1-O Violino
A minha alma vive no fio da navalha. Vive no estreito fio que separa trevas abismais de uma loucura azul e suave. A solidão apossou-se de mim, o silêncio afastou-se, vivo no seio de pensamentos ruidosos. O meu tormento acalma-se no vazio magistral de uma musicalidade passada, recordações vagas de uma melodia outrora materializada. Quero julgar que fui um salvador, mas todos os meus pensamentos me levam a uma terrível conclusão: fui o carrasco.
Tinha 14 anos quando meu pai me levou para aprender a arte de construtor de violinos, com o grande mestre António Estrada.
Naquela altura já António Estrada deixara de comercializar os seus famosos e apetecíveis violinos, tinha-se «refugiado» longe da alta sociedade, na aldeia de P.... situada nos montes de H... Não havia ainda qualquer estrada para a aldeia. Subimos a montanha, eu e o meu pai, a pé, por caminhos agrestes cobertos de neve. A neve começava a derreter, deslizando em pujantes cascatas pelos precipícios. Não fosse o rufar do meu coração e as conversas com o meu pai, pensaria que o manto branco, que cobria as infindáveis montanhas, tinha engolido todas as vozes do mundo. As quedas de água, apesar da intensidade e violência com que embatiam nas rochas, não respingavam qualquer som audível. Subimos sempre, envoltos num silêncio gélido. Lembro-me de ter tapado os ouvidos para escutar o meu interior e assim afastar o pânico absurdo da surdez.
Foi com enorme alegria que avistamos a aldeia. Penetramos pela única rua que existia, senti um alívio tremendo em ver pessoas que trabalhavam harmoniosamente nas suas quintas. Finalmente tinha deixado a solidão dos montes impregnados de puro silêncio. Alguns dos habitantes cumprimentavam-nos com simpáticos acenos de cabeça. Perguntamos a um habitante que ali passava, onde ficava a casa do mestre Estrada, o homem respondeu-nos sem qualquer palavra, embora, de um modo afável, nos tivesse apontado a direção. Vislumbrava-se dali a casa do mestre, erguia-se contra o céu no pico de um monte rochoso.
Chegamos ao cimo do monte e logo fomos recebidos pelo mestre de uma forma muito agradável. O mestre tinha sido grande amigo do meu pai, razão pela qual me aceitava como seu aprendiz. O mestre nunca teve qualquer aprendiz, o facto de eu ser o único deixava-me extremamente orgulhoso. O meu pai despediu-se. Naquele momento ouvi pela penúltima vez a voz do mestre: "Ele vai ficar bem, não te preocupes." - disse a meu pai. Não sei explicar aquele tom de voz, era uma voz intensa, parecia um eco reproduzido ao infinito, como se fossem milhares de vozes em uníssono, divinamente combinadas, produzindo milhões de notas musicais em harmonia. Aquela voz fez o meu corpo vibrar, estremeci por todos os lados como se estivesse dentro de um sino.
Aprendi com ele, sempre em silêncio, a fazer as formas, os elfos, as cravelhas, a moldar o interior, todas as partes de um violino. De dia, sentia-me sempre ocupado, olhando o trabalho divino de suas mãos, não era necessária qualquer comunicação oral, os seus dedos eram música autêntica, o modo como moldava tinha tanta harmonia que parecia estar assistindo à mais bela sinfonia alguma vez realizada. Os problemas apareciam à noite, jantávamos em silêncio absoluto, juntamente com uma criada muda que preparava as refeições quase adivinhando aquilo que me apetecia comer. Apetecia-me gritar, não o fiz, por motivos claros de boa educação. O silêncio do dia era ocupado pela turbulência de pensamentos, naquela terra ninguém falava, sentia-se o vento, mas este não silvava por mais forte que estivesse, pensava que a loucura se tinha apoderado da minha mente. Um dia, fui à aldeia e, como suspeitava, não ouvi qualquer palavra da boca de quem quer que fosse, todos sorriam, às vezes sentia entre os habitantes gargalhadas, gargalhadas silenciosas. O que mais me irritava era a sensação de uma harmonia perfeita entre todos os habitantes e a natureza. Reparei que todos cultivavam a terra, mas que não havia qualquer marcação de propriedades, como se as pessoas soubessem mentalmente onde acaba a sua terra e começa a do vizinho, mas o mais impressionante era que todos se ajudavam mutuamente.
Certa noite, não consegui dormir devido à inquietude da mente. Amanheceu, não era hábito levantar-me tão cedo, caminhei pelas redondezas e ouvi... ouvi, por momentos pensei que era imaginação minha, ouvi um rouxinol, saltei, pulei de alegria. Aproximei-me em direção ao maravilhoso chilrear, deparei-me com o mestre a tocar o seu violino misterioso. Era um violino que o mestre, por gestos, me tinha proibido de tocar nele, até de me aproximar. Espreitei por detrás de uma árvore, vi o rouxinol a uns dois metros de distância do mestre. Esfreguei os olhos para ter a certeza daquilo que via, não estava enganado. Enquanto o mestre tocava, não se ouvia qualquer som produzido pelo violino, dava a sensação que o canto do rouxinol fluía para dentro do violino. O rouxinol, por magia, foi o que me pareceu, ia perdendo a sua voz, como se o violino a engolisse desalmadamente. Fiquei louco, o único som que ouvia de há dois meses para cá, iria desaparecer. Corri, com todas as forças que tinha, para o mestre, arranquei-lhe o violino das mãos e esmaguei-o contra uma pedra.
Aterrorizado, de olhos esbugalhados, vi sair dos destroços daquele violino imensos sons, vi e ouvi, pois os sons tinham ganho forma. Sons de vento, de chuva, vozes humanas, músicas indecifráveis.... Era difícil acreditar, as notas daquela intensa música, subiam em ritmos frenéticos, rodopiavam em cadências e depois aceleravam em infinitos arpejos... Olhei para o mestre, enquanto este se desfazia em inúmeras notas musicais silenciosas que se ouviam apenas através da vibração, ouviam-se apenas com a alma. A última frase que o mestre me disse, enquanto se evaporava em notas musicais, foi: "Estragaste tudo, tentava levar este som harmonioso a todo o mundo, pelas tuas mãos, para que todos se entendessem pela música da alma, para que todos pudessem viver em perfeita harmonia com a Natureza."
Fugi dali, assustado como um louco que tivesse presenciado o mais arrepiante ser sobrenatural. Passei pela aldeia, todos falavam. Vozes que evocavam desejos, paixões, os maiores recantos do ser...., e ninguém se entendia, uns marcavam as suas terras, outros corriam sem destino, outros cortavam árvores, chovia, chovia torrencialmente como se o céu exprimisse o seu fim num derradeiro dilúvio.
Hoje, passados 5 anos, li uma trágica notícia:
" Homem da aldeia de P... mata com dois tiros de caçadeira o seu vizinho. O motivo, ao que tudo indica, foi uma discussão sobre os marcos que separavam os terrenos da vítima e do agressor."
Eu acabei por destruir o violino, o único instrumento onde todas as vozes se podiam entender em perfeita harmonia. É tão pouco aquilo que nos separa...
Durante anos pensei que tinha dado voz a um povo, a um sítio, quando tudo o que fiz foi destruir o elo que podia ligar tudo e todos em divina harmonia, "a música da alma" como diria o meu mestre... Por vezes ouço essa música, o estranho é que parece que ninguém mais ouve.... O meu castigo... provavelmente, um castigo eterno.
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