Revelações
Arfou, precisava continuar. Estava quase de pé.
Se agarrou ao balcão que estabilizava os computadores e fez o máximo de força que podia. Esticou as pernas, se equilibrando debilmente. Segurou-se na parede, ofegante. Sentia dor no corpo todo e a causa dessas dores certamente pioraria toda essa situação.
Deu um passo para frente, ainda se apoiando nas paredes. Gemeu com a pontada na coxa. Respirou fundo, ficando séria. Ela já tinha passado por coisas piores nessa estação espacial, não seria agora que se renderia. No capacete, centenas de triângulos vermelhos indicavam comprometimentos nas funções do traje. A análise de danos, porém, indicou que não havia vazamento de oxigênio. Alice tinha tido muita sorte. De novo. Talvez o universo realmente estivesse colaborando.
Começou a caminhar o mais rápido que podia. Lance estava descontrolado pela estação e talvez Alice tivesse algo que poderia ajudá-lo a se acalmar. Antes de morrer, Mira tinha deixado uma informação muito importante no chip com a cópia parcial dos arquivos confidenciais. Era uma maneira de separar componentes específicos da alfaluriase com calmante que poderia diminuir a agressividade e instabilidade de um mutante, pelo menos em teoria.
Alice já tinha preparado o medicamento, mas temia sobre o momento em que precisaria usá-lo em Lance. Sempre havia a chance de a teoria não condizer com a realidade, mas se a cientista teve sorte suficiente até agora para se manter viva, havia a chance de que tudo desse certo. O vidrinho com a agulha permanecia escondido em seu bolso, o líquido azulado se chocando contra as paredes do recipiente a cada movimento de Alice.
Após uma eternidade, Alice finalmente achou o mutante depois do Separador Modular quebrado da Ala Noroeste. Lance estava parado e observava a parede de segurança transparente com melancolia. Continuava usando o traje danificado, mas não precisava dele. Ele segurava algo em uma de suas mãos. A outra segurava um pedaço de parede pontudo, uma arma de niotita. A mulher arregalou os olhos, se dando conta das pretensões de Lance.
— Lance, não! - gritou ela, porém o ar faltou e sua voz saiu abafada.
O mutante não olhou para ela. Apenas fez uma expressão séria e abriu a mão, revelando um pequeno potinho de vidro com um líquido transparente. Alice logo reconheceu o que era e fez uma expressão de confusão e surpresa.
— Eu sinto muito por ter escondido isso. - disse Lance, grave. - Eu não sabia o que fazer.
Ele se virou para Alice com um olhar triste.
— Eu... Encontrei isso nas minhas coisas depois de uma... "Pequena crise". Eu não me lembrava de quando poderia ter pego a última dose, mas acho que você pode entender o que isso significa.
— Ah, Lance... - Alice suspirou.
— Você já sabia, não é? - Alice desviou o olhar, pesarosa. - É claro que sabia. Você estava analisando tudo. Não ia passar despercebido o fato de que eu estava sabotando nossos planos o tempo todo. - ele voltou a olhar para o espaço sideral através da parede transparente. - E Mira acabou morrendo por minha culpa. - ele encarou Alice nos olhos - Eu posso não voltar mais ao controle em breve. A mutação... Está progredindo rápido demais, não é?
Alice franziu o cenho.
— Sim... - ela admitiu. - Se aplicasse a cura agora, suas células estariam com erros genéticos demais e o câncer iria matar você em horas.
Lance olhou para o caco de parede em sua mão.
— Como eu imaginava. Não tenho salvação...
— Não, Lance! Vamos... Vamos achar um jeito! Na Terra!
Lance soltou uma risadinha de escárnio.
— Terra... Eu não vou voltar, Alice. Não posso arriscar ser um agente contaminante e levar esse problema pra lá! - ele olhou o vazio novamente. - Não tente me impedir.
E antes que Alice pudesse evitar, Lance se golpeou com a arma. Porém, antes que ele mesmo pudesse fazer qualquer ferimento letal, a tenebris em seu corpo paralisou seu braço. Uma silhueta humanoide surgiu da escuridão.
— Receio que não possa permitir que você faça isso, Lance. Ainda pode ser útil para nós.
— Ryan? - questionou Alice, desconfiada. - O quê faz aqui? E... Sem um traje?!
O homem riu e outra silhueta surgiu atrás dele, dessa vez o ser. Os olhos de Alice se arregalaram, assustados, sem compreender ao certo o que estava acontecendo.
— Oh, não, é o monstro, Alice. - disse "Ryan", de maneira debochada enquanto o monstro atrás dele derretia e virava apenas uma poça aos seus pés. - A verdade é que a mente de Ryan é minha agora. Você devia ter cuidado melhor de seus companheiros, Alice Primrose. Humanos são muito frágeis se ficarem andando sozinhos por aí. - Alice arfou, peças se encaixando em sua mente. - Agora está ficando sem aliados e não tem mais para onde correr.
Lance estava perplexo. Ryan sorriu para ele, achando graça.
— Ah, você achou que você que era o... - riu com desdém. - Que ingenuidade. - Ryan se aproximou mais e sussurrou. - Não contem para ninguém, mas... Eu sou o Mediador.
E então ele sorriu ainda mais, apreciando a reação de Lance e de Alice. A mulher começou a recuar lentamente, imaginando como isso terminaria.
— Bem, Alice. - Ryan estalou os dedos. - Acho que nosso jogo de gato e rato acaba aqui e agora. A Terra já está próxima e Ryan fez um bom trabalho com os reparos. Todo esse jogo foi bem interessante, mas... Tudo tem um fim, não é?
Lance começou a tremer enquanto a tenebris começava a cobrir seu rosto. Com uma expressão de sofrimento ele ainda conseguiu sussurrar algo enquanto colocava discretamente um objeto em meio ao entulho de modo que apenas a mulher conseguiria ver.
— Alice... Corre. - foram suas últimas palavras.
Sem esperar segundo aviso, a mulher deu as costas e começou a fugir. Ryan revirou os olhos.
— Ah, ela não entende mesmo. Não tem mais para onde fugir! - gritou ele, começando a caminhar lentamente na direção dela. - Ah, esquece. Vá pegá-la.
Com um rugido, Lance saiu completamente ensandecido atrás de Alice.
A cientista corria enquanto pensava em planos. Ela tinha acabado de ser ferida gravemente, então sua velocidade já estaria reduzida. Além disso, Lance tinha habilidades sobre-humanas e alcançaria Alice em segundos. Ela não teria a menor chance em um confronto. Sua única esperança seria o calmante, mas, se não funcionasse, teria que apelar para o dispositivo de eletroparalisia. Era o único jeito.
Os pelos de sua nuca se arrepiaram e imediatamente Alice se abaixou a tempo de desviar de um ataque de Lance, que aterrissou na frente dela pesadamente. O mutante estava fora de si, era possível notar. Seus olhos agora eram vermelhos e brilhantes e seus dentes eram mais afiados. Suas garras cortavam o chão metálico e Alice com certeza não queria saber o que fariam com ela. Quando ele pulou novamente em sua direção, ela rapidamente ergueu a seringa do calmante.
— A-ah-ah. - interrompeu Ryan. - Nada de truques.
E no mesmo instante Lance deu uma forte patada na mão de Alice, fazendo o remédio se soltar da seringa e cair longe. O vidro se estilhaçou e o líquido azulado se espalhou pelo chão. As garras de Lance danificaram a luva e logo o traje alertou sobre uma fissura que surgiu ali. Alice apertou a mão, raivosa.
— Droga... - murmurou.
— Tendo problemas? Sabe, você não tem a mínima chance. Está em minoria.
Alice ergueu seu pedaço de niotita e encarou Ryan com raiva.
— Sobrevivi muito bem sozinha por um bom tempo. Sei me virar. - provocou ela enquanto calculava quantos movimentos teria que fazer até chegar em Ryan, quem claramente estava controlando Lance.
Ele deu uma risadinha.
— E você acha que foi mérito seu? Se não notou, NÓS deixamos você viver. Foi um pequeno infortúnio você ter acordado subitamente e recobrado seu controle, mas agora já era. - Ryan estendeu os braços.
Alice olhou para Lance com pena, tentando pensar em jeitos de desviar dele sem ter que matá-lo. Ryan riu de novo, ainda mais irritante.
— Você pretende salvá-lo? Que ingênua! Lance, mostre a ela como você é agora.
Lance rosnou e Alice ficou pronta para desviar de novo quando ele pulou novamente em cima dela. Porém sua perna machucada não aguentou o peso e a cientista caiu no chão. Ainda conseguiu pegar o dispositivo cilíndrico em seu bolso e o colocou na boca de Lance, impedindo-o de mordê-la. Ele rosnou ainda mais, amassando o cilindro metálico. O objeto começou a soltar faíscas e seria o momento ideal para Alice apertar o botão e dar um choque letal em Lance... Mas ela hesitou.
Seus braços tremiam tentando manter a cabeça do mutante afastada, mas ele era muito forte. Ela rangeu os dentes enquanto a tenebris começou a subir por suas mãos, ácida. Ryan suspirou.
— Isso está demorando demais. Se você não vai acabar com ele... - ele estalou os dedos e Lance recuou rangendo os dentes.
Alice continuou no chão, ofegante. Seus ferimentos doíam mais do que nunca. Mesmo assim ela se levantou.
— Você é mesmo muito insistente... - disse ele, mas foi interrompido pela ação súbita de Alice, que saiu em disparada com o caco de niotita, pronta para ferí-lo.
Ela sabia que um único corte com esse metal faria a tenebris se paralisar e talvez Ryan saísse do controle do monstro. Porém ela percebeu tarde demais o vulto mais rápido ao seu lado. O metal atravessou a tenebris, soltando o chiado de água caindo em uma superfície quente.
Alice parou, perplexa. Lance tinha se jogado na frente e levado o corte. Sua tenebris estava incandescente como lava e se esfarelava lentamente, mostrando seu corpo humano. Ele fitou os olhos dela com um olhar tristonho e ergueu seu braço, agarrando a niotita. Um pequeno sussurro saiu de sua boca, quase inaudível.
Desculpe...
E então ele cravou o caco em seu peito com força. Uma lágrima saiu dos olhos de Alice. O corpo dele caiu no chão, a tenebris dele endurecendo e se desfazendo como carvão sendo queimado. O corpo inteiro começou a virar pó. No fim, não restava mais nada dele além de seus ossos.
Alice continuou parada, perplexa. Seu cérebro demorou para compreender o que tinha acontecido.
Lance tinha morrido.
Ela se virou para Ryan com fúria no olhar. Correu como se não sentisse nada, agora nada importava além de sua sobrevivência. O ser se ergueu novamente por trás do homem e tentou derrubar Alice, mas ela simplesmente desviou, focada em apenas uma coisa: a pilha de entulho. Lá, pegou algo afiado e correu em direção ao ser, o fogo de sua raiva borbulhando. O monstro tentou atacá-la novamente, mas ela não desviou dessa vez. Ergueu o caco, cortando o monstro ao meio, e saltou através do buraco que fez em direção a Ryan.
Os olhos dela tinham um brilho de loucura. Sua mente estava em turbilhão.
Ela estava cansada. Cansada das mortes injustas. Cansada da tenebris. Cansada dessa situação. Estava cansada disso tudo. Ela precisava salvar ao menos uma pessoa! Enquanto seu corpo caía, o brilho da ponta afiada de sua arma piscou na escuridão antes de se afundar no corpo de Ryan. O ser guinchou, derretendo e desfazendo suas garras.
Ryan caiu no chão, se contorcendo. As veias escuras surgiram por todo o seu corpo a partir do ponto atingido. Subitamente ele parou e a tenebris começou a sair de seu corpo, indo se juntar ao ser, que rugia sem conseguir tomar forma sólida. Ele apontou seu dedo fino para Alice, furioso.
— Você... Verá... É... Inevitável!
E então deslizou seu corpo líquido pela parede até a ventilação, onde desapareceu na escuridão.
Alice expirou. A raiva ainda borbulhava em seu âmago, reforçando o mal estar de seu estômago vazio. Ela sentou no chão, fraca, a força trazida pela adrenalina sumindo rapidamente. Olhou para os ossos largados no canto do corredor escuro e lágrimas começaram a brotar em seu rosto enquanto ela se sentia cada vez mais enjoada.
Tinha visto outra pessoa morrer. E ela não pôde evitar, porque Lance sabia que essa era a melhor decisão, por mais extrema e dura que fosse.
Subitamente Alice lembrou-se de algo.
— Ryan!
Ela se arrastou rapidamente até ele, que estava inconsciente e pálido. Depois de alguns instantes, Alice percebeu que ele estava sem traje num ambiente de quase 25 graus negativos e com quase nada de oxigênio. Tinha que levá-lo para o esconderijo logo ou ter usado a última dose de cura nele teria sido em vão.
Com muita dificuldade, Alice carregou o corpo inconsciente do engenheiro até o esconderijo da Ala Leste, onde tinham conseguido manter o sistema de oxigenação e o aquecedor local. Tirou as luvas e segurou o braço dele, tentando medir seu pulso. Após alguns segundos de incerteza, ela expirou, aliviada. Ele tinha sobrevivido. Os olhos dela lacrimejaram.
— Ao menos um... - soluçou. - Consegui salvar ao menos um...
E então começou a chorar. Essa luta não tinha acabado ainda.
______________________
Helo, people! Como vão?
Que capítulo, hein? Cara, eu estava ansiosa demais pra chegar nele. CONTÁGIO está chegando ao final assim como o ano, gente... Que coisa, não.
Enfim! Não esqueçam de votar e de comentar o que estão achando, porque isso é muuuuito importante pra mim e até o próximo capítulo!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro