Iara
As árvores eram apenas um borrão de diferentes tonalidades verdes conforme eu corria entre a mata para defender meu povo. Os pássaros cantavam docemente, destoantes do rugido de guerra em meu coração e sangue. Eu não era apenas uma mulher, eu era a união entre um espírito guerreiro e uma simples humana. Diziam que eu era abençoada.
Não é comum que as mulheres da tribo saiam para travar batalhas ou caçar, mas me deixar para trás seria um desperdício. E todos sabiam disso. Por isso estou aqui, correndo em busca do meu alvo, olhos e ouvidos atentos a qualquer movimentação, meus pés descalços mal fazendo barulho enquanto avanço.
Noto o canto das aves se tornando cada vez mais fraco até desaparecer e me concentro mais. Agora estou parada, apenas olhando ao meu redor. Posiciono silenciosamente uma flecha em meu majestoso arco. Atiro.
Minha mira é mais que perfeita, a flecha com veneno derrubando meu inimigo no mesmo instante. Sorrio para a floresta, minha guardiã. Guardiã de meu povo. A lua brilha alto no céu, iluminando o rosto do homem ensanguentado no chão. Ele não é dos meus. Não, é mais um daqueles estrangeiros que parecem fazer de tudo para destruir nosso povo e matar os espíritos da floresta. Não sinto remorso enquanto seu rosto vai de uma careta agoniante até o relaxamento profundo. Está morto. Me pergunto se meus irmãos derrubaram seus parceiros.
Caminho lentamente de volta à aldeia, onde tenho certeza de encontrar uma recepção calorosa e alegre de meus irmãos e irmãs que lá ficaram. Já imagino todos dançando em volta da fogueira enquanto comemoramos a vitória sobre o ataque estrangeiro. Depois, meu pai provavelmente contará alguma história, ou profecia, para enfim nos recolhermos.
Ouço o canto triste de um Urutau ao longe, o único som que me acompanha em minha jornada. Não é um bom presságio. Uma enorme árvore se agiganta em minha frente, escondendo um riacho que desliza suavemente entre as pedras. Sem pressa, sento-me com os pés na água e observo maravilhada o reflexo da lua em seu leito. Uma arara me encara cuidadosa, provavelmente temendo que eu encontre seu ninho. Mal sabe ela que estou aqui para protegê-la daqueles que realmente querem machucá-la.
As penas vermelhas me lembram de algum tempo atrás, quando ganhei meu primeiro cocar ao honrar minha família e minha tribo salvando-os de um ataque. Foi assim que surgiu minha fama de guerreira, e foi assim que consegui fazer com que permitissem que eu saísse da aldeia para lutar. Minhas habilidades com o combate corpo a corpo e com o arco e flecha surpreenderam até os melhores guerreiros.
Minha primeira batalha em meio à mata foi uma confusão de cores entre flechas e homens. Mas não demorou muito para eu conseguir me adaptar, a música da floresta e o rugido do meu coração me guiando. Eu era sangue, suor e terra. Eu era velocidade, destreza e mira. Eu era espírito forte e corpo ágil. Eu era uma guerreira.
Olho mais atentamente para o riacho e vejo alguns peixinhos nadando alegres, sinto cócegas em meus pés e noto que alguns deles, muito pequenos, estão me mordiscando. Dou um largo sorriso aos peixes e à água, lavo minhas mãos e o rosto da batalha e perseguição, enfim me sentindo limpa novamente. Encaro meu reflexo por um instante. Meus cabelos caem sobre meu ombro em uma trança desarrumada, a tinta vermelha em volta de meus olhos está ligeiramente borrada por conta do suor e da água que acabei de passar pelo rosto. Meus olhos marrons refletem a infinidade do céu noturno.
Me levanto e começo a fazer meu caminho para a aldeia ao longo do riacho, que vai se tornando cada vez maior e mais belo até virar um grande rio. Vejo ao longe a fumaça de uma fogueira e percebo que estou quase em casa. Sigo em silêncio e me distancio da água. Mantenho os ouvidos atentos agora que minha visão não pode ser considerada minha melhor defesa.
Finalmente sinto cheiro de comida e tento adivinhar qual será o jantar. Estou tão ocupada com isso que baixei minha guarda e paro de prestar atenção ao meu redor, certa de que estaria protegida tão perto de casa. Tola, uma grande tola.
Não sei o que acontece primeiro, mas em um momento estou tranquila e sorrindo, sem nenhuma preocupação, em outro estou desviando de uma flecha que corta em minha direção, mirando para acertar meu coração. O ataque me pega de surpresa e por um instante me sinto paralisada. Felizmente me recupero rápido, pois outro ataque vem, dessa vez mais de perto, mais rápido, mais doloroso. Era meu irmão. Meu irmão empunhando uma arma contra mim, tentando me matar. Encaro seus olhos em busca de algo desumano, alguma possessão por espíritos ruins, mas vejo apenas olhos humanos brilhando de ódio. Ódio por mim.
Com um golpe rápido derrubo a lança em sua mão e acerto com ela outra flecha que vem em minha direção. É um ataque. Um ataque de meus irmãos contra mim. Apesar das chances improváveis, continuo a lutar, desviando dos ataques, mas sem querer machucar minha família.
Desvio meu olhar da batalha por um instante, apenas para encarar os olhos tristes de meu pai na outra extremidade da aldeia. Vejo uma lágrima escorrer por sua bochecha enquanto ele abraça fortemente minha mãe. Vê-la daquele jeito me faz algo dentro de mim se quebrar e então se reconstruir, mais forte dessa vez. Fecho os olhos e paro de me defender.
Paro de me esquivar e começo a atacar. Eles não vão parar, não até me verem morta. E eu não vou parar até sair viva. Ou eu, ou eles. Tenho a dizer que meus irmãos escolheram atacar a guerreira errada. Não me consideram especial a toa. E eu vou provar meu valor.
Dou meu grito de guerra, melódico e brutal ao mesmo tempo. Meus oponentes hesitam por um momento ao ouvirem o som, quase hipnotizados. Aproveito esse breve período para analisá-los, suas armas, posições, formas de ataque e defesa. Estou mais do que pronta. Meu grito cessa conforme começo a me movimentar agilmente para alcançar o ponto do terreno que melhor me favorece, tanto em equilíbrio quanto em visão. A maioria dos guerreiros esquece que mais importante do que força bruta, é estratégia e técnica. E eu domino ambas.
Levo minha mão às costas e preparo o arco. Tenho poucas flechas, mas acho que serão o suficiente. Há uma para cada homem. Uma para acertar no peito de cada um daqueles que eu costumava chamar de irmão, até me traírem. Felizmente, eu não costumava errar o alvo.
A cada batida de meu coração, eu disparei uma flecha e, a cada flecha, uma lágrima escorria pelo meu rosto. Eu estava matando minha família, ou o que costumava fazer parte dela.
Quando empunhei a última de minhas flechas, guerreiros caídos a meus pés, apenas um ainda restava. Ele me encarava e eu o encarava de volta. Era meu irmão, de sangue e alma. Raoni, o Grande Guerreiro, lutou ao meu lado e me ensinou muito do que sei. Um som oco me tira do transe quando as armas dele caem no chão em sinal de rendição. Ele não me mataria, mas estava disposto a levar uma flecha minha ao erguer os braços nus e ficar parado.
Mas aquela flecha destinada a seu coração será melhor aproveitada em minha caça no dia seguinte, pois não poderei ficar em minha aldeia depois do que acabei de fazer.
Não olho para trás ao sair correndo para a mata fechada, o sol começando a despontar no horizonte. O tempo deslizou suavemente durante a batalha que nem fui capaz de percebê-lo. As aves começam a despertar para o dia, alheias à carnificina em minha antiga aldeia. Alheias ao fato de que uma assassina de seus próprios irmãos corria entre elas.
Meus cabelos voam atrás de mim, a trança há muito destruída. Sinto meus olhos ardendo como nunca, minha garganta urrando para que eu me permita chorar e gritar. Não posso mais continuar.
Diminuo o passo e noto novamente a grande árvore da noite anterior. Me aproximo do rio e da vida que escorre por ele. Dessa vez não sou capaz de sorrir para os peixes, então choro. Permito que as lágrimas escorram livremente, mas não posso gritar, pois certamente alguém deve estar à minha procura.
Me sinto um monstro, desonrei minha família e os deuses e espíritos que me observavam. Que me deram o dom da guerra, o qual eu usei contra meus próprios irmãos.
O pensamento desperta raiva em mim. Reflito melhor a situação que enfrentei. Quem eu realmente matei. De quem me defendi. Meus irmãos, cuja inveja não foram capazes de controlar e se voltaram contra sua irmã. Se eu era culpada, eles eram ainda mais. Atacaram sem motivos dignos, também desonraram a todos. No fim, morreram por sua fraqueza e apenas por isso. Eu não era um monstro.
-Mas meu pai não entenderia isso, nem o resto da tribo. Eles virão atrás de mim -Sussurro para as águas cristalinas do riacho. Sinto que a floresta para por um momento e me observa, me escutand- Preciso de ajuda. -Não sei para quem estou implorando, mas sei que preciso que alguém atenda.
Voltar para a aldeia e me entregar, apesar de me permitir uma morte rápida e digna, não estava mais em meus planos. Eu nunca fui e nunca serei fraca, então se quiserem me ter, terão que sofrer um pouquinho para isso. Infelizmente para eles, eu sou a que melhor conhece essas florestas.
Finalmente consigo mover meus lábios em um sorriso, mas desta vez é o sorriso de quem acaba de aceitar um desafio. Olho para o céu, agora pintado em tons de rosa e roxo enquanto o sol se levanta preguiçosamente, e me permito pegar um pouco da energia e do calor do gigante de fogo para mim.
Não tenho exatamente um plano, nem sequer objetivos que vão além de sobreviver o máximo possível. Com apenas uma flecha restante, preciso encontrar uma forma de fazer mais, ao menos para conseguir comida, caso não precise para me defender. O que duvido muito.
Ando devagar pelo leito do rio na direção contrária à aldeia, pulando nas pedras e chutando a água, absorvendo o frescor do araci*. Estar sendo perseguida não me tira o direito de aproveitar o que me resta de vida.
Conforme ando pelo riacho, vou colhendo algumas frutas de árvores aqui e ali, mantendo sempre os ouvidos atentos a qualquer movimentação. Até que ele chega.
Noto tarde demais, seus pés tão sorrateiros quanto os meus. Seu conhecimento da floresta e de mim mesma permitiu que me encontrasse tão facilmente. Não esperava que deixassem ele sair de casa para se embrenhar na mata, não quando já estava tão velho e sendo o líder da tribo. Mas era meu pai, ninguém mandava nele além de si mesmo. E eu era sua filha, a qual o desonrou e a qual ele deveria fazer pagar.
Meu pai não tem companhia, muito menos qualquer tipo de arma, o que me faz soltar minhas próprias, o arco e a última flecha caindo na água e me molhando com respingos. Eu o encaro por mais um momento, sabendo que não posso, nem vou machucá-lo. Isso estaria além do aceitável até mesmo para mim.
- Tuba*. -Digo, meu semblante se mantém sério, meu corpo pronto para o combate, mesmo que eu não queira.
-Tagira* -Sua voz é firme, uma convocação, um chamado. Sei que devo obedecer, afinal não me resta mais nada.
Estou prestes a abandonar meu arco de vez e seguir em direção a meu pai quando noto uma acanguçu* o encarando. Meu pai me olha com raiva quando me agacho devagar e recolho a última flecha restante de minha coleção. Vejo sua confusão quando miro para um ponto atrás dele e atiro. Acerto o ombro do animal, sem intenção de matá-lo, apenas o atrasar o suficiente para que nós não sejamos seu almoço.
Meu pai corre em minha direção ao ouvir o rugido da onça, as pernas firmes apesar da idade. Pega em minha mão e me conduz para longe o alcance da acanguçu. Ele me leva pela floresta, mas aos poucos noto que estamos voltando para próximo do leito do rio.
Rapidamente noto o pequeno barco de madeira esperando na margem.
- Pai? O que você está fazendo? -Pergunto quando ele para em frente ao barco e pega um remo dentro do mesmo.
- Você desonrou nossa tribo, sua família e seu pai. Matou seus irmãos sem pensar duas vezes, deixou a aldeia desprotegida e ainda fugiu. Sabe que não pode mais ser aceita nem por nós nem por nenhuma outra tribo da região. Sabe o que eu, como líder e pai, devo fazer, independentemente de suas motivações ao matar seus irmãos. Eles estão mortos e isso é o bastante para que o mesmo lhe deva ser feito. -Ele para por um instante. Apesar das palavras duras, vejo que no fundo ele não quer fazer isso. -Você, que tanto amou a água, agora terá a vida tirada pela mesma. Entre no barco.
Obedeço sem hesitar. Sabia do meu destino desde que mirei a primeira flecha contra os meus. Apesar disso, rezo baixinho para os espíritos para que seja vingada, pois fui injustiçada e não tenho dúvidas disso. Falar algo do tipo em voz alta apenas pioraria minha relação final com meu pai, mas ficar calada não significa que aceito estar errada. Sempre fui amiga da água, sei que conseguirei me salvar. Ao menos é a minha única esperança.
Meu pai pega algumas cordas que eu ainda não tinha visto e me manda ajoelhar. Ele amarra minhas mãos e pernas, de forma que não posso tentar fugir. Nem nadar.
Ele entra no barco e começa a remar rumo ao centro do rio. Demora até ele começar a parar, a água se dividindo entre marrom e azul profundo em uma linha até onde meus olhos alcançaram enxergar.
-Está na hora. -Meu pai solta os remos e se aproximou, me abraçando. Sou ingênua o suficiente para aproveitar aquele abraço, sem perceber que ele estava na verdade me jogando ao rio.
Sinto primeiro o frio da água me banhando. Meus cabelos flutuam acima de mim conforme as cordas que eram amarradas a uma pedra me lançam ao fundo. Vejo entre borrões o rosto de meu pai e líder me encarando com pesar, mas ainda com raiva.
Meus pulmões queimam, mas evito ao máximo cair na tentação de puxar o ar, apesar de saber que não vai adiantar muita coisa. Agora percebo que essa forma de morte é muito pior do que uma flecha no coração. Começo a gritar desesperada por salvação. Não quero morrer. Não mereço morrer.
Por muitos anos acreditei ser abençoada, assistida pelos espíritos. Mas talvez eu estivesse errada e minha arrogância tenha plantado ódio naqueles ao meu redor. Isso já não importava, pois no momento eu só queria viver.
-Viver, eu quero viver- Uso meu último fôlego nessa frase. Já não tenho forças, nem para manter meus olhos abertos ou tentar desamarrar as cordas de nós muito bem feitos.
Conforme vou perdendo a consciência, noto levemente peixinhos me beliscando e alguns apenas nadando ao meu redor. De repente tudo fica escuro. Não sou mais ninguém. Não sou mulher, não sou guerreira nem abençoada. Não sou mais nada.
**************
Minha cabeça dói e tudo parece girar ao meu redor conforme abro meus olhos o mais devagar possível. Minhas lembranças estão tão turvas quanto a água ao meu redor. Por que há água ao meu redor?
Quando enfim minha visão parece se estabilizar, vejo diversos seres aquáticos me observando enquanto nadam tranquilos a uma distância segura. Olho melhor o lugar onde estou.
Parece uma gruta, com uma pequena cascata que desemboca em um riacho. Sinto que já conheço esse lugar de outras vidas. A luz entra pálida por entre as árvores e o canto de araras parte o silêncio etéreo do vale. É o lugar mais perfeito que já vi.
Tento me levantar da pedra submersa em que estou, mas percebo que não sinto minhas pernas. Olho então para onde elas deveriam estar e encaro atônita um rabo de peixe. Seguro o grito de desespero ao pensar que parte de mim pode ter sido engolida por um peixe enorme.
-Iara -Uma voz suave e melódica chama pela Senhora das Águas e me sinto tentada a seguir o chamado- Iara, venha até mim.
Nado lentamente em direção ao som, sem saber exatamente o que está acontecendo, afinal não tenho controle de meu próprio corpo conforme ele clama pela voz calma que chama por Iara.
-Morta por seus iguais, você pediu por justiça e esta lhe foi concedida. Levante-se Iara, abençoada pelo dom da batalha e assistida pelos espíritos ancestrais, seu pedido foi atendido e agora você vive. Senhora das águas, sua melodia é a melhor vingança, mas seu objetivo principal é a proteção dos que agora são seus iguais. -Todos os seres que nadavam lentamente ao meu redor começam a se agitar.
A voz parecia vir do fundo do rio, ao mesmo tempo que vinha de dentro da floresta. Enquanto o espírito fala, minha mente se enche de memórias. Sei exatamente quem sou e o que aconteceu.
Fui índia, fui guerreira e abençoada. Fui irmã e fui traída. Mas o principal: fui injustiçada por aqueles que me traíram por inveja. Implorei por ajuda em meus últimos momentos, quando meu próprio pai me atirou ao rio com ódio em seu rosto. Ódio por não compreender o que me fora feito e pensar que eu era a assassina. Mas a água me ouviu. Os espíritos me ouviram e me ajudaram, pois foram os únicos que viram o que eu vi e entenderam o que foi feito a mim. Agora sou a Senhora das águas. Sou a protetora daqueles que me ajudaram, mas ainda estou em busca de minha vingança contra aqueles que me machucaram.
Sou Iara, sereia da voz melódica, longos cabelos verdes de algas, olhos marrons como a casca de uma árvore da densa floresta que me cerca. Sangue de índia e coração de guerreira.
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GLOSSÁRIO
Iara: do Tupi "senhora das águas" ou "mãe da água"
Acangatara: do Tupi-guarani "adorno de penas para a cabeça" , usado em solenidades e normalmente feitos com penas de araras vermelhas. "acanga- cabeça; tara- enfeite"
Raoni: "chefe" "grande guerreiro"
Araci: "a mão do dia" "aurora"
Acanguçu: "onça, jaguar" do tupi "cabeça grande"
Tagira: "filha", usado apenas pelos pais, as mães usam "Membira"
Tuba: "pai ou pais"
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