Perdas
Lance observava Alice andando pela ponte. Ela parecia assustada, como se temesse algo. Ele não poderia culpá-la, claro. Provavelmente agora ela já estava começando a perceber a verdade. Talvez Mira tivesse contado algo, já que ficaram sozinhas longe dele por um tempo. Talvez fosse Ryan. Esse também parecia saber de algo. Será que já tinham descoberto a verdade sobre Lance?
Ele olhou a cientista se afastando na direção da estrutura cilíndrica do Corium. Será que ela tinha noção do perigo que a cercava? Que um companheiro poderia matá-la naquele instante? Se Alice já tivesse ideia da verdade sobre Lance, então a resposta para ambas as perguntas era "sim". Ele suspirou tristemente. Por que isso tinha acontecido com ele? O destino era cruel às vezes, mas as pessoas não deviam abrir mão da responsabilidade sobre as próprias ações. Tudo tem consequências.
Ergueu a cabeça subitamente. Sentiu um calafrio. Só então notou que tinha algo errado. Mira não estava ali. O mundo começou a tremer seguido de estrondos distantes como se tudo estivesse desabando. Um grito ecoou de uma sala próxima. Era a asiática. Então veio o som de coisas pesadas e grandes sendo derrubadas. Lance correu para ver o que estava acontecendo. Uma risada esganiçada soou de dentro da sala e ele logo reconheceu a fonte: Nancy. Isso era péssimo. Um corpo passou voando pela porta e se chocou com o chão do corredor.
— Mira! - gritou ele, indo em socorro da mulher caída.
— Eu estou... Bem! - grunhiu ela, rejeitando a ajuda dele. - Mas estamos com problemas. Alice já está voltando?
Lance fez uma careta.
— Ela...
Antes que pudesse responder, guinchos e rugidos ecoaram do fim do corredor pontuados pelo som do metal rangendo. Alguma coisa estava assustando os monstros e eles estavam vindo em direção aos sobreviventes.
— Droga. - disse Lance, sentindo a tenebris começar a cobrir sua pele sem que ele pudesse controlar.
A alfaluriase já parava de agir, trazendo os efeitos colaterais.
Mira já se levantava, o dispositivo de eletroparalisia pronto para acertar alguns mutantes. Não seria uma luta justa e, considerando como o bioquímico segurava o braço, talvez ela não tivesse aliados. Suas costelas doíam pelo impacto anterior. Ela não tinha imaginado que haveria alguma criatura na sala dos arquivos, já que, em teoria, era uma área segura. Pelo menos não imaginou que seria algo tão forte e resistente à força do DEP. Isso provaria que o dispositivo não era tão confiável como arma? Mira esperava que a resposta fosse "não", já que dependeria dele mesmo assim.
Os mutantes começaram a vir.
Primeiro três com braços enormes e desproporcionais. Pareciam fracos de início, mas tinham uma força bruta contra a qual a asiática não tinha a menor chance. Mira desviou de um e o acertou com o DEP. O monstro logo caiu no chão, paralisado. Ela se distraiu com a pequena vitória e foi empurrada por trás. Caiu no chão e rolou para o lado agilmente, tentando não ser atingida novamente. Os braços disformes se ergueram sobre seu corpo prestes a esmagá-la, mas a mulher rapidamente deslizou para o lado, fugindo do impacto.
Aqueles monstros eram fortes, porém lentos e não eram espertos. Mira tinha alguma vantagem afinal. Brandiu sua arma, disparando o feixe de energia contra um monstro que se aproximou demais. Outro chegava por trás, mas ela desviou dele com destreza. Porém esse último parecia mais esperto e desviava dela sempre que Mira se aproximava para golpeá-lo. Ela então fez um movimento arriscado e se jogou contra ele, esticando seus braços para encostar a ponta do dispositivo na tenebris. Por pouco ela não alcançou seu objetivo.
De repente dor. O monstro tinha acertado Mira pelas costas e os movimentos dele foram tão rápidos que não houve tempo para desviar. A asiática se chocou com força contra o chão. Respirar se tornou um incômodo terrível e ela sentia uma dor lancinante no tórax. Alguma coisa tinha quebrado ali. Sentiu o gosto metálico na boca. Sangue. Pequenas gotas saíram sobre seus lábios e pintaram a superfície vítrea do capacete enquanto um filete descia por seu pescoço.
Sua visão ficou turva, mas ela ainda pôde ver a criatura se aproximar novamente com seus punhos de martelo. Então a risada. Nancy se aproximava novamente. Os dedos de Mira se dobraram no chão, tentando, em vão, ajudar a levantar o corpo. Seus braços tremiam. Estava tentando se levantar, mas a dor era tanta. Lance rosnou, trêmulo. Ele mal conseguia se mexer também. Com a alfaluriase perdendo efeito, a tenebris pouco a pouco voltava a ficar ativa de um jeito descontrolado, paralisando seus músculos.
— Ora, ora, ora. - disse Nancy, caminhando lentamente até os sobreviventes.
Sua voz era arranhada como se não bebesse água há muito tempo e tinha um tom de maldade que combinava com seus olhos brancos como leite e em formato de fenda. Linhas escuras se destacavam em sua pele ressecada e seu cabelo loiro de outrora agora estava cinza, como se tivesse se sujado com graxa. Havia uma aura de escuridão ao redor dela, como se já fosse perigoso olhá-la.
— Veja só como estão os traidores agora. - Nancy disse com sua voz excessivamente aguda e esganiçada.
Seus dedos, finos, escuros e rígidos como agulhas de metal, agarraram o capacete de Mira, arranhando-o lentamente para reproduzir o som de um garfo arranhando um prato de porcelana. Nancy deu uma risadinha irritante. Subitamente ela agarrou o capacete com força e o pressionou contra o chão.
— Vocês são tão patéticos.
Ela ergueu o capacete e olhou bem nos olhos de Mira. A asiática fez uma expressão de nojo ao ficar tão próxima dos olhos monstruosos dela.
— Fracos! - Nancy soltou o capacete e começou a socá-lo, causando pequenas fissuras que ativaram triângulos de aviso vermelhos na superfície vítrea.
Lance saltou sobre a mutante, os dentes brancos rangendo. Seus olhos verdes cintilantes encararam Nancy dando um aviso claro: vá embora. Ela o empurrou com toda a sua força, lançando o homem-lobo longe no corredor, e gargalhou exibindo seus dedos de navalha.
— Você não tem chance contra a Unidade. - disse Nancy, exibindo sua mandíbula semelhante à de um tubarão. - Voltará para nós, você vai ver. Todos os traidores voltarão. - de repente seus olhos brancos se voltaram para a asiática. - Ou morrerão se não forem dignos.
Mira sentiu um calafrio. Na sua frente no corredor, perto da entrada da ponte, estava o ser. Ele sorriu brevemente enquanto colocava seus dedos finos na borda da entrada.
— A-a-ali-ce... - a asiática tentou dizer com dificuldade. - E-ela... Perigo...
Tossiu. Não haveria ar suficiente para gritar o aviso. Apesar disso, Lance direcionou seus olhos cintilantes para Mira. Ele tinha entendido. O mutante ficou em posição de ataque, Nancy e o Mediador em seu campo de visão. Ele não poderia deixar a asiática do jeito que ela estava, precisava aproveitar enquanto sua força de vontade o impedia de cair novamente sob o controle do ser e manteria Mira segura dos seres perigosos ali. Se dependesse de si mesmo, Lance Ferrera, o humano, ele não iria deixar outro humano inocente à beira da morte.
Nancy soltou um grito extremamente agudo que fez as lâmpadas quebrarem. Quando Lance pôde enxergar melhor, o Mediador tinha sumido. Tentou ir na direção da criatura, mas Nancy saltou sobre seu corpo, desviando o homem de sua trajetória.
— Não. - grunhiu Lance, revidando seu ataque contra Nancy.
Ela pulou na frente da ponte, seu sorriso de predador combinando com seus olhos sem vida. Lance bufou. Era isso. O ser estava indo em direção a Alice e ela teria muita sorte se sobrevivesse ao monstro em um lugar sem saídas como aquele. A menos que ela estivesse trabalhando com ele o tempo todo e isso fosse apenas um jeito de separar Lance da real humana indefesa. Talvez fosse isso.
Os segundos que levou para raciocinar isso foram suficientes para Nancy atacá-lo novamente sem dó. Ela era voraz e rápida. Atacava e recuava. Seus dedos das mãos haviam se esticado além do tamanho normal e pareciam agulhas de tricô. Com apenas isso, a mutante fazia ataques repetidos contra o mutante sem dar tempo para ele pensar. Ele percebeu isso e sabia que não poderia desabar ou então perderia o controle sobre si.
Nancy gargalhou de forma esganiçada.
— Não vai revidar? Ou será que não consegue? - disse ela, completando com um risinho que era como um giz seco sendo passado em um quadro negro.
Lance rosnou, sem conseguir se expressar com palavras. Talvez fosse um sinal de que ele já estava perdendo a batalha em seu interior.
— Parece que um já está fora... - disse Nancy, começando a ir em direção a Mira. - Hum, o que acontece se eu quebrar esse capacete agora?
Mira rangeu os dentes enquanto a mutante se aproximava. Sangue escorria por seu nariz, impedindo sua respiração. Seu corpo todo doía, mas mesmo assim ela sabia que não podia só ficar ali parada. Ainda não estava morta e era isso que importava. Nancy então agarrou o capacete, mas, antes que pudesse golpeá-lo, Mira agarrou seu braço com força e cravou o dispositivo na lateral do corpo da mutante.
Nancy gritou com fúria e se jogou para trás, se afastando do dispositivo de eletroparalisia. Ela tremia enquanto seus dedos voltavam ao tamanho normal. Por fim olhou para Mira com seus olhos cinzentos.
— Você vai pagar por isso! - gritou, furiosa, correndo em direção a Mira.
A asiática rangeu de dor quando moveu seu braço, mas conseguiu atingir o corpo de sua agressora com o DEP novamente. A mutante caiu, tremendo. Lágrimas negras escorriam por seus olhos enquanto ela tentava se levantar. Lance se aproximou de Mira, tentando ajudá-la a se levantar. Quando ele levantou um pouco o seu corpo, a mulher trincou os dentes, com dor. Ele a colocou cuidadosamente encostada na parede. Ela com certeza não era a traidora e estava em um estado crítico.
— Você... Vocês... - Nancy gaguejava, se levantando lentamente. - Vocês vão pagar... - a mutante cuspiu no chão, mostrando sua raiva. - Com a morte!
E então saiu correndo pelo corredor escuro. Lance se levantou rapidamente, pronto para perseguí-la, mas Mira segurou seu braço com firmeza.
— Alice... - sussurrou Mira.
Antes que ele pudesse entender, ela ergueu seu dedo debilmente, apontando para a ponte. Ali, Ryan chegava carregando o corpo parcialmente consciente de Alice. Ela também parecia mal. Uma mancha escura permanecia em sua perna, presa. Os dois homens trocaram olhares de seriedade.
— Alice, você está bem? - perguntou Lance, surpreso. - O Mediador foi atrás de você...
— E eu quase morri. - disse Alice, se soltando do braço de Ryan. - Ryan me salvou.
Lance semicerrou os olhos, desconfiado.
— Certo. - disse, suspeitando. - E para onde ele foi?
— Eu... Eu não sei. - disse Alice, voltando seus olhos para Mira. - Oh, céus! O que houve aqui? - ela se sentou perto da asiática ferida. - Ela... Ela está muito mal.
— Eu tentei... - Mira sussurrou. - Tentei ser como você... Mas... Acho que você tem mais sorte que eu. - completou com um sorriso triste.
Alice encarou a cena, exasperada.
— Rápido! Temos que levá-la daqui! Temos que... Temos que achar medicamentos! Eu... Eu...
— Alice. - Ryan colocou a mão no ombro dela, o olhar pesaroso. - Não tem... Não temos o que fazer agora.
— O quê?! Não! Não! Não, isso... Isso... Isso não é verdade! Aqui é uma estação espacial com alta tecnologia! TEM que ter algo que possa ajudar! - disse Alice, desesperada.
— E... Tinha. - disse Lance, triste. - A Máquina Reparadora de Tecidos, mas agora...
— Mas... - Alice olhou para Mira, triste.
— Tudo bem... - Mira sussurrou com um sorriso triste. - Eu... Eu estou muito quebrada... - ela arfou, com falta de ar. - Eu... Eu mal consigo... Respirar. Serei um peso morto. Vocês precisam escapar.
— Não. Não, eu não vou te deixar aqui!
Alice se sentou ao lado de Mira com os olhos lacrimejando.
— Eu também não queria morrer aqui. - disse Mira, desviando o olhar. - Mas a vida tem dessas às vezes. - ela deu um olhar sério para Alice. - Antes... Antes eu queria... - ela trincou os dentes, a dor no tórax ficando cada vez mais aguda. - Por favor... Chegue mais perto.
A morena se aproximou mais e a asiática cochichou algo. Alice arregalou os olhos, perplexa. Por fim, Mira fechou os olhos e se recostou na parede. A morena se afastou, o choque em sua expressão.
— Mas isso não pode te impedir. - Mira sussurrou. - Você é corajosa. - ela gemeu com a dor. - E tem mais sorte do que eu... - arfou. - Vai saber o que fazer...
E então ela se calou. Alice rapidamente pegou o braço da asiática e afastou a manga do traje para medir o pulso com urgência. Os homens olharam a cena com pesar. Era inútil. Qualquer um veria que Mira estava muito mal. Seu rosto estava pintado pelo vermelho e seu cabelo estava grudado em um lado. Fora os ossos que com certeza tinha quebrado. Os poucos suprimentos médicos que tinham não seriam o bastante para salvá-la, Alice sabia.
Ela fechou os olhos e respirou fundo.
— Está... Sem pulso. - disse, a tristeza emanando por cada palavra.
Soltou o braço da falecida e abriu os olhos. Ela não queria acabar como Mira. Iria ir embora daquele lugar.
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Helo, caro leitor que continua me acompanhando! Se você chegou até aqui, muito obrigada!
O que acharam do capítulo? Uma pena, não é. Agora restam apenas três sobreviventes! Será que vão conseguir escapar? Eis a questão!
Alguma teoria? Diz aí!
E não esquece de deixar seu votinho e comentar sobre o que achou 😙
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