Capítulo 1
Odeio o barulho do despertador. O toque fino, que deveria ser uma melodia harmônica, qualquer dia vai estourar meus miolos. E eu vou simplesmente morrer. Pior ainda é ter que acordar antes do sol raiar.
O pior é que estou fazendo isso por livre e espontânea vontade. Se sou uma atleta, é porque escolhi ser. Está certo que, se minha mãe, saudosa dona Cila, não tivesse me inscrito nas aulas de Muay Thai quando eu tinha 7 anos, tudo seria diferente hoje em dia. Contudo, eu era uma garotinha extremamente hiperativa e adorava socar coisas. Ela apenas uniu o útil ao agradável. E cá estou eu, acordando para mais um treino pesado.
Isso mesmo, mais um, porque fiquei até às 22 horas treinando ontem. Isso que dá ter um técnico super exigente e ser uma das promessas do esporte, apesar de ter chegado aos 24 anos recentemente. Resumidamente, isso tudo é porque no mês que vem enfrentarei minha primeira adversária a nível internacional, então o Cunha está pegando muito mais pesado do que o de costume.
A quem estou querendo enganar? Aquele desgraçado, que ele não me ouça, está arrancando meu couro - e gostando muito disso. É que ele é um homem muito azedo para a pouca idade que tem. Quando eu estiver na casa dos 40, que seja mais dócil com as pessoas ao meu redor, e não um carrasco, daqueles que fazem com que uma bela jovem de 24 anos sinta vontade de me dar um chute na bunda todos os dias pela manhã.
Mas é bom me antecipar o quanto antes, porque sei que se me atrasar, Cunha vai me punir e, sinceramente, meu humor não é o melhor neste período da manhã. Por isso me adiantei, escovei os dentes, penteei o cabelo e saí correndo.
Não, não troquei de roupa. Isso porque já dormi com o uniforme, só para poder degustar uns minutinhos a mais do meu precioso sono. Está certo que sou uma atleta de alta performance, mas todos têm o seu limite, e se não tiver um tempo de descanso para que meus músculos relaxem, tudo isso será em vão.
Desço correndo pela escadaria do pequeno prédio em que moro e, em poucos minutos, já estou andando pela rua. Para não me distrair com os barulhos ao redor, sempre faço questão de colocar meu fone de ouvido no volume máximo. Também acho uma forma ótima de me concentrar durante o caminho.
Antes de virar a esquina e finalmente chegar à Coliseu Arena, claro que parei na costumeira lanchonete para tomar o meu desjejum, senão não seria capaz de chegar ao fim daquele dia. Café preto e pão de sal. O de sempre.
A sorte é que a fila não estava longa, então a atendente mais querida do mundo, a adorável Mila, logo adiantou o meu lanche. Este foi o único momento em que pausei minha música. Frequento esse lugar há tanto tempo e Mila já me conhece. Ela sabe que luto contra o tempo para permanecer viva, de pé, e em forma.
- Aqui, minha querida. - Ela entrega o lanche, do qual já levo à boca sem nenhum tipo de cerimônia. - Cuidado para não engasgar, Julia. - Ela dá uma risadinha e eu sorrio, mesmo de boca cheia, sem me preocupar com os bons modos.
Minha fama de ogra é quase universal aqui nessa lanchonete. Mila está mais do que acostumada, então não me importo com a boca cheia.
- Se não comer com pressa, não consigo lanchar. Se não lanchar, ao invés de ir à minha luta, é capaz de ir ao meu enterro, Mila. - Dou uma risada de minha própria piada mórbida e Mila faz careta.
- Vire essa boca para lá, garota. - Ela fala e eu pago pelo lanche. - Me avise quando estiver chegando. No dia que conquistar o campeonato mundial, quero contar a todos que te conheço. - Mila sorri carinhosamente, aquecendo meu coração.
Fico muito feliz quando pessoas que não tenho muita intimidade confiam em meu potencial.
- Pode deixar. Agora tenho que ir, caso contrário, não será o cansaço que vai me matar, e sim o meu treinador. - Despeço-me e dou de costas, cruzando o caminho justamente de Sebastian Torres.
Sebastian Torres é o melhor atleta de Muay Thai do Brasil e atual campeão mundial de sua categoria, trazendo orgulho para o nosso país e à nossa academia. Sim, é isso mesmo, divido o mesmo espaço de luta que o melhor dos melhores. Mas estou acostumada com isso, pois também estudamos o ensino médio juntos. A única coisa que nunca vou conseguir me acostumar é com esse amor platônico ridículo que insiste em permanecer dentro do meu peito, apesar do tempo.
É inevitável não o encarar, principalmente quando seus músculos torneados estão à mostra. Em contrapartida, sou completamente ignorada, como sempre. Ele passa reto. Mas sem problemas, o meu foco nunca foi esse.
Meu maior compromisso é com o Muay Thai. Desde sempre.
Torres é um gostoso com carinha de bad boy molha calcinhas? Sim. Mas não será essa paixãozinha escrota e não correspondida que me levará ao primeiro lugar do pódio.
Sem contar que pensar nisso apenas me deixa frustrada, pois Sebastian, apesar de ser um gostoso, é e sempre foi um babaca. Não sei por qual motivo, mas ele faz questão, desde a adolescência, de me ignorar. Nunca lhe fiz nada. Mas ele sempre evitou olhar no meu rosto. Talvez simplesmente não vá com a minha cara, não sei. Ou talvez desafie seu ego, afinal, ver mulheres se destacando em um esporte que é majoritariamente comandado por homens pode incomodar. São muitas questões que permeiam minha mente, porém que jamais serão respondidas, pois nunca o perguntarei.
