Pelourinho
Se tinha algo que Pedro odiava, era carnaval. O suor, o barulho, as marchinhas, tudo aquilo o fazia correr para o mais longe possível. Não era surpresa que aquele final de semana seria um verdadeiro inferno para ele, pois, para sua sorte, seu chefe o enviou para Salvador a trabalho.
Sim, Pedro estava trabalhando no feriado mais animado do ano. Na cidade mais festiva da época. Rodeado por milhares de pessoas que esperavam por aquela semana. Afinal, todos amavam Carnaval. Ou quase todos. Para Pedro, aquela era uma sexta-feira como todas as outras. Nunca conseguiu entender a euforia exacerbada em extravasar durante alguns dias, beijar desconhecidos, beber cerveja embaixo de um sol escaldante, correr o risco ser assaltado e depois voltar para a vida normal.
Por isso, se jogava no trabalho e aproveitava que sua cidade ficava vazia naquela época para sentir um pouco de paz. Também trabalhava nas vésperas de Natal, Ano Novo, Dia dos Namorados, aniversários... Pedro não enxergava graça em festejar. Tudo o que ele mais queria era fechar o contrato com aquela empresa de comunicação e voltar para Brasília, para seu apartamento minúsculo, para seu cachorro e sua vida irresistivelmente monótona.
O táxi chegou em frente ao simpático e charmoso hotel de cinco andares, com decoração festiva ao longo de toda a fachada. Como Pedro havia notado, a cidade toda parava por causa daquela festa. Todos os lugares estavam com plumas e afins e pessoas estavam com purpurina grudada no corpo.
Realizou check-in no hotel e começou a trabalhar na apresentação de seu projeto. Aquele contrato era extremamente importante para a agência de publicidade em que trabalhava. Antes mesmo de se dar conta, já havia se passado quase duas horas desde que havia mergulhado de cabeça naquele documento de PowerPoint, ajustando os detalhes finais com uma atenção quase devota. Se tudo seguisse conforme o plano, no sábado de manhã estaria pegando seu voo e...
— Caralho, tem alguém aqui querendo trabalhar! — Gritou, quando percebeu que o barulho da multidão que passava em frente ao prédio estava lhe custando sua concentração.
Olhou para o relógio de pulso e só então se deu conta que a reunião começaria dali a vinte minutos e ele não havia nem trocado de roupa. Tirou uma das camisas de sua mala, vestiu-se apressadamente e pegou seu notebook, lutando para coloca-lo dentro da pasta de couro enquanto caminhava em direção ao elevador. Ao sair da recepção, o calor lá fora o atingia sem pena alguma ali mesmo, na calçada. Enquanto solicitava um Uber, observou com uma carranca enquanto os foliões passavam por ele. O Hotel ficava a duas quadras do Pelourinho e aquela rua era uma rota alternativa para as pessoas entrarem e saírem dos trios elétricos e das multidões que invadiam Salvador naquele final de semana.
“Eu vou matar meu chefe. Mas antes de matar, vou encher a cara dele de cola e grudar um saco de confete e outro de glitter. Esse vai ser o castigo dele por me mandar pra cá justo nessa época do ano” — pensou, enquanto a única coisa que ele queria daqueles foliões era aquelas garrafas de água gelada. E um pouco de silêncio, é claro.
Quando seu carro chegou, agradeceu por estar indo para longe, apreciando o som ficando cada vez mais abafado e diminuto.
— E então, curtindo o Carnaval na melhor cidade do mundo pra isso? — O simpático motorista perguntou, tentando puxar assunto, fazendo as sobrancelhas de Pedro praticamente se juntarem em reprovação.
— Não, estou em Salvador apenas a negócios. Parto amanhã pela manhã.
— Você não gosta de Carnaval? — O homem parecia genuinamente espantado, pois provavelmente já sabia da reposta para sua pergunta só de observar seu passageiro pelo espelho retrovisor.
— Não é meu feriado favorito.
Com isso, o restante da viagem havia sido silenciosa e constrangedora. A música que tocava no rádio do carro, era uma marchinha, é claro. Naquela altura, Pedro achava que Deus estava se divertindo com aquele castigo. E como se não pudesse piorar, há menos de três quilômetros de distância de seu destino final, a avenida estava completamente congestionada.
— Santo Cristo, não é possível. — Esbravejou enquanto olhava para o mar de carros em sua frente. — Eu não posso me atrasar, senhor. Tenho uma reunião muito importante daqui a dez minutos!
— Não posso fazer nada, moço. É Carnaval e todo mundo está querendo chegar a tempo em algum lugar para se divertir. Bom, quase todo mundo.
Pedro ficou estático, enquanto o motorista segurava o riso no banco da frente.
— Quer saber? Eu vou andando. Pode finalizar a corrida!
— O senhor é quem manda! Boa sorte para chegar a tempo em dez minutos.
Pedro bufou enquanto saía do carro, usado o GPS de seu celular para calcular a rota até o prédio da empresa de comunicação. Andando, seria quarenta minutos, no mínimo. E ele não tinha esse tempo. Desesperado, Pedro começou a andar depressa, sentindo o suor pingando de sua testa e grudando sua camisa em suas costas.
“Não dá pra esse dia ficar pior” — Pensou, extremamente irritado.
Mas vocês sabem o que acontece depois que alguém fala ou pensa essa frase, não é mesmo?
Menos de quinze segundos depois, seu celular vibrou no bolso de sua calça de alfaiataria. Havia recebido um e-mail do representante da empresa de comunicação, avisando que a reunião precisaria ser adiada para segunda-feira. Pedro pensou que estava começando a alucinar devido ao calor, que provavelmente estava cozinhando seus neurônios e todos os seus órgãos, debaixo daquele sol escaldante de fevereiro.
— Puta que pariu! Só pode ser brincadeira.
Derrotado, decidiu andar sem rumo até achar uma rua calma o bastante para esperar por um táxi ou uber. Já podia imaginar que teria que esperar, no mínimo, uma hora até haver algum carro disponível, devido a alta demanda. Sua garganta começou a ficar seca e áspera, o que não contribuía para seu humor. Estava cogitando jogar tudo para o alto e correr para o aeroporto quando avistou um pequeno bar no fim daquela rua relativamente deserta, onde parecia ser um lugar perfeito para aliviar a sede enquanto pensava melhor no que fazer.
Ao chegar, havia apenas dois clientes e o garçom, atrás do balcão. Pedro se aproximou sentindo que se ficasse mais um segundo com a garganta seca, ia morrer desidratado.
— Uma água, por favor.
O garçom notou sua presença e sorriu com o pedido. Pedro percebeu.
— Qual é a graça?
— Nada. — O homem respondeu formalmente, mas o vestígio do sorriso ainda estava lá, ameaçando voltar com força total a qualquer momento.
— Pode falar.
— Numa sexta-feira de Carnaval, você chega em um bar e pede água?
— Eu juro pra você que se eu ouvir essa palavra mais uma vez, eu mato alguém.
— Que palavra? Água?
— Não, Carnaval.
— Tá vendo, você mesmo disse.
Pedro percebeu o humor espirituoso do belo homem parado em sua frente e, pela primeira vez naquele dia, esboçou um sorriso.
— Tá vendo? Eu sabia que você não poderia ser tão ranzinza.
— Eu? Ranzinza?
— Não, claro que não. Não está mais aqui quem falou. — Levantou os braços em sinal de rendição. — Já trago sua água.
Pedro acompanhou o garçom com os olhos. Certamente aquela calça valorizava sua bunda e suas pernas torneadas; a camisa branca de mangas curtas estava um pouco úmida de suor, assim como sua pele, bronzeada e cintilante. Pedro se remexe no banco, sentindo-se subitamente alvoroçado. Não sabia ao certo se era o clima lá fora, mas sentia um pouco mais de calor do que quando havia entrado.
— Aqui está. Uma deliciosa água mineral sem gás.
— Obrigado... Você não disse seu nome.
— Bruno. Você também não me disse o seu.
— Pedro.
—Bom, é um prazer, Pedro. O que você faz aqui na cidade mais carnavalesca do país nessa época?
Pedro tomou todo o conteúdo da garrafa em cinco longos goles antes de responder.
— Aparentemente, para pagar todos os meus pecados.
— Tão dramático... — Bruno disse, fazendo biquinho.
— Estou a trabalho. Mas tudo deu errado e eu acabei ficando preso aqui nessa cidade pelo menos até segunda-feira.
— O que há de tão ruim com a cidade?
— Com a cidade, nada. Muito pelo contrário, aqui é um dos lugares mais lindos que eu já vi. O pessoal é muito receptivo, mas o meu problema é com essa celebração exagerada. Poxa, eu não consigo ver a graça nisso tudo.
— É uma celebração da vida, pelo meu ponto de vista. As pessoas vivem pressionadas, apressadas o ano todo. Essa época todo mundo pode ser... genuinamente feliz.
— Por isso todo o lance das plumas, do confete e do glitter? Uma representação de tudo o que eles não podem ser durante o ano? Compensam em uma semana a tristeza de 358 dias?
— Se você vê assim, eu não posso fazer nada. — Bruno respondeu, percebendo que seria difícil mudar o pensamento de Pedro — Posso te perguntar o porquê de você não gostar de Carnaval?
