Veneno sobre a grama - 7
Wulfric começava a achar que o silêncio que se interpunha entre os três não podia ficar mais desconfortável que aquilo.
A viagem de volta para o posto de gasolina para recuperar sua vespa já durava quinze minutos e nenhuma palavra havia sido proferida naquele meio tempo. Quando estava só com Blitz, o silêncio parecia algo normal.
Então por que três pessoas o tornava tão estranho?
Olhou para Blitz. A garota andava à sua frente na estrada de terra, parecendo estar mais preocupada com suas botas sujas de poeira do que com o possível resgate/sequestro que teriam que realizar para resolver aquele caso.
Olhou para Aura. A elfa o seguia, o olhar fixo em suas costas e uma expressão curiosa estampada no rosto. Seus olhos se encontraram e Wulfric voltou a olhar para a frente.
Um estranho som abafado, seguido por um bater de asas, dedurou a transformação de Aura. A andorinha que começou a voar ao seu lado confirmou isso.
"Há quanto tempo você descobriu ser um animorfo?", a voz da elfa penetrou sua mente.
Blitz estacou, virando-se ao mesmo tempo que se punha em uma postura defensiva, criando uma pequena nuvem de poeira com o movimento brusco.
– Mas que porra foi essa?! – Ela pareceu notar a transformação de Aura. – Foi você?
"Sim", a andorinha comunicou. "Desculpe-me. Eu ainda não sou capaz de conversar apenas com Wulfric nesta forma e, além disso, achei que seria rude te excluir da conversa de qualquer maneira".
– Caralho. – Blitz coçou os cabelos arrepiados. – Parece que você está dentro da minha cabeça. Eu estou começando a gostar do fato de Wulfric não conseguir fazer isso.
O rapaz arregalou os olhos ao mesmo tempo que a garota percebeu o que dissera.
– Merda – ela sussurrou ao se virar.
"Então eu estava certa", Aura continuou. "Você é novo nisso".
– Que tal falarmos sobre algo mais interessante? – Wulfric tentou mudar de assunto. – Como por exemplo o porquê de você conseguir se comunicar perfeitamente com a gente. Pensei que você mal falasse a língua comum.
"Sim, mas eu não estou falando agora. A telepatia animorfa funciona através de intenções. Eu transmito minhas intenções da forma mais fácil que conheço: em kaline. Já suas mentes recebem essas intenções e as traduzem inconscientemente para a linguagem que vocês mais entendem: a língua comum".
– Isso é muito interessante. – O garoto quase desejava ter um bloco de papel e uma caneta para fazer algumas anotações. – Você acha que poderia me enviar imagens da mesma forma?
"Alguns animorfos conseguem, mas é extremamente difícil. Requer uma intenção muito poderosa e ao mesmo tempo simples o suficiente para ser entendida pelo receptor".
– Entendo.
Blitz estacou novamente.
– Essa telepatia... Ela é de mão única, certo?
"Desculpe, não entendo".
– Você só pode enviar seus pensamentos, não é? Ou pode receber os nossos?
"Eu não consigo ler suas mentes, se é o que te preocupa. Se você deseja falar comigo, deve fazer isso verbalmente".
A garota pareceu satisfeita com a explicação.
– Bom – disse ao se virar. – Fique longe de minha mente, a não ser para falar algo de importante.
Aura não pareceu se ofender com aquilo, mas Wulfric desejava que Blitz pudesse ser um pouco mais gentil às vezes.
– Como a nossa comunicação é verbal – ele voltou ao assunto anterior –, imagino que você tem de conhecer a linguagem de seu receptor para que todos se compreendam, certo? Ou o receptor deve conhecer a sua.
"Sim", Aura disse. "Mas você não respondeu minha pergunta. Há quanto tempo você descobriu ser um animorfo?"
Wulfric suspirou.
– É tão óbvio assim?
"Digamos que sim".
Blitz não se virou para falar:
– Você fala isso pelo fato de ele ficar nu em pelo toda vez que se transforma? Ou por que ele não consegue usar telepatia? Ou por que--
– A gente já entendeu, Blitz! – o garoto exclamou, já sentindo suas bochechas queimar. Depois tomou coragem e disse: – Faz menos de um ano que eu descobri, mas não quero falar sobre isso, se não se importar.
"Tudo bem", Aura disse. "Eu só estava curiosa. Apesar de suas limitações, sua transformação é quase perfeita. Você tem talento".
– Talento?! – Wulfric perguntou, um riso nervoso já surgindo em sua boca. – Eu posso me transformar em um vira-latas e um camundongo. Que tipo de talento é esse?
O voo da animorfa vacilou por um segundo.
"Um maior que o meu, ainda mais se for cultivado. Eu só posso me transformar em aves de diferentes espécies".
Foi a vez de Wulfric estacar.
– Você... é selvagem? – o garoto perguntou ao mesmo tempo que tentava esconder a raiva e a repulsa que sentia por simplesmente usar aquela palavra. Sua relação com animorfos selvagens era, no mínimo, complicada.
"Eu nunca devorei ninguém, se é o que você está pensando".
– O que você quer dizer com ser selvagem? – Blitz perguntou e Wulfric só agora percebeu que ela havia parado também.
"Eu nasci como uma andorinha", Aura comunicou. "Meus pais também eram selvagens e essa forma era a mais confortável para eles. Aprendi a me transformar em outras aves com o tempo, mas só descobri minha forma élfica há poucos anos. Fora isso, não posso me transformar em mais nada. Por ter nascido uma andorinha, eu tenho afinidade com outras espécies de aves, mas não consigo me transformar em outros animais. É como se existisse uma trava psicológica que me impede de me tornar um mamífero ou um inseto por exemplo. Eu não consigo me imaginar como um".
– E elfos não são mamíferos? – Blitz perguntou.
"Animorfos conseguem assumir uma forma humanoide única, não importando sua afinidade animal. No meu caso, uma elfa. No caso de Wulfric, um humano. Alguns são anões, outros são orcs...".
– Mas por quê?
"Foi assim que a Mãe-Terra nos criou, não é preciso uma explicação para isso".
– Eu não sei é uma resposta tão boa quanto qualquer outra, sabia?
"Eu agradeceria se você não zombasse de minha crença, pequena".
– Não me chame de pequena! – a garota rebateu.
– Eu acho... – Wulfric interrompeu o início da briga. – Que deveríamos adiar essa conversa e focar nesse caso, não acham?
– Não é uma má ideia. – Blitz se voltou para Aura. – Agora que você pode falar... Ou melhor, se comunicar que nem uma pessoa normal, me diga uma coisa: esse elfo, Tarten, não é?
"Torithen".
– Tanto faz. Como ele é? Como ele realmente é? Eu vi sua expressão toda vez que o velhote tocava no nome dele. Você o odeia e eu quero saber o porquê.
Se Aura estivesse em forma élfica, seu olhar teria ficado tão duro quanto aço, ou pelo menos era isso que Wulfric achou ao ouvir a voz rancorosa da animorfa soar em sua mente:
"Torithen é um monstro. É a única maneira de descrevê-lo. Ele não se importa com ninguém além de si mesmo e não conhece o significado de empatia. Ele seria capaz de colocar fogo em todo o Bosque para conseguir o que deseja. E mesmo assim, na frente de meu mestre, ele se porta como um prodígio simpático".
– Psicopata – Blitz disse.
"O quê?"
– É mais adequado chamá-lo de psicopata do que de monstro. Monstros são honestos quando tentam te matar. Então você obviamente não acha que ele seria a melhor escolha para suceder o velhote.
"Nenhum dos dois irmãos é... ou era. Nerethen era talentoso, mas era mole demais. Um Senhor da Floresta deve ser gentil, sem dúvidas, mas deve também ter pulso firme".
– Por que você não se candidata? – Wulfric tirou a pergunta da boca de Blitz. – O pessoal do Bosque parece gostar muito de você.
Aura se calou por um longo momento. Depois respondeu, sua voz um tom mais baixo:
"Apenas elfos da floresta podem se transformar no ser que vocês que não são da Floresta chamam de spriggan. É uma tradição mantida desde o primeiro Senhor da Floresta, chamado Serathen, que foi abençoado pela Árvore da Vida a ter grande poder desde que protegesse as plantas e os animais que não podiam proteger a si mesmos".
"Eu posso parecer uma elfa, mas não sou pura. Sou uma animorfa e por isso ser coroada como Senhora da Floresta seria uma quebra da tradição ditada por Serathen há milênios".
"Nerethen não era a melhor escolha, mas eu poderia aceitá-lo. Torithen está fora de cogitação. Você viu o que ele fez com as dríades, seu próprio povo, tudo porque estava com raiva. Como uma criança mimada..."
– E o spriggan não sabe disso? – Wulfric perguntou. – Digo, desse jeito de ser dele?
"O orgulho e o amor que ele sente pelos dois o deixa cego. Por isso ele ainda pensa em perdoar Torithen".
Blitz suspirou.
– O mero pensamento de encontrar esse maldito elfo só para colocá-lo de castigo como essa criança mimada que ele é, deixa um gosto amargo na minha boca. – A garota virou-se e pôs-se a caminhar. – Eu espero que ele tente nos matar.
A falta de sarcasmo na voz de Blitz fez Wulfric estremecer. Mesmo assim, ele a seguiu.
# # #
Está gostando da história? Não se esqueça de votar e deixar um comentário com sua opinião. Todo feedback é bem-vindo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro