Rainha
Primeiro veio a dor.
Um latejar insistente na têmpora direita juntamente com a sensação de que algo grudento cobria um lado de seu rosto.
Então ela abriu os olhos.
Se deparou com a escuridão profunda e desconfortável.
Tentou se mexer, mas seu corpo parecia preso por algo. Tentou gritar, mas sua garganta estava seca. Ficou então se remexendo no escuro procurando entender o que estava acontecendo, mas não havia nada.
Uma luz cinzenta surgiu em sua frente e ela pôde ver o chão de um corredor, como se seu corpo estivesse preso ao teto.
Os sons vieram meio abafados e com ecos. Guinchos. Chiados. Alarmes. Mas principalmente uma voz masculina familiar. Ryan.
Uma silhueta chegou ao corredor, criando uma sombra com a luz que vinha do laboratório que usavam como esconderijo. Era ele. Sua voz saiu grave e preocupada.
- Você está bem? - ele perguntou, mas seu olhar estava direcionado para algo no chão.
Algo disforme que lembrava uma mulher. Alice sentiu um pouco de dor-de-cabeça. Quem era ela? O que estava acontecendo? Como estava vendo o corredor?
Subitamente sua "janela" se fechou e a cientista viu-se novamente na escuridão. Tentou se mexer mais uma vez, porém parou ao ouvir uma aterrorizante gargalhada feminina ecoar.
- Não adianta tentar. - disse a voz no escuro. - Você não pode sair daqui. Não pode se livrar disso.
Uma luz cegante tomou o ambiente e algo surgiu ali, os contornos levemente definidos.
- Alice... - disse a voz, soando com pena. - Eu sei o que quer, mas saiba que não importa o que planeje, nunca escapará daqui.
- Quem é você?! - gritou Alice, conseguindo falar.
Outra risada.
- Eu sou todos que ocupam essa nave. Eu vejo e sinto por todas as vidas que caminham por essas paredes de metal. Eu estou em todos os lugares e sei de tudo. Eu sou Enklidia.
Um momento de silêncio.
- Então você é a rainha dessas criaturas? - perguntou Alice, tentando ganhar tempo para pensar.
- Para sua mente limitada de humana é o que pareço ser. Mas para nós não há superiores ou inferiores. Todos estamos em harmonia. Todos somos um só, eu.
A cientista começara a ficar um pouco apreensiva.
- E o que quer de mim?
- Apenas que pare. - disse a voz de Enklidia. - Não acha que está sofrendo demais tentando sobreviver? Todos esses dias de tensão sem fim... Deve estar exausta. - os olhos de Alice começaram a pesar. - Sim. Você está cansada. Não precisa lutar se não quiser. Poderia só... Dormir. - a voz aveludada de Enklidia era quase hipnótica e bem persuasiva.
- Não! - Alice disse subitamente, tentando ficar acordada. - Eu... Eu tenho que voltar para a Terra. Tenho que voltar para casa.
- Por que? Vejo em suas memórias que tem várias memórias de sofrimento lá. Corações partidos, sonhos despedaçados... Por que você iria querer voltar? Aqui não precisaria pensar em nada disso.
Os olhos de Alice voltaram a pesar.
- Mas eu preciso. Preciso voltar para a minha filha.
Enklidia parou, o silêncio tomado por sua percepção do que estava acontecendo.
- Sim... Você fala a verdade, estou vendo. Você tem um filhote. Alguém que manterá sua descendência. - seu tom parecia interessado. - Mas temo que as coisas por lá não sejam mais como você imagina.
- O que quer dizer com isso?
- Ah, Alice... O universo não para. Vocês humanos deviam saber disso. Vivem tão pouco e sem propósito. Brigam entre si e causam destruição e ruína. Você realmente quer voltar para esse mundo?
- Sim.
- É uma pena. - disse Enklidia, de forma brusca. - Porque, como eu disse, você nunca mais irá voltar.
- O quê?! - gritou Alice.
O que a prendia apertou mais seus membros e começou a crescer até tocar seu rosto, úmido, frio e gelatinoso. Alice tentou se remexer, mas mal conseguia respirar.
- Mas o que... - disse Enklidia e subitamente Alice sentiu que o que a prendia havia relaxado. - Não!
Alice sentiu o baque ao cair no chão cheio de destroços.
Ainda estava naquele lugar abandonado. Mas não sozinha. Ao seu lado, a fera que parecia um lobo humanóide mordia vorazmente uma das grossas raízes que cobriam o chão. Era o mesmo monstro que saíra da sala secreta do almirante. Mas estava diferente. O tronco estava coberto por um jaleco em ruínas e por vestígios de roupas. Ela encarou-o, paralisada, pelo buraco que havia em seu capacete.
Sentia um frio anormal a consumindo, o que imaginou se tratar dos danos à roupa espacial, que permitiam que o calor saísse. Involuntariamente ela tossiu.
Imediatamente a fera parou, abriu um de seus brilhantes olhos verdes com pupilas em fenda e soltou os destroços da raiz. Ele virou a cabeça para a cientista, que começou a recuar. Na mesma velocidade, ele a seguia. Alice bateu com as costas na parede, não havia mais para onde correr. As duas enormes patas da fera se estendiam pelos dois lados de seu corpo, a cercando. Seu imenso focinho estava muito perto de seu rosto. Ela fechou os olhos, recuando com a cabeça e sentindo com as mãos um pedaço de metal. Era uma chance.
- Eu não faria isso se fosse você. - disse uma voz masculina.
Surpresa, Alice abriu os olhos e viu que lentamente o focinho recuava e dava lugar a um rosto humano. As garras se retraíram e as patas diminuíram. Curiosa e assustada, a cientista ficou paralisada, apenas encarando a rápida metamorfose da fera em ser humano.
- Desculpe. - disse ele. - Eu não queria... Assustá-la. É que faz tanto tempo que não vejo outros seres humanos...
De alguma forma, Alice encontrou novamente sua voz.
- Quem é você? - ela perguntou, curiosa.
- Ah, onde estão meus modos? - falou o homem, se levantando. - Sou Lance Ferrera. Era bioquímico no setor treze, sessão mexicana, até acontecer um acidente.
- Espera... Você é o doutor Lance? Parceiro de Elliot no experimento X-28?
Lance a encarou, desconfiado.
- Isso é confidencial.
- Somos apenas três aqui, quer mesmo manter em segredo? - perguntou Alice, sentindo-se irritada.
O olhar dele ficou preocupado ao seguir para a têmpora machucada dela.
- Seu machucado pode inflamar. Rápido, temos que ir para o seu esconderijo antes que ela resolva dar o ar de sua graça novamente. - disse ele, andando até a porta. - Vamos. Eu sei um caminho seguro.
- Espera! Eu nem conheço você direito!
Ele parou e virou-se com uma expressão de impaciência.
- Tudo o que precisa saber é que tem algo de errado com você. - disse ele, rude.
- Comigo?! Não fui eu quem virou uma fera ambulante que persegue os outros.
Ele bufou e deu-lhe as costas.
- Em primeiro lugar, eu salvei sua vida. Lembre-se disso. - ele falou, passando pela porta. - Se bem que talvez você esteja em perigo maior agora. - sussurrou ele, o que ela ouviu.
- Como assim?
- Ela falou com você, não foi? - perguntou ele, virando-se e a encarando, sério.
- Ela quem? Enklidia?
- Shhh! - ele gritou, assustado. - Não fale esse nome! Ela está por toda parte e odeia quando há alguma forma de vida que não faz o que ela manda.
- Como sabe disso? - perguntou Alice, curiosa, o peso da caixa de ferramentas nos braços.
- Porque eu sou uma dessas formas de vida. - disse ele, parecendo se gabar. - Era apenas um bioquímico que ajudava no projeto secreto de Elliot, o almirante Eberhard e Nancy. Eles eram muito seletivos e eu achei que fosse uma honra. - ele suspirou. - Até que aconteceu... Mas não quero falar disso.
- Como você consegue, digo, controlar essa metamorfose? - perguntou Alice, andando atrás dele.
- Você faz muitas perguntas. - murmurou ele, meio impaciente. - Quem é você exatamente? Seu rosto é familiar.
- Eu sou Alice Primrose, microbiologista do setor sete, sessão estadunidense. - ditou ela.
- Ah, claro. Faz todo o sentido. - disse ele, com um tom de tédio. - Me diga, Alice, há quanto tempo procura uma cura?
- Como sabe que estou procurando uma cura? - ela perguntou, desconfiada.
- Você parece insistente e curiosa demais sobre isso. - ele parou em frente a uma porta meio torta.
- Ah, faz uma semana eu acho. - disse ela e ele pareceu conter a risada enquanto chutava com força a porta.
- Ok, primeiro as damas. - falou, apontando para a porta. Assim que ela passou, ele entrou. - Bem, Alice, deixe eu lhe esclarecer duas coisas sobre as quais você está errada. A primeira é que não existe cura.
- Mas...
- Não existe cura, doutora Alice. E eu sei disso porque procuro por uma desde que aconteceu o acidente com o experimento. - ele se agachou próximo à parede e retirou um pedaço dela. - E a segunda é que não se passou apenas uma semana.
- Como assim? - perguntou Alice, confusa.
- Tenho observado você há muito tempo. - disse ele. - Achava que não ia sobreviver aqui, mas você me provou o contrário. Uma pena que mergulhou desprotegida naquela nuvem de esporos.
- Então eram realmente esporos? - perguntou Alice, animada por ter acertado algo em suas teorias.
- Sim. Não vejo porque está tão animada. Isso a fez andar dormindo por esses corredores há semanas.
- Espera, semanas? - perguntou Alice, ainda mais confusa. - Mas fazem só dois dias!
Ele riu e se abaixou, entrando no buraco da parede. Para obter respostas, ela o seguiu pelo apertado túnel lotado de fios soltos e pontas afiadas.
- Você disse que era seguro... - murmurou ela.
- É melhor do que o corredor ácido. - disse ele.
Ela suspirou.
Logo terminaram o caminho e chegaram a um pequeno abismo.
- Espera. - disse ele, a parando. - Se cair, esse buraco leva até o lado de fora. Devo dizer que a experiência lá fora é bem desagradável sem a proteção adequada.
- Você já caiu por ele? - perguntou Alice, vendo Lance armar um salto. - Como sobreviveu?
- Da mesma forma que você sobreviveu tanto tempo sem comida ou água. - disse ele, caindo do outro lado. - Vem, eu te seguro.
- Isso é muito perigoso. Acho melhor não. - disse ela, recuando.
Ele suspirou.
- Eu vi você enfrentar o Mediador várias vezes, doutora. É destemida quando precisa. Agora preciso que pule na minha direção. Eu vou segurá-la.
- Eu nem conheço você direito... - disse Alice. - Pode ser uma armadilha! Enklidia pode estar controlando você!
Ouviram um baque vindo de trás da mulher.
- Hora errada para ter um bom raciocínio. - disse ele, tenso. - Eu falei pra não falar o nome dela!
Alice olhou para trás e viu a "cobra gigante" se arrastando até ela, destruindo tudo por onde passava.
- Ah! - gritou a mulher.
- Rápido, doutora! Pule!
E assim fez a mulher. Lance a segurou no último segundo e a puxou novamente para a estabilidade do outro lado do túnel. A criatura tentou seguí-la e sua enorme boca se prendeu ao chão perto dos dois, o rachando. Lance virou a fera novamente e mordeu com força o lado da cabeça da criatura. Não adiantou muito e rachaduras maiores começaram a aparecer no chão e nas paredes. Notando isso, Alice agarrou Lance.
- Vamos! Tudo está desmoronando! - gritou, alerta, correndo.
Ela não parou até que tivessem chegado ao fim do túnel, em grades eletrificadas. Foi aí que finalmente virou-se e viu um enorme pedaço do chão se quebrar e se soltar, fazendo a criatura cair pelo buraco, como um macarrão sendo sugado pelo buraco da pia. Só então Alice pôde respirar com mais calma.
- Isso... - ela estava ofegante. - Isso foi perigoso.
- Você deve estar acostumada. - disse Lance, humano de novo.
- É, eu estou me acostumando. - admitiu ela. - Mas você estava dizendo.
- Ah, sim. - disse ele, lembrando-se. - Quanto tempo acha que se passou desde sua última lembrança antes desse caos?
- Ahn... - ela parou, pensativa. - Talvez umas duas semanas, mas não acho que seja tudo isso.
Ele olhou-o com pena.
- Alice, já fazem três meses que Primux foi tomada.
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Hello, peoples! Como ficaram depois dessa bomba? Pois é, eu fiquei com muita vontade de postar esse capítulo depois das metas quinhentas palavras do último. Então aqui está ele.
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