— Eu não costumo festejar nada. Carnaval, Natal, aniversário, nada. Depois que meu noivo morreu, eu nunca mais vi motivos pra isso. Só tinha ele, e ele amava comemorar todos esses feriados.
— Eu sinto muito. Faz quanto tempo?
— 3 anos em agosto.
— Você não comemora por ser sozinho. Isso te deixa triste pois se lembra de seu noivo, não é? — Naquela altura, aquilo não parecia com uma pergunta, e sim como uma afirmação. Era fácil para Bruno entender aquilo.
— Talvez. Depois que ele morreu, eu nunca mais quis fazer nada do tipo. E no Carnaval todo mundo está tão alegre, radiante, eu não consigo me convencer de que isso seja real.
— Quando seu noivo era vivo vocês comemoravam e eram felizes com isso. Você quer dizer que aquilo não era real também?
— Claro que era! Não tem nada a ver com isso. Eu... — Pausou, incomodado com o rumo daquela conversa. — Acho que está ficando tarde. Preciso voltar para o hotel e explicar para o meu chefe que nada saiu como o planejado. Quem sabe ele me demite, ia completar meu dia de merda. Aqui está, pode ficar com o troco. — Pedro disse, levantando enquanto puxava uma nota de dez reais da carteira.
—Pedro! Espera.
Pedro parou, mesmo não sabendo ao certo por quê. A voz de Bruno fez seu corpo paralisar e aquela era uma sensação que há anos não se permitia ter.
— O que é?
— Posso te pedir um favor? Apenas um favor, antes de ir embora.
— Depende.
— Você daria uma volta comigo? Só pra conversar, admirar a paisagem, essas coisas.
— E o bar?
— Posso fechar a hora que eu quiser.
— Você é o dono?
— Sim. O que me diz? Vamos?
— Você vai me arrastar para o meio da multidão e me obrigar a dançar?
— Provavelmente.
— Então eu passo. Obrigado mesmo assim. — Disse, incisivo, virando-se para ir embora.
— Seu noivo gostaria que você fosse feliz. Que você vivesse. Por que não dá a ele esse presente? Onde quer que ele esteja, isso faria ele feliz.
Por um momento, Pedro pensou em dar meia volta e dar um belo soco na cara daquele homem atrevido. Afinal, como ele ousava usar o nome de Leandro assim?
Porém, algo dentro de Pedro lhe dizia para ouvir o que Bruno estava dizendo.
—Provavelmente eu vou me arrepender disso. Que Deus me ajude. Tá bom, eu vou com você.
Bruno sorriu de orelha a orelha, e Pedro só conseguia pensar que havia algo em Bruno que lhe fascinava. Uma luz, vindo de dentro, que o fazia ser diferente de qualquer pessoa que havia passado por sua vida desde a morte de Leandro.
Andaram pelo centro histórico da cidade, admirando a arquitetura fascinante enquanto iam conhecendo um pouco melhor um ao outro. Antes de se darem conta, estavam dobrando no Pelourinho, onde a música e a agitação exalavam uma alegria quase palpável.
—Você alguma vez já esteve no Pelourinho?
— Nunca! — Gritou, tentando fazer sua voz se sobressair ao som alto da música.
— Por isso você não gosta de Carnaval. Ainda não havia estado no lugar certo!
Bruno puxou Pedro pela mão e eles se perderam no meio da multidão, deixando se levar sem pensar muito. Pedro estava um pouco tenso no começo, pois aquilo contrariava tudo o que havia pregado nos últimos anos. Mas, no fim das contas, uma luz estava tentando entrar de volta em sua alma sombria, e ele finalmente estava disposto a deixar que isso acontecesse. Nesse exato momento, uma chuva começou a cair nos céus de Salvador, pegando todos de surpresa. Enquanto muitos corriam, Pedro decidiu permitir que a água lavasse sua alma e levasse embora toda aquela escuridão que lhe assolou por tempo demais. Percebeu que finalmente era hora de deixar todos os seus fantasmas para trás. Abriu os braços e girou, o brilho dos paralelepípedos por causa da chuva fazia tudo aquilo ser ainda mais bonito aos olhos de Bruno. Mesmo sem saber, estava libertando alguém de anos de uma escuridão sem precedentes. E, se algum dia alguém perguntasse a ele se acreditava em milagres, ele poderia dizer que testemunhou o Pelourinho trazer de volta o sorriso de alguém cujas esperanças pareciam esgotadas. Aquele era um milagre que apenas Salvador era capaz. Especialmente, em uma época tão mágica quanto o Carnaval.
Por: Luã
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