Respiro fundo, dou uma golada no meu café e ligo novamente a música, ignorando meus devaneios. Reviro os olhos por conta dos meus sonhos adolescentes frustrados e parto rapidamente para a Coliseu Arena enquanto termino de comer meu pão.
Assim que entro na academia, dou de cara com Cunha, que está emburrado e de braços cruzados. Seus olhos poderiam me queimar de raiva, e logo chego à conclusão de que estou atrasada, por mais que o relógio pendurado na parede ainda marque 7 horas.
- Pensei que não fosse vir, senhorita Almeida. - Ele fala com desdém e abre espaço para que eu entre. Sei que aguarda algum tipo de resposta, mas entro no tatami em silêncio, ansiosa pelo fim do esporro.
Coloco a bolsa e meu fone no armário e começo a enrolar minhas mãos com a bandagem. Cunha segue me encarando irritado, como se eu tivesse cometido um crime.
O encaro de volta e percebo seu maxilar contraído enquanto aguardava que eu terminasse de proteger as mãos.
Por fim, ele volta a ralhar enquanto aqueço meu corpo.
- Tem noção de que se atrasou exatamente 10 minutos? - Esbraveja e eu viro de costas para poder revirar os olhos. - Às vezes me pergunto o motivo de me empenhar tanto para te tornar a melhor do mundo. Você mesma não se importa ou se dedica o suficiente para isso! - Reclama mais alto do que deveria, chamando a atenção de outros atletas que estavam chegando à academia.
Sinto meu coração acelerar desenfreadamente por conta da adrenalina que o ódio estava proporcionando. Além de ser uma pessoa hiperativa, meu temperamento e língua afiada são problemas que, se não fossem suados durante os treinos, muito provavelmente já teriam me levado presa.
Seguiria alongando meu corpo silenciosamente e engoliria em seco tudo isso, mas falar que não sou empenhada é injusto demais. Então paro o que estou fazendo e viro na direção de Cunha.
- É sério? - Questiono grosseiramente. - Eu treino freneticamente todos os dias, de sete horas da manhã às dez da noite. Às vezes, meus músculos parecem gelatina quando deito na droga da minha cama, mas mesmo assim estou aqui na manhã seguinte. Aí você quer falar que eu não me empenho o suficiente para me tornar a melhor do mundo porque me atrasei por dez minutos? - Rio ironicamente e percebo suas narinas dilatarem. Cunha odeia ser peitado, todos da academia sabem disso. - Jogue suas frustrações em outro. Preferia o quê? Uma atleta de alta performance caindo de fraqueza ou a mesma atrasada por alguns minutos?
Ficamos nos encarando em silêncio durante um longo minuto, que mais pareciam horas. A veia na testa de Cunha poderia estourar a qualquer instante, fato que estava me intimidando, mas resolvi ir até o final nisso, porque tenho consciência de que estou certa nessa situação.
Quando percebo que não terei qualquer tipo de resposta, concluo meu monólogo com um sorriso vitorioso.
- Exatamente o que eu pensei. Uma atleta atrasada. - Falo e dou de costas, voltando a me alongar.
Escuto Cunha respirar profundamente atrás de mim, tomado pelo mais profundo ódio.
- Quer saber, senhorita Almeida? - Questiona de forma debochada. - Já que é tão empenhada, treine sozinha. Foda-se, eu não vou gastar mais energia contigo. Arrume outro alguém, estou fora. Quer ser a melhor? - Ele se aproxima, ainda com os braços cruzados e bochechas vermelhas. - Faça essa merda sozinha.
Cunha dá de costas e, pelo mesmo lugar que entrei há alguns minutos, ele sai. Sento-me ao chão e volto a alongar minhas pernas, mesmo que perdida em pensamentos.
Fico atônita com a situação, sentindo um leve embrulho no estômago. Mesmo treinando comigo há anos, esse desgraçado simplesmente largou a minha mão há um mês da luta da minha vida, só porque sentiu seu ego ferido. Inacreditável.
Meus olhos começam a arder, sinto uma vontade horrorosa de chorar. Já estava cogitando sair do tatami e desistir do treino do dia, até mesmo para colocar a cabeça no lugar e decidir meus próximos passos, quando ouço alguns passos em minha direção.
Levanto o olhar e não consigo disfarçar a surpresa quando o homem mais gostoso do mundo para à minha frente e agacha, trocando, pela primeira vez desde que nos conhecemos, contato visual comigo.
- Cunha sempre foi o treinador mais babaca da Coliseu, não me admira ter agido assim porque você exigiu condições humanas na sua rotina de luta. - Fala como se tivéssemos intimidade e meu coração dispara.
- É, mas não tenho a quem recorrer. - Levanto e ajeito meu short de treino, evitando encará-lo. - Se me der licença, vou atrás do babaca igual a uma cadelinha com o rabo entre as pernas implorando perdão, para que ele volte a me treinar.
Sebastian Torres levanta e dá um passo em minha direção, ficando muito mais próximo do que já ficou em toda o tempo em que nos conhecemos. Arregalo os olhos sutilmente e arqueio uma das sobrancelhas. Ele percebe meu nervosismo e sorri.
- Não, você não vai. - Responde em tom de ordem.
- Ham? Está louco, querido? - Começo a ficar irritada com sua petulância. De fato, a fama é real: gostoso, mas babaca.
Quem Sebastian Torres pensa que é para falar comigo assim? Está certo que o considero minha paixão platônica número, mas ele não sabe disso. Então nada justifica. Ninguém me dá ordens.
- Não, apenas não se humilhe para que aquele babaca tenha o ego massageado. A partir de hoje, treinaremos juntos. Eu serei o seu treinador.
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