar na solidão e ser proibido de te ver. Sonho em te resgatar daí, fugirmos juntos e vivermos felizes como um casal, embora segundo a lei não podemos nos casar com um registro civil no cartório, nem fazer uma cerimônia religiosa para nossa união numa capela. Nem era para você estar naquele lugar, mas sua família considerou tudo como uma louca obsessão.
É sinistro como é fácil entrar num hospício, basta ter um registro de convulsão, ter tendências sexuais anormais, ser uma mulher considerada estranha, gritar demais, ter tremedeiras, ou talvez acusarem você de ser um obcecado. Duvido muito que coloquem tantos loucos lá dentro, são normais que só se tornam loucos por serem um bando de torturados e menosprezados, todos se recusam a ver que o manicômio é uma fábrica de loucura no mundo.
Temo pela sua lucidez, minha querida. Prefiro pensar que estejam te tratando bem dentro do possível aí nesse lugar. Me responda, pérola. Tem comido regularmente? Dorme bem? O local é limpo? As pessoas não te batem né? Espero que não esteja sendo agredida, ouvi falar de métodos inovadores como a terapia de eletrochoque e a lobotomia, que me assustam porque você não necessita dessas intervenções.
Ah, sinto vontade de cometer o terrível crime de matar seus pais. Só não o faço porque confio na sua afirmação de que um dia tudo dará certo, basta termos esperança.
Pequena pérola, eu te amo, queria ter dito isso pessoalmente, não por meio de cartas. Cartas essas que ainda podem ser interceptadas se descobertas. Queria ter a liberdade de falar o quanto te amo todos os dias e para qualquer pessoa.
Talvez um dia seja possível nosso casamento, nossa família, sua profissão. Em um futuro um pouco distante e bastante utópico, é real que poderíamos ser considerados um casal normal que realmente se ama.
Com muito amor, envio beijos e preocupações para minha pequena e preciosa pérola.
De seu amado enfermeiro e um dia futuro marido,
H. B.
Ps: Não se esqueça de responder minhas perguntas, quero saber como minha pérola realmente está.
Por: Jordana Sampaio
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