AM(D)OR
Pii... Pii... O número discado está fora de área ou desligado, (...)
E mais uma vez repouso o celular sobre a mesa de madeira, localizada no corredor da minha casa. A Alice não atende as minhas ligações há quase uma semana e algo me diz que tem coisa errada acontecendo. Nós nunca estivemos tão distantes assim e ficar dias sem vê-la faz meu coração doer.
Nesse momento, torno-me um mero brinquedo da ansiedade e da aflição. A distância articula maldosamente contra nós dois para que não possamos estar juntos. É tão agonizante não sentir o seu perfume adocicado ou sua voz suave, até mesmo a sua gargalhada atrapalhada faz-me imensa falta. Essa garota mexe com todos os meus sentidos mesmo longe, demonstrando ser uma arma fatal que tens meu tolo coração em suas mãos.
Alice Sanders é a garota perfeita. Vencedora do concurso Miss Beleza do Colégio, essa colocação foi mais do que merecida devido ao seu pequeno porte físico, dotado de curvas invejáveis e longos cabelos loiros. Seus olhos azuis vão além daquela metáfora idiota de oceano ou céu, para mim eles são a própria redenção – ou o purgatório, se não souber fitá-los corretamente. Apesar de ser baixinha, nossos corpos parecem possuir o encaixe perfeito e sua voz agrada-me demasiadamente. Creio que nem mesmo os querubins possuem tamanha delicadeza.
Eu, Gabriel Gonzalez, sou um imigrante mexicano. Eu e minha mãe – Glória Gonzalez – viemos para os Estados Unidos cinco anos atrás. Inicialmente, sentia-me de lado no novo colégio mas a Alice apareceu como um anjo, puxando-me do abismo da solidão. Ela falou comigo no primeiro dia de aula, sentando ao meu lado e até ousando dividir o lanche comigo.
Desde aquele dia, venho a admirando arduamente como um escultor admira sua inspiração antes de usar as mãos para tecer sua obra. Alice é e sempre será a minha obra prima.
Como começamos a namorar? Minha mãe aprovou o namoro desde sempre, encorajando-me à continuar ao lado da bela dama apesar das diferenças. Isso mesmo, somos diferentes. Eu sofri um acidente doméstico quando era mais jovem, perdendo quase 80% da minha pele original. Por isso, uso ataduras brancas por boa parte do meu corpo e evito ficar exposto ao sol por muito tempo.
Mesmo com essa diferença, Alice Sanders não tirava os olhos de mim e trocávamos conversas agradáveis. Então, certo dia, criei coragem para me declarar e agora somos namorados. Porém, a felicidade ocultou seu sorriso nesses últimos dias pois não vejo a minha garota. Ela não atende minhas ligações e seu celular parece estar sempre desligado. Devido às circunstâncias, deduzo que haja alguém a perseguindo e ela pode estar presa em cativeiro agora mesmo.
— Eu preciso fazer algo. — murmuro aflito até que sinto a mão da minha mãe sobre mim.
— Tente ligar novamente.
Sei que essa é a décima vez que escuto o conselho de Glória nessa noite, mas não posso negar que ela é a voz da razão. Então, ligo para a Alice e resolvo falar quando a ligação cai na caixa postal.
— Alice, mi amor. Por favor, atenda às minhas ligações. — imploro. — Estar longe de ti é como um castigo definido pelos deuses. Não sei o que está acontecendo mas temo que pessoas ruins em sua vida queiram nos separar.
Isso não é mentira, o pai de Alice – Jonathan Sanders – nunca gostou de mim. Ele não permitia que eu entrasse em sua casa ou sequer falasse com sua filha, tudo isso por causa das malditas feridas que circulam o meu corpo. A mãe dela parece ser gentil mas nunca tive a oportunidade de ter algum diálogo com a senhora Sanders. É triste ver uma família tão reservada.
A Alice só veio conhecer a minha mãe uma única vez e, desde então, não apareceu em casa. Temo que a mamãe tenha sido rude, já que ela gritava muito comigo quando eu era uma criança.
Estranhamente, nossa situação financeira melhorou muito nesses últimos tempos pois o moço do banco me entregou uma tal de "herança".
Sim, meu pai era rico mas queria todos os bens materiais só para ele.
De qualquer forma, sinto-me aliviado de que a Alice continuou sendo a mesma pessoa sem dar importância para o dinheiro que possuo. Eu nunca o usei desde que esteve em minhas mãos e não pretendo. Dinheiro, poder, fama; tudo isso é patético. Eu só preciso do amor e, com ele, posso alcançar todas as dádivas que o homem não obteve ainda.
Mais uma vez tento entrar em contato por telefone, deixando uma mensagem na caixa postal.
— Alice, estou tão preocupado. Você não retorna as minhas ligações. Alguém está te machucando? Por favor, diga-me ou morrerei nessa fatídica espera.
Mas nada da minha amada responder.
Nesse momento, lembro-me de Philipe Morgan, um idiota que estuda com a minha Alice e vem dando em cima dela na minha frente. Esse garoto é ousado e nunca respeitou ninguém naquele colégio. Ele tem uma autoconfiança digna de piedade porque sempre abre o seu armário e fica penteando o cabelo ruivo por longos minutos.
Ele já se envolveu com algumas brigas de gangues e todos sabem que usa drogas. Uma pessoa assim perto da minha Alice é perigoso demais. As chances do Philipe tê-la capturado são altas demais, porque o olhar de luxúria que aquele rapaz passa para a minha namorada é muito evidente. Todos na escola comentam que os dois deveriam ser um casal, ignorando o fato de que eu e ela somos namorados. Sei que passo despercebido naquele colégio, mas isso é um ato de crueldade sem perdão.
— Acha que foi o Philipe? — minha mãe pergunta como se fosse capaz de ler meus pensamentos, apenas concordo com a cabeça. — Por que não vai na casa dele, então?
— E se a Alice não estiver lá?
— E se ela estiver?
Como sempre, Glória é a voz da razão agindo como se fosse o meu subconsciente perturbado. Então, pego as chaves e caminho em direção ao meu Honda CR-V, entrando no carro. Antes de dar a partida, minha mãe senta ao lado e coloca o cinto.
— Madre, você não pode ir. Se o Philipe estiver com a Alice, significa que ele é um cara muy perigoso!
— Eu não vou deixar o meu hijo sozinho. — ela dizia tocando minha face. — Nunca.
Sorrio sem jeito diante de tal gesto de amor, girando os olhos dourados em direção à pista e dando partida. Se a minha namorada corre perigo, estou disposto a dar minha vida por ela.
Mesmo decidida a ir, deixei minha mãe no carro para que não corresse nenhum perigo. Bato algumas vezes na porta mas ninguém aparece, por isso repito o movimento com mais força. Eu poderia desistir de conversar mas ouço um grito vindo do interior da casa e essa voz só podia ser da Alice!
De forma instantânea, arrombo a porta com um único chute e sinto os músculos da perna latejarem. Invadindo a casa, dou de cara com os pais dele sentados no sofá e desviando a atenção para mim, completamente assustados.
O pai dele ficava de pé e já procurava a sua arma enquanto a mãe se escondia atrás do sofá. Eu permaneci imóvel até que minha mãe surge na frente, ficando entre mim e o cano do revólver em mãos do senhor Morgan. Em uma fração de segundos, pego o vaso ornamental ao meu lado e jogo em direção ao homem. Logo após, avanço contra ele subindo sobre seu corpo caído e começo a desferir socos.
Ninguém machuca mi madre.
Como alguém ousou erguer sua arma contra uma senhora de boa conduta como a Glória? Ela nunca fez mal à ninguém e deu tudo de si.
Ao final da sequência de socos, deixo o homem desacordado e desvio a atenção para a origem de um peculiar som, como se algo fosse puxado.
Click.
A arma estava em minha cabeça, a senhora Morgan a apontava trêmula e com lágrimas nos olhos.
— Eu não quero machucá-la, só quero a minha Alice de volta.
— Mãe, o que está acontecendo aqui? — Philipe pergunta ao descer as escadas. — Oh, meu Deus!
Ele está com o aroma da Alice, posso sentir. Então, não resta dúvidas de que esse desgraçado fez algo com minha namorada e quer esconder. Como um flash de uma câmera, minha mãe aparece na frente do rapaz e tenta avançar em busca também de explicações. Mesmo não demonstrando, ela se importava com a minha garota e isso arrancou um sorriso bobo de meus lábios.
Infelizmente, precisei de uma abordagem mais direta para descobrir onde ela estava.
(...)
— Eu não acredito que o Philipe confessou. — admito surpreso, sentando-se no banco do motorista e limpando as mãos com o pano branco. — E ainda mais, está a prendendo em sua própria casa.
— O que faremos, hijo? — minha mãe pergunta com medo, desviando seus olhos para os meus. — O pai da Alice é policial, ele é perigoso.
— Sim, eu sei. Sabe, o pai da Alice abusa da sua filha desde que ela era pequena.
— Sério?
— Sim, mas ninguém sabe e minha garota tem medo de admitir. Sinto-me tão impotente por não poder fazer nada. — disso dando um soco no volante e, logo após, escondendo o rosto entre as mãos trêmulas. — Eu a amo tanto, madre...
— Eu sei.
— Por que amar dói tanto assim?
— O amor é desse jeito, hijo. — ela diz com ternura, acariciando meus cabelos negros. — Um amor sem dor é apenas um sentimento vazio que nos preenche com falsas esperanças. Por que a rosa é tão bela? Porque seus espinhos a tornam inalcançável e utópica, a personificação do verdadeiro amor.
Ela está completamente certa. Amar não é somente ter momentos bons, precisamos nos permitir sofrer um pouco para valorizar o sentimento.
Decido ligar para a casa da Alice, porque talvez ela esteja sozinha e com medo. Se o Philipe e o pai dela estão trabalhando juntos nessa, tenho alguma chance já que um deles deixou de ser uma ameaça.
— Alice, meu anjo, eu estou indo aí o mais rápido possível. Eu sei que não pode falar comigo enquanto seu pai estiver aqui, mas prometo te salvar das garras desse monstro. Eu juro pela minha vida de que irei te salvar, porque eu faria tudo por você e...
Vejo minha mãe fazer um sinal de "para de falar, seu bobo. Ela vai se afastar de você desse jeito!"
— E-Era só isso... A-Adios!
Desligo a chamada, concentrando-se na estrada.
Enquanto dirigia, lembro da segunda vez que Alice falou comigo. A primeira foi para mostrar o colégio para o novato, vulgo eu.
Estou sentado na grama macia do pátio, apoiando as costas na árvore enquanto havia um caderno em minhas coxas. Desenho cuidadosamente cada detalhe do ambiente à minha frente, até mesmo as flores sendo balançadas pelo vento. Já é a segunda semana nesse colégio e não consegui fazer nenhum amigo, todos se afastam por causa da minha aparência e olhar sombrio. Depois do primeiro dia de aula, vim admirando a loira dia após dia como se fosse um remédio necessário a ser tomado senão não seria a mesma pessoa.
— Posso me sentar? — sua voz gentil ecoa pelo ambiente e ergo o olhar surpreso.
— A-Alice Sanders?! C-Claro.
Ela senta ao meu lado, aproximando-se o suficiente para fitar o caderno. Seu aroma adocicado invade minhas narinas e sinto os pelos do corpo se eriçarem. Quando nossos ombros se encostam, uma onda de calor domina cada centímetro da minha pele. Involuntariamente, acabo prendendo a respiração temendo estragar tal momento.
— Não sabia que desenhava! Oh, que linda!
Ouso desviar meu olhar para a face angelical da garota. Seus cabelos loiros estão bagunçados, as pontas revoltas caem perfeitamente sobre os ombros e a franja mediana cobria um pouco de seu rosto. As orbes azuis analisavam a folha do papel e seu lábio rosado está comprimido.
— S-Sim...! — continuo admirando seu rosto. — Muy hermosa...
Ela olha para mim curiosa.
— D-Digo! A paisagem... N-Não que eu te ache feia... É q-que... E-Eu...
Alice ria divertindo-se com a situação e balança a mão com desdém, sinalizando que estava tudo bem conversar com um atrapalhado como eu.
— Não se preocupe, eu entendi.
Então, ela repousava a sua mão sobre a minha e começamos a conversar sobre meus desenhos. Infelizmente, Alice não falou muito sobre si mesma mas eu pude deduzir como era a vida que ela tomava.
Acordo dos meus pensamentos quando o carro estaciona na frente da casa. Engolindo um bolo na garganta, caminho lentamente em direção à porta. Todo o nervosismo some quando percebo que o carro do pai dela não está, isso é um sinal de que posso avançar.
Consigo destrancar habilmente a porta, olhando para trás e não vendo nenhum sinal da minha mãe.
