Conto Único • Elise
Conto feito para o desafio “Virelinha” da Sessão Pipoca, incentivado pela OceanDuchess.
[Final alternativo]
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O sol subia de uma manhã ensolarada para um fim de tarde arrastado e preguiçoso. Um completo e verdadeiro laranja a tingir o céu como uma parede limpa, sem nuvens. Ali, beirando as águas de um rio tranquilo e acompanhada pelo doce som do vento a dançar entre as árvores da floresta silenciosa, uma figura contemplava a própria imagem, infundida em sua beleza tal qual Narciso atraído pelo egocentrismo que habitava dentro de si.
Até ser eternamente petrificado.
— Elise – uma voz oriunda de algures atrás do pequeno ser pronunciou-se, mansa e calma como a voz de uma sereia em águas calmas. A nomeada seguiu a direção de onde seu nome havia sido proclamado, em submissão e espanto.
Aquele pequeno elfo feminino nunca havia ouvido uma voz ali antes.
— Sim? – esperançosa, amedrontada, todos os sentimentos desconhecidos correndo por sua pele saudável, brilhante e mágica, enquanto fitava as vestes esvoaçantes de uma mulher etérea.
Havia um cheiro adocicado saindo de um caldeirão discreto atrás da silhueta negra, enchendo o ar de uma névoa espessa que despertava assombro, como um aviso impregnado em forma de fumaça densa.
— Elise – novamente, a presença da mulher captou-lhe a atenção, dessa vez sem a indicação de uma pergunta, mas como um chamado de uma mãe para sua filha – não acredite no que seus olhos veem.
— O que...
— Olhe ao seu redor: o que sente?
A mulher gesticulou um braço em floreio pelo ambiente que as cercava. Desde as árvores silenciosas da floresta, sendo invadidas pelo vento; as águas tranquilas do rio onde Elise permanecia ajoelhada; a tarde eterna que parecia nunca retroceder ou adiantar-se. Tudo parecia estacionado no tempo. Até mesmo a grama embaixo de si parecia descansar num sono temporal.
Como ela se sentia, havia sido a pergunta.
Paz. Com certeza um estado de paz.
— Paz.
— Não, Elise. Seja perspicaz. O que seu corpo lhe diz? Quais sensações te envolvem.
Agora que havia lhe sido pedido, Elise analisava, seus olhos fechados ao olhar para dentro de si; a princípio, nada mais que o sentimento de paz lhe inundava. Uma paz profunda, eterna, e calma. Ela alterou para os seus sentidos: o que ela ouvia?
Nada. Um profundo silêncio, uma tranquilidade tão exagerada que lhe fazia questionar se algo não estava errado.
Então o cheiro. Aquele cheiro adocicado. Doce demais. Mas com um amargor no final que transicionava por seus pulmões como um feitiço de sono.
Seu corpo parecia relaxado. Mas se ela parasse e analisasse um pouco mais perceberia: os ombros tensos, as mãos inquietas e.... Calafrios. Definitivamente calafrios. Dos perturbadores.
Agora que parava para pensar: como havia chegado ali? O que era aquele lugar? Abriu os olhos para ver o seu reflexo na água: uma pele negra, transposta por uma áurea cinza brilhante e... Chifres. Como os de um cervo, dois chifres, elegantes e polidos acima de sua cabeça. Uma parte de si. Seus olhos redondos com a pupila dilatada sem um motivo específico, os lábios fartos ofegantes sem uma razão em particular. Por que estava sentindo o coração acelerar como se estivesse em um constate perigo oculto? Então outras perguntas importantes: quem era ela? Não sabia nada além da certeza de ser um elfo. Sua pele gritava-lhe "elfo, eu sou um elfo". Mas era só o que sabia. Até mesmo seu nome era desconhecido, e só o soubera porque foi convocada por aquela bruxa elegante, vinda do nada, com vestes mais negras que a noite. Poderia sequer confiar nela?
— Eu... Sinto solidão. Medo. Tensão.
Um baforido de contentamento saiu da presença feminina, agora mais próxima da elfa. Elise notou uma transparência que não estava presente antes, conseguindo enxergar o ambiente através dela. Ela estava... Desaparecendo?
— Quem... É você?
— Quem você sente que sou?
Os olhos da mulher agora poderiam ser vistos: duas safiras brilhantes de um vermelho sangue caíam dentro de seus dois oceanos castanhos, esperando pacientemente numa soberania que acompanhava sua postura ereta e tempestuosa. Se houvesse alguém para ser temido ali, era aquela mulher: tudo nela gritava trevas. Mas por mais que procurasse dentro de si, por mais que fechasse os olhos e tentasse sentir o medo, não surgia nada. Na verdade era bem o contrário: se sentia segura pela presença da estranha. Confortável, como alguém se sentiria com um irmão, um pai, amigos. Mas não, definitivamente, aquela mulher não era nenhuma destas, poderia sentir. Seus chifres captavam uma vibração poderosa vinda daquela figura a seu lado, um sentimento de proteção, vigília e... Compaixão?
— Você é algum tipo de deusa? – Elise não pôde resistir a pergunta que pairava em seus lábios.
— Você deve saber isto, Elise. Você sabe quem sou.
O sentimento de proteção que Elise sentia estava pouco a pouco desvanecendo, conforme a mulher desaparecia mais e mais, totalmente translúcida. Agora, ela podia enxergar o ambiente através de seu corpo negro, que alcançava a cor perto do cinza claro.
Ela sumiria a qualquer instante!
— Não vá! – a elfa implorou, sua voz trêmula com o sentimento de proteção se liquefazendo. Agora se sentia fria, ameaçada, seu corpo completamente vulnerável.
Percebia, também, a tarde finalmente começar a dar sinais de avanço, escurecendo num azul fosco que não lhe fazia bem; a floresta silenciosa agora entoava um cântico antigo duma língua estranha que se elevava num coro de vozes sombrias. Até mesmo o vento havia deixado o lugar e a grama enroscava-se em sua pele como trancas de ferro. A água, antes límpida e azul agora era uma transição de laranja-vermelho sangue.
O que estava acontecendo?
— Elise, você precisa ir – a feiticeira, agora totalmente transparente, era apenas um eco da mulher de antes. Sua voz era urgente, como se uma ameaça estupenda estivesse pronta para aparecer assim que ela deixasse o lugar.
Elise sentiu-se abraçada por uma grande escuridão densa que impelia seu corpo contra o chão. A grama subia por seu corpo, enroscando-se como uma serpente poderosa, trancando-a ali.
— Liberte-nos. Ela virá da água.
Foram as últimas palavras da feiticeira antes de desaparecer, deixando-a para trás num vazio profundo e depressivo.
Elise lutou contra a grama o mais forte que pôde, seus braços trêmulos sendo tingidos de vermelho pela força que exercia contra aquele jardim ranhento.
Suas unhas limpas arrastavam-se pelo chão lamacento, quase arrancando seus dedos. Conseguiu soltar primeiramente os braços, então uma das pernas. Logo, a última perna estava livre e a elfa preparou-se para correr.
Conseguiu identificar uma minúscula porta dourada numa passagem estreita entre árvores sibilantes. Mas tinha de correr contra o tempo, pois a névoa mortífera atravessava todo ponto de luz que ainda restava no ambiente.
Arremessou-se pelo vento, ouvindo uma risada alarmante atrás de si arrastar-se até seus ouvidos lentamente. Lutava contra arbustos, ganhava arranhões, e até foi derrubada pelas árvores envenenadas de névoa.
Mas não poderia desistir já que a porta estava apenas a alguns metros.
A risada, antes baixa, agora tornava-se estridente ao ponto de fazer seus ouvidos quererem sangrar.
— Eliseee... — cantarolava uma entidade diabólica com duas vozes atrás de si — Oh, minha Elise, quantas vezes tenho de te dizer que não importa correr. Porque a Virela sempre vai te alcançar! — a última frase foi proferida em um furor sobrenatural.
“Não, não... NÃO!”
Elise gritou pensativamente para o pequeno ponto dourado à sua frente, ameaçando desaparecer. A névoa maldita avançava já para o meio da porta!
Mas talvez se ela pulasse...
A pequena elfa jogou-se tentativamente contra a maçaneta brilhante, seus finos dedos negros enroscando-se ali. As árvores envolviam galhos afiados em seu corpo, mas ela precisava lutar. Pôs-se ajoelhada com muita dificuldade tingindo os joelhos de marrom, enquanto desdobrava bravamente seu corpo para trás na tarefa de abrir a minúscula porta. A névoa, porém, parecia entender sua tentativa de escape, empenhando-se em direcionar espinhos para espetá-la e aterrar a porta de um lodo nojento.
Elise urrou de dor quando sentiu sua pele morena ser acometida de pequenos rasgos sangrentos — quase como uma dança dolorosa de alfinetes em si, mas manteve-se focada na missão. Era aquele momento ou nunca, gritou em sua mente numa voz torturada, ignorando os invasores em sua pele cavando fundo, famintos de sua dor. Mas precisava puxar aquela porta, puxar com toda a força em sua alma, o que quer que houvesse do outro lado não seria pior do que ficar ali.
“Elfa, você é uma elfa. Use sua natureza!”, conseguiu ouvir uma voz dentro de si, de repente.
Em uma última medida desesperada a elfa tentou convocar uma magia profunda dentro de si, a mesma que sentiu com a deusa feiticeira antes, esperando — implorando! — que desse certo. Pressionou seus chifres lustrosos contra a névoa e obteve uma resposta imediata: um chiar de relva a fez perceber que parte da névoa retrocedeu. Tamanha fora a sua surpresa que repetiu diversas vezes aquela investida, conseguindo finalmente entreabrir uma brecha o suficiente para atravessar.
E meteu-se dentro.
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Raios dourados de luz lhe saudaram do outro lado. Era o mesmo ambiente do primeiro, exceto que ali havia calor, agitação e vários animais passeando pela grama alta. Ali, as árvores eram um verde intenso e brilho mágico, bem como veria um eterno tapete esverdeado cobrir toda a superfície de vales, bosques e lagos onde quer que seus olhos alcançassem. Uma natureza cheia de vida. Elise sentiu a força retornar de volta a seus pulmões ofegantes, a tempo de ouvir batidas atrás de si.
PA, PA, PA!
Num salto, observou a minúscula porta tremer com baques. Percebeu restos de lodo nas extremidades da porta minúscula e tremeu, lembrando-se dos cortes fundos espalhados por seu corpo. Tudo ardia, mas também percebera que a energia vibrante daquele lado curava suas feridas lentamente, algumas já fechadas.
No entanto, quanto mais perto da porta as feridas estavam, mais abriam.
“Aquela coisa ainda está do outro lado, posso sentir.”
Acionou seus sentidos para além da porta e constatou que a mulher demoníaca ainda a enviava vibrações de fúria e negritude. Mas atentou-se para uma segunda voz, mais fraca, que parecia lhe chamar.
“Elise! Elise, por que me deixou?”
Não era a voz dupla da ameaçadora presença demoníaca de antes. Era a mesma voz de sereia da primeira mulher que lhe apareceu.
Ela poderia estar ainda presa lá dentro.
Elise sentiu uma estranha responsabilidade de tirar a feiticeira, sua amiga, de lá. Não poderia ser egoísta quando foram seus conselhos que a salvaram...
Olhou em volta com uma tristeza súbita, deixando seus olhos serem banhados pela natureza vibrante cheia de vida. Queria ficar — oh céus, como queria.
Mas com a feiticeira gentil do outro lado nas mãos daquele demônio, não poderia.
— Eu vou libertá-la, minha amiga — sussurrou para a porta antes de abri-la.
E com toda a coragem que não tinha, jogou-se dentro da escuridão do outro lado novamente, sendo recebida pela alta risada cruel dupla de Virela.
E a porta dourada, enfim, fechou-se.
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Conto escrito pela Lah 🌻
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