COMO EU PAREI DE FUMAR
Que a noite traz ares sombrios e alimenta os pesadelos do homem desde os primeiros hominídeos das cavernas, é inconteste; isso qualquer escritor habilidoso, para fisgar sua atenção, irá lhes dizer, leitor. E não é novidade para ninguém. O que talvez conte a meu favor, porventura, sejam os personagens dessa trama. Menos críveis. Totalmente duvidosos. Mas corro esse risco e irei narrar os fatos, da maneira exata como aconteceram comigo; paciência.
Que é a noite, já sabes. Não sabes com quem ainda. E aí está a dificuldade. Será difícil, como novato que sou, pôr no papel de um jeito atrativo e com sucesso, tanto absurdo. Todavia, juro pelo Deus altíssimo que se trata de um acontecimento verídico.
Calma, eu preciso de um café, quem sabe. Ou uma bebida mais forte. Aqui da varanda a lua ilumina a noite e também minhas ideias. Sou Diógenes e um dia saí para comprar cigarros. A padaria de costume estava fechada. Soube, no bar da esquina, que moradores de rua provocaram briga e a polícia foi chamada e o lugar teve de ser fechado. Então tive que andar até o posto de gasolina, uns trezentos metros adiante. Na volta percebi que tudo parecia diferente. Não poderia ter mudado assim tão rápido. As pessoas das esquinas, do bar, ninguém. Todos haviam desaparecido. Achei muito estranho, mas mesmo assim segui caminhando. Então, na padaria, encontrei dois mendigos. Os dois eram barbudos e até se pareciam um com o outro. Porém um deles usava um agasalho esportivo azul e um saco plástico de lixo preto com furos no pescoço e nos braços, como uma espécie de capa de chuva improvisada e o outro usava calças de lã rasgadas e um suéter vermelho, sujo. Esse tinha a barba preta e o outro a barba branca. O de barba preta chegou perto e pediu um cigarro. Eu ia oferecer a ele, no que o outro falou, "Fumar não faz bem à saúde. Você não devia fumar, e você", apontando para mim, "também não".
"Para com isso, seu velho rabugento. Se as pessoas se importassem com o que você diz, teriam ouvido você e não a mim. Eu sou a lei. Você se esqueceu"? Disse o de barba preta. No que o de barba branca respondeu: "Então é assim? Você vai começar com esse exibicionismo e vamos ter essa conserva de novo? Uma conversa que não tem fim? Vamos perguntar ao Diógenes. O que você acha? Os homens pertencem a Deus ou a Satanás"? Na hora eu comecei a rir. Encostei-me na parede do estabelecimento e sentei-me na calçada, enquanto os dois me encaravam sérios. Irredutíveis. Não pareciam estar brincando.
Lembro-me de dizer: "Que porra isso importa? Com Deus, com Satanás, estamos todos fodidos mesmo. Né"?
"Se você não escolhe, nos dá o direito de escolher por você? O que acha, pastor"? Perguntou o de barba preta. Aqui as coisas começaram a ficar bem estranhas.
"Outra aposta, coveiro? Não te cansas? Hoje não se perde nada. Qual alma tem valor. Diga"?
Então eles ficaram ali discutindo, coisas assim, sobre um ser Deus e o outro o diabo. Loucos. Eu estava entediado e virei as costas e os deixei falando sozinhos. Mas eis que aí o de barba branca, que vou passar chamar agora de Pastor, como o outro se referiu a ele, estendeu a mão, o que fez eu parar imediatamente o que estava fazendo e me virar. Como uma peça de xadrez eu fui manipulado pelas mãos do jogador.
"Veja", - disse o pastor e separou do meu corpo, com as mãos, o que afirmou ser a minha alma e continuou, "essa alma em particular tem sonhos intranquilos e pesadelos horríveis. Leva uma vida tão vazia de significado que seria um desperdício requerer uma alma tão pobre. Queres continuar"?
E o de barba preta, que agora chamarei de coveiro rebateu: "Assim o vês. Para ti sem valor. Mas o que não tem valor para ti, sabes que para mim tem valor. Eu fico com ela".
Espera, eu interrompi. Quer dizer que a minha opinião nesse assunto será mesmo ignorada?
"Você abriu mão do seu direito, rapaz. Não foi assim"?
"Foi mesmo. E eu digo. Sou a verdade e atesto mesmo que foi assim", - afirmou o pastor.
"Sejamos justos então, pastor. Eu tenho aqui no bolso uma moeda. Vamos jogar cara e coroa. Cara a alma é sua, coroa ela é minha".
"Eu concordo. Não há o que se barganhar com a sorte. Que assim seja".
E foi assim que totalmente paralisado, vendo de um lado o meu corpo suspenso no ar e do outro, esses dois malucos apostando a minha alma, que eu me tornei uma aposta. Um mero passatempo entre Deus e o diabo. Desgarrado do meu corpo eu não podia sentir nada, nem pavor, calafrios, então eu só fiquei inquieto, me sentindo um brinquedo disputado por duas crianças. Por sorte não foi a criança travessa que me ganhou, mas a boazinha. Pelo menos eu achava que era. Deu cara. Aí eu disse: "Agora eu posso ir embora? Pode devolver a minha alma ao corpo?" Foi quando o pastor espalmou as mãos e como se veste uma roupa, minha alma se agarrou ao meu corpo, causando um desconforto semelhante ao sufocamento, quase como morrer, se pudesse descrever a sensação. E quando já estava virando a esquina o coveiro gritou:
"Amigo. É sério. Escute o conselho do pastor. Se não quiser ter o encontro comigo mais cedo do que pensas, pares de fumar. Se não, é infalível que terás mais dez anos de vida e logo te verei de novo".
Acelerei o passo e quando olhei para trás de novo os dois tinham sumido. Os transeuntes voltaram a circular. O bar voltou com sua clientela habitual e tudo ficou como estava antes. Se o que eu vi foi real ou não, nunca vou saber. Pelo menos daquele dia em diante eu parei definitivamente de fumar.
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