Provavelmente ela ficou no carro.
Adentro na casa, dando passos lentos e analisando o que havia em minha frente. A casa estava vazia e nenhum sinal dos pais dela. Antes mesmo de executar o quarto passo no interior da residência, recebo uma pancada na cabeça e acabo caindo de joelhos. Eu sinto um filete vermelho em minha nuca e acaricio a região, vendo-a repleta de sangue.
Outro golpe leva-me ao chão e vejo tudo ao redor girar. Quando viro o corpo para ficar de barriga para cima, posso ver a silhueta da mãe da Alice – Mileena Sanders – caminhando em minha direção. Ela possuía um taco de beisebol em suas mãos e seus olhos me fitavam com ódio.
— Seu doente! O que faz aqui? Eu vou te matar! Ou melhor, chamarei alguém que dará um jeito em você!
A voz irritada da mulher é a última coisa que desejo ouvir nesse momento. Por mais que queira revidar, minha cabeça dói tanto e meu único pensamento é o primeiro beijo com a Alice.
Nós estávamos na ponte da cidade, entorno de meia noite. O vento gélido pairava sobre o local, fazendo a garota tremer de frio. Entrego meu casaco para jovem e ouço seu suave agradecimento, encolhendo-se na sua manta improvisada e fitando o horizonte. Alguns barcos estavam parados à frente, descansando para sua próxima viagem no outro dia. Olho para seus dedos brancos – devido ao frio do inverno – e coloco minha mão por cima da sua, causando um pulo surpreso por parte dela.
— Eu não sei como te dizer, Alice, mas... Estou apaixonado por ti. — admito abaixando o olhar. — Eu quero-te só para mim, é pedir muito...?
— Não, porque eu quero a mesma coisa.
Quando ela fala tais palavras, arregalo os olhos surpreso e viro o rosto em sua direção.
— Yo te amo, Alice...
— Eu te amo, Gabriel...
Então, inclino o rosto para baixo ao ver que a loira não desviou sua atenção de minhas orbes douradas. Aos poucos, ela fechava os olhos como um sinal para que avançasse e assim o faço. Quando nossos lábios se encontram, sinto que é esse lugar onde eu devia estar: perto da Alice. Ela sorria boba durante o beijo, subindo a mão por minha nuca e correspondendo com mais voracidade.
Embaixo da lua cheia, fizemos nossas juras silenciosas de amor... De amor eterno.
Seguro o taco de beisebol no ar, segundos antes de ir de encontro à minha cabeça pela terceira vez. Lembrar do momento com minha namorada foi o suficiente para dar forças contra o golpe. Levantando-se rapidamente, tiro a arma da mão da mulher e a uso contra sua cabeça. Infelizmente, não consigo medir as forças e acabo fazendo minha futura sogra desmaiar – ou morrer por causa da enorme quantidade de sangue.
Ouço o som das sirene e seguro firme o taco, recuando ao ver o policial entrar com um olhar de poucos amigos. Só podia ser o maldito Jonathan Sanders. Ele abaixou o olhar para a esposa, tomado pela fúria e puxando sua arma.
O primeiro disparo é efetuado mas consigo desviar, jogando o corpo para o lado segundos antes. Ainda com o taco de beisebol em mãos, avanço contra o policial e ele recua alguns passos ousando atirar novamente em mim. Desta vez, abaixo o meu corpo e acerto suas pernas com toda a força.
O gemido de dor que escapa de seus lábios é gratificante, porém esse momento dura tão pouco. Jonathan dá um tiro na minha perna e solto um grunhindo de dor caindo de joelhos. Agora, estamos cara à cara e o mínimo movimento pode ser decisivo.
— O que deu em você, garoto?! Eu deveria ter te mandado para o hospício quando percebi o seu movimento nas redondezas!
Ignoro suas palavras pois são apenas para me afetar, ver o quão debilitado mentalmente eu estou. Nesse momento, minha mãe aparece ao meu lado e desvio o olhar para ela. Glória está ofegante e seu rosto demonstra preocupação.
— Filho, ele irá matar a Alice se você não fizer nada!
— Mas o que eu posso fazer, mãe?
Jonathan vira o rosto em direção à minha mãe e aproveito a aproximação para tomar a arma de sua mão, descarregando todo o pente em seu peito e vendo o sangue jorrar por toda a parte – principalmente em minha roupa. Logo após, jogo a arma para longe e pego o taco de beisebol olhando-o friamente.
— Você é um monstro... — ele murmura cuspindo sangue. — Tanto por dentro como por fora.
Fecho os punhos com força, segurando as lágrimas e dando alguns passos em sua direção. É divertido como o imponente Jonathan Sanders não passa de um cachorrinho indefeso, quase implorando por sua vida.
Ao dar o último passo em sua direção, sinto uma ardência na costela e desvio o olhar para o rapaz em minha frente: Philipe Morgan! Ele continuava com os machucados que lhe fiz, mas podia permanecer em pé. Pensei tê-lo matado. Então, a minha mãe estava certa... Os dois trabalham juntos.
— Por que vocês querem machucar a minha Alice...? — sussurro tirando a faca do corpo, virando o rosto para o rapaz. — Só porque eu decidi protegê-la à partir do momento em que nos tornamos namorados?
— Do que você está falando, seu maluco?! — ele dizia irritado. — Você não passa de uma praga na vida de todos nós!
Lembro-me de alguém dizendo isso para mim, tais palavras são tão familiares. Uma voz feminina dizia essa frase, uma voz semelhante à minha mãe.
Afasto-me dos pensamentos quando recebo um soco no rosto, cambaleando para o lado e quase caindo devido à fraqueza. Então, salto por cima do Philipe e começamos uma luta física. Ele chutava minha barriga diversas vezes mas fui capaz de resistir à dor e segurar seu pescoço com ambas as mãos.
Minha mãe continuava a me encorajar para continuar mas estava afastada, temendo que o policial Jonathan se levantasse para machucá-la. Vê-lo morrer lentamente torna tudo mais prazeroso, principalmente porque haverá menos um babaca no mundo. Philipe tratava a Alice mal, já vi marcas roxas em seu pescoço causada por alguma agressão do rapaz. Além de que eu o peguei um dia encarando a bunda das líderes de torcida. Como alguém tão fútil assim pode existir no mesmo mundo que a minha Alice?
Deixando seu corpo sem vida de lado, olho para trás e não encontro o policial. Então, minha mãe aponta para a cozinha e o vejo tentando discar para a alguém do telefone que havia lá.
Corro o mais rápido que posso, avançando contra o corpo do homem mas Jonathan desvia ainda com o aparelho de fio em mãos. Logo em seguida, ele pegava uma faca que estava ao seu lado erguendo o braço o descendo em alta velocidade em minha direção. Como o golpe vinha em vertical, uso o meu braço na horizontal para bloqueá-lo formando um tipo de cruz. Enquanto eu começo a empurrar o braço dele para trás, busco força em outra memória com minha namorada.
Alice estava deitada em minha cama, totalmente sem roupa e vermelha de vergonha. Ela abria os braços em minha direção, permitindo que eu me aproximasse e ficasse entre suas pernas. O suor do nervosismo escorre por minha testa e engulo seco. Mesmo repleto de ataduras, ainda possuo um corpo atlético pois nunca deixei de praticar exercícios
— Tem certeza, Alice? Eu não sou normal como os outros garotos e...
— Shii, Gabriel.
Ela tocava gentilmente meus lábios com o dedo indicador, tomando toda a minha atenção para seu rosto angelical. Alice sorria como uma forma de me tranquilizar e balançava positivamente a cabeça, como se dissesse que estava tudo bem continuar.
— Eu confio em você e não ligo para o seu corpo.
Abrindo um sorriso singelo e desastrado, avanço meu corpo contra o seu e sinto meu membro penetrar o seu interior virgem. O gemido suave que escapa de seus lábios faz uma leve contração em meu íntimo, ouvindo-a arfar baixinho com tal sensação. Sua mão trêmula segura a minha e a aperta carinhosamente enquanto me encara com algumas lágrimas nos olhos.
— P-Pode se mover...
— Ah, Alice! Você é a minha redenção!
Abraço seu frágil corpo, começando a movimentar a cintura com o som de seus gemidos como a melodia que acompanhava a nossa primeira vez.
Chuto a barriga de Jonathan que recua, batendo as costas na pia empurrando alguns produtos inflamáveis para o fogão acesso. As chamas se espalham pelo local e o policial se afasta assustando, voltando a discar o número no telefone fixo grudado à parede. Porém, abro a gaveta e tiro um garfo – com tamanho de espátula –, cravando no olho do homem. Ele grita dor e continuo a golpeá-lo até que largue de uma vez por todas o aparelho. Para finalizar, jogo seu corpo às chamas que se espalhavam rapidamente pelo local.
Dando às costas ao cenário de caos e passando pelos corpos, subo os degraus da escada com a mão apoiada sobre o peito temendo não encontrar a minha amada com vida. Respiro fundo, abrindo a porta e presenciando uma cena que fez meu coração parar de bater.
Alice dormia tranquilamente como um anjo, ao lado do seu celular onde ouvia alguma música nos fones de ouvido. Por isso, ela não escutou nada do que houve lá embaixo. Seu corpo estava encolhido como sempre fazia quando dormia, cobrindo-o com o cobertor até a altura dos ombros. As longas mechas do cabelo loiro espalhados pela cama e algumas cobriam o rosto. Ao se aproximar, passo delicadamente os dedos por seus cabelos e os afasto da face.
Como se saísse de um transe, a loira acorda assustada e sentava na cama puxando a coberta até o queixo. Seus olhos expressavam medo, o que não condizia com a situação pois eu não seria capaz de machucá-la; só então me dou conta de que é por causa da minha roupa suja de sangue.
— Mi amor, que bom que estás bien.
— Amor? Do que está falando?
— Você não atendia às minhas ligações, eu fiquei preocupado.
— Eu te bloqueei desde que você não parou de mandar mensagens feito maluco.
— E o nosso namoro? — pergunto preocupado. — E tudo que vivemos?
— Nós não vivemos nada! Eu só te falei uma única vez no primeiro dia de aula e, desde então, você vem me perseguindo! — ela grita assustada, descendo da cama e segurando o abajur rosa. — Afaste-se ou te atacarei, seu psicopata!
— Mas e os nossos encontros? E o beijo? E...?
— O que?! Nada disso existiu, é tudo coisa da sua cabeça!
— Você foi à minha casa!
— Uma única vez! Foi no enterro da sua mãe! Eu sei que você ficou muito abalado, mas todos sabemos que ela era uma pessoa ruim e que tentou te queimar vivo quando era criança. — Alice dizia ainda segurando o abajur. — Tudo bem que não guarda ódio de uma mulher dessas, o psicólogo do colégio falou que era um tipo de mecanismo de defesa da mente, mas perseguir pessoas não é!
Alice só podia estar brincando, minha mãe sempre esteve ao meu lado. Quando olho por cima dos ombros, não encontro a Glória e chamo diversas vezes por seu nome mas não obtenho nenhuma resposta. Então, sinto uma forte dor de cabeça e tenho flashes do enterro da minha mãe, onde somente a Alice e uns amigos dela – dentre eles, o Philipe – apareceram. Aos poucos, todos os momentos que tive com minha namorada eram revelados como meras fantasias da minha mente. A Alice nunca conversou comigo enquanto eu desenhava ou lia na biblioteca. Nosso primeiro beijo não existiu, bem como nossa primeira vez.
Tudo obra da minha mente fodida.
— Esse sangue! — ela exclama apontando para a minha camisa. — O que você...?
— O Philipe... Ele é um cara mau, não é...?
— Claro que não! — grita alterada. — Eu e o Philipe tínhamos um lance mas não era nada sério... Ainda!
Apoio ambas as mãos na cabeça, puxando os fios de cabelo com força enquanto sentia as pernas tremerem. Tudo que aconteceu não passou de uma mentira? Esses longos meses foram uma mentira?
— Mas seu pai... Ele abusava de você!
— De onde você tirou essa ideia maluca?! Eu e meu pai nos damos muito bem e ele nunca faria algo assim!
Mais uma vez tenho uma lembrança sobre um noticiário na TV que falava sobre um caso assim. Eu devo ter inventado tudo com base no que assisti. Criei uma fantasia para ser o herói que salva a princesa.
— Onde estão os meus pais?
Quando vejo as lágrimas escorrendo pelo rosto da Alice, o aperto em meu peito intensifica-se ao ponto de se tornar difícil respirar. Ela acerta o abajur em minha cabeça mas permaneço imóvel, fazendo-a recuar assustada. O sangue escorria por minha testa, algumas gotas caindo no chão. A dor latejante da costela não era nada comparado à dor do peito.
— Eu... Eu... Desculpe...
— Você os matou?! S-Seu monstro! Tudo isso por que fantasiou algo que nunca aconteceria? Nunca! Você é um doente!
Posso ver como seu corpo está encolhido no canto do quarto. Ela abraçava as pernas olhando-me como se eu fosse algum tipo de demônio, o que era a última coisa que desejava. Por todo esse tempo, idealizei um amor que não fosse verdadeiro. Pensei que minha mãe estava certa ao dizer que esse sentimento era acompanhado pela dor. A parte da dor eu realmente entendi mas onde está o amor? Tudo que vivi era falso, então esse sentimento também deve ser.
— Lo siento mucho, mi amor.
— Eu não sou o seu amor! Você é um doente que matou os meus pais e eu te odeio!
Eu...
Te...
Odeio...
Nunca pensei que essas palavras pudessem causar tamanho impacto.
O cheiro de queimado alastrava-se pelo local, bem como o calor por todos os cômodos da casa. Ela ficava de pé, dando alguns passos em minha direção com os punhos cerrados.
— Deixe-me ir embora, seu doente!
Abro espaço para a garota passar, impossibilitado de impedir alguém na situação à qual me encontrava. Sinto como se a escuridão em meu ser tivesse prolongado para a mente, como uma peste contagiosa.
— Não consigo sair. — ouço sua voz trêmula por causa do medo, virando o corpo em sua direção e vendo o corredor em chamas. — Droga!
Ela fecha a porta e, quando vai caminhar até mim, recua assustada. Sei que está assim porque não é nada confortável estar preso com um louco como eu. Porém, posso perder toda a sanidade que possuo, menos minha vontade de vê-la bem. Então, corro até o guarda roupa e o abro, pegando todos os lençóis que encontro. Logo após, começo a amarrar as pontas dos tecidos com nós fortes.
— O que está fazendo? — ela pergunta ousando se aproximar.
— Estou te salvando.
— Não acreditarei nisso! Os psicopatas são ótimos mentirosos.
— E os apaixonados são a voz da sinceridade.
— Você não ama ninguém.
Ignoro suas palavras enquanto termino de criar uma corda improvisada. Como não tinha nenhum apoio no quarto para amarrar – e o comprimento não era suficiente –, decido jogá-la pela janela e a seguro firme.
— Desça.
— Eu não confio no assassino dos meus pais! — ela exclama com lágrimas nos olhos. — Você pode muito bem querer me matar com a queda.
— Eu não fiz nada disso para te machucar, sei que não vai acreditar mas foi para te proteger.
Quando viro o rosto em sua direção, vejo-a surpresa pois havia lágrimas escorrendo por meus olhos expostos mesmo com tantas ataduras em meu rosto. Posso ser visto como um monstro mas o que eu sinto não é algo tão cruel e repugnante assim. Percebo que eu a amo e esse sentimento é verdadeiro.
Mesmo à contragosto, Alice aproximava-se de mim e segurava firme na corda. Ela subia na janela e olhava para baixo um pouco receosa. Então, ouso diminuir nossa distância fitando-a intensamente e prendendo toda a atenção da jovem em mim.
— Não olhe para baixo, olhe apenas para mim.
Ela engole seco, balançando positivamente a cabeça e dou um beijo em sua testa, seguido de um breve selinho em seus lábios macios. Inicialmente, a garota se afasta pronta para lançar seus piores xingamentos mas não o faz. Alice suspira baixo, desviando o olhar e começando a descer. Enquanto isso, mantivemos o nosso contato visual até que a loira estivesse no chão sã e salva. Eu sei que os bombeiros logo chegariam pois posso ver como os vizinhos se aproximavam eufóricos. Já eu, permaneceria aqui que é o meu lugar: entre as chamas.
Solto a corda improvisada de lençóis e ouço a exclamação surpresa da jovem. Então, deito em sua cama totalmente encolhido e fechando os olhos, inspirando profundamente o seu doce aroma.
Eu podia ter jurado que ela corou quando nossos lábios se encontraram, mas isso deve ser outra peça da minha mente.
A minha mãe estava certa sobre o amor, ele precisa vir acompanhado com a dor para ser verdadeiro. Sem dor, não há amor. Muito irônico que dois sentimentos tão distintos andem lado à lado, complementando um ao outro. Pelo menos, uma vez na vida fui capaz de experimentar o amor mesmo ele não sendo correspondido.
Mas quem ama não se importa com essas coisas, não é? Desde que a pessoa amada esteja bem, o mundo inteiro pode estar em chamas.
O fogo que invade o quarto não é capaz de acalentar meu corpo e coração, como a chama em meu íntimo ao ver o sorriso da Alice na primeira vez que nos encontramos. Nossa breve troca de palavras ficará sempre em minhas memórias.
Fecho a porta do armário, respirando fundo e fitando um grupo de atletas conversando entre si. Havia duas líderes de torcida ao lado de um tal de Philipe e ele as abraçava pela cintura. Quando viro o rosto para o lado, vejo uma loira baixinha apertando o caderno e encarando a cena enquanto mordia o lábio inferior.
Porém, sua tristeza some em questão de segundos e ela caminha em direção à mim.
— Prazer, sou Alice Sanders.
— G-Gabriel Gonzalez.
— Uau! Que nome bonito!
Pego-me corado com suas palavras.
— Vem, vou te mostrar o colégio.
Enquanto nós andávamos, percebo os olhares de nojo sobre mim e alguns murmúrios da tal Alice andar com um esquisito como eu. Contudo, ela parecia não se importar e mantinha o sorriso no rosto.
Quando descobrimos que estávamos na mesma sala, ela sorriu animada e sentou ao meu lado sem pensar duas vezes. Eu estava como um bobo corado e sem palavras, admirando os traços de seu rosto angelical e a forma como ela mordia a ponta da caneta enquanto pensava em uma resposta.
Ela realmente havia me tirado da escuridão.
— Obrigado, Alice... — murmuro.
— Hum?
Alice vira o rosto em minha direção mas apenas nego com a cabeça, sorrindo sem jeito e voltando a atenção para a aula.
— Nada.
Um sorriso singelo surge em meus lábios lembrando da única memória verdadeira em que tenho direito de sonhar. E, só então, percebo que nenhuma das minhas ilusões chegam aos pés do simples momento real que tivemos pois eu posso senti-lo, como se vivesse inúmeras vezes aquela cena.
No amor e na dor, eu sempre a amarei.
— Yo te amo, Alice...
E com isso, sou acalentado com as chamas da paixão adormecendo no mais belo sonho.
Fim
Ou não.
Alice Sanders mudou completamente sua vida, morando com os avós maternos no interior dos Estados Unidos. Mesmo sendo uma imensa saudade de seus amigos e tudo que viveu na sua antiga cidade, seu passado estava interligado ao misterioso garoto mexicano. Após sua morte naquele incêndio, ela buscou seguir em frente e tentar apagar da sua mente as lembranças dolorosas que a assombravam.
Apreciando a paisagem através da janela, pôde refletir como todos esses acontecimentos estavam relacionados à fragilidade da mente humana. Inicialmente, Alice desejou invadir a casa em chamas em matá-lo com as próprias mãos; o ódio percorria suas veias. Porém, o tempo encarregou-se de mostrar que a vingança não era o caminho certo. Talvez ela tivesse perdoado aquela alma perturbada ou talvez decidiu não lembrar dos mortos, afinal não seria capaz de machucar alguém que já se foi.
Hoje era o seu primeiro dia de aula, sentia o coração pulsar acelerado por causa do nervosismo. A loira descia o ônibus amarelo e erguia o olhar para os alunos que adentravam o local, eles conversavam animados sobre a volta às aulas. Alice apoiava a mão no peito, as pernas bambas e a respiração pesada. O suor escorria pelo canto de sua testa e o secava com as costas da mão.
A ansiedade era sua pior doença, já passou mal em público algumas vezes e desmaiou.
Talvez dessa vez fosse diferente.
Ou talvez...
Ao dar o primeiro passo, todo seu corpo travou e a visão periférica escureceu. Lentamente, o ambiente ao seu redor ficava escuro enquanto a garota pendia o corpo para trás. Ela cairia no chão se não fosse por um braço todo enfaixado que a segurou pela cintura, puxando-a sobre seu corpo que usava o mesmo uniforme da loira.
— Calma. Eu estou aqui, mi amor. Sempre estarei, no amor e na dor.
"O gênio, o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma anormalidade; representam, de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio."
— Fernando Pessoa
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro