Viajante
Ser um Viajante não é fácil. Ser expulso do próprio corpo por uma mente estranha, que o toma; condenado a para sempre viajar de corpo em corpo, envelhecendo e morrendo sempre, sendo expulso muitas vezes, condenado outras almas ao mesmo destino. Sentir as memórias de todas a vidas que se viveu, por vezes por séculos, por vezes por milénios, e sentindo todas elas tornando-se numa só, um borrão desbotado em lugar de uma vida infinita. Temendo tanto a vida como a morte, preservando a sua própria existência por instinto, quando se já não a quer.
É uma tristeza infinita, prolongada por demais, esta minha existência. Podia desfazer-me no ar, como partículas de pó, mas algo em mim não deixa.
Perdi a conta a todas as vidas que vivi- ou melhor, roubei. Perdi a minha primeira, aquela que me foi roubada na inocência da infância; o meu nome, a minha família, quem fui e quem podia ter sido. Já nada disso importa, quase dois milénios depois, mas sempre me hão de perturbar as memórias antigas, ou melhor, a falta delas.
Esta última vida acabou em desgraça, cedo demais. O corpo era ainda jovem, com tanto tempo e esperança pela frente. Infelizmente, o rapaz não foi o corpo mais jovem que perdi para a Morte, mas nem uma década era mais velho que esse.
Tudo acaba. Todos os corpos se vão, todas as vidas acabam, tudo se dissipa. Nem sempre da melhor forma.
Flutuo no éter agora. O tecido da própria existência, que tudo liga e deixa existir. Aqui, sem corpo, sou frágil, mente e espírito aberto aos elementos. Mesmo com todo o poder que acumulei pelos séculos, posso sentir as pontas do meu se a tornarem-se pó e a flutuarem para longe, para muito muito longe. Quero deixar-me ir, mas algo em mim não deixa. Sei que devo arranjar um novo hospedeiro.
Estou sobre uma grande cidade, tão viva e brilhante que esconde o brilho da lua cheia sobre ela. Nunca deixa de ser belo ver a mudança que o tempo provoca nos espaços que uma vez conheci bem. Os novos prédios, as novas luzes, tudo. Ainda há um século, nem eletrecidade havia, e um pouco mais atrás, nem pessoas.
Um belíssimo jovem chama-me a atenção. Rodeio-o, sigo-o, aproveito uma distração qualquer naqueles com que ele está. Ataco.
É incrível a diferença que faz ter sobre si um corpo.
O instinto de sobrevivência nunca é mais forte do que quando um hóspede luta de volta. É uma batalha injusta, sempre. Poucos vivem na sua mente, poucos a conhecem sequer. Por mais força que alguém tenha, não estando preparado, há pouco que possa fazer.
Não o expulso. Eu posso ser um monstro, posso roubar vidas e mentes, mas nunca condenaria nem o meu pior inimigo a uma existência como a minha. Não; ele ficará preso para sempre a este corpo, como devia ser.
Os pensamentos confusos chegam-me. Não há forma de alguém saber o que se está a passar. Nunca há. No momento em que ele tenta atacar de volta, é tarde demais.
Ele está preso. Memórias chegam-me. Os seus pais, família, escola; tudo o que alguma vez viu, ouviu, pensou, sentiu; eu sei isso tudo, sei tudo isso de uma forma que ele mesmo nunca poderia entender.
A última vida que vivi junta-se ao borrão já desbotado de velhas memórias para as quais não tenho uso.
Facilmente retomo o sorriso característico que os colegas sempre elogiam, como se nada se tivesse passado. Aliás, na verdade, mesmo nada se passou. Ninguém viu nada, ninguém notou nada.
E assim começa uma nova vida.
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