Omissões
Alice desligou o gravador e suspirou, exausta. Tudo estava indo de mal a pior. Felizmente havia esperança, já que ainda restava uma saída. Infelizmente Ryan teria que acordar antes que qualquer coisa fosse feita. Arranjos mal feitos por alguém por alguém despreparado para tal função não ajudariam em nada se só piorassem ainda mais a situação dos painéis de controle. Além disso, largar alguém inconsciente e vulnerável a um ataque da tenebris, no caso, o único capaz de disponibilizar o caminho de fuga, seria repetir os erros do passado.
As falanges de Alice tamborilavam a mesa, impacientes. Estar apenas esperando era como ver o pouco tempo que lhe restava escorrer por entre seus dedos. O tablet da sala de comando estava em sua mão, mostrando a análise de danos atualizada.
Ao que parecia, o "teto" do espaço ao redor do núcleo estava desabando, tornando o gerador de energia de lá instável. Ryan tinha alertado sobre isso e sobre a possibilidade de tudo explodir. Talvez liberar essa energia instável fizesse Primux deixar de ser uma bomba iminente.
Olhou para o homem ainda inconsciente ao seu lado. Ryan não podia morrer pela hipotermia justo agora. O aquecedor daquela área de residência já estava ligado há bastante tempo e Alice tinha feito o máximo que pôde para manter o engenheiro vivo até aquele instante. Agora ele tinha que ficar vivo para ajudá-la ou tudo o que os sobreviventes tinham feito fora em vão e não haveria sobreviventes no final.
Quer dizer, sempre havia um caminho adicional. Alice estava determinada a voltar a ver sua filha, com ou sem a ajuda de Ryan. A cientista tinha um outro caminho de fuga, mas só o usaria se o engenheiro não sobrevivesse.
Subitamente as pálpebras dele se moveram e Alice teve um sobressalto ao perceber que ele estava enfim acordando. Ryan gemeu ao se levantar. Bocejou, como se acreditasse estar em sua casa, acordando para mais um dia de trabalho, e só depois abriu os olhos. Arfou e olhou para os lados, visivelmente decepcionado. Lentamente seu cérebro processou tudo o que tinha acontecido e ele se focou em Alice, que estava contente com o fim da espera.
— Eu... Fiquei inconsciente...? - ele começou, devagar. - Que lugar é esse? Outro esconderijo?
Alice expirou, aliviada. Aparentemente suas funções cerebrais estavam bem. Porém não podia se precipitar sobre a aparente recuperação bem sucedida do engenheiro. Uma de suas mãos continuou escondida atrás de suas costas segurando o pedaço de niotita em caso de alguma surpresa ruim.
— Você... Se lembra do que aconteceu? - perguntou ela lentamente.
Ryan apertou os olhos, pensativo.
— Eu acho que... Estávamos limpando o esconderijo depois do ataque daquele ser estranho e... Conversamos um pouco sobre... Ahn... A máquina reparadora de tecidos, eu acho. - ele respirou fundo. - Depois disso... Nada. - completou, encarando Alice. - Por quê? Aconteceu alguma coisa?
O rosto da mulher se preencheu de confusão. Colocou o dedo no queixo e se virou, pensativa.
— Quanta seriedade. - disse Ryan, com tom de piada.
Alice virou-se pra ele com uma expressão de severidade.
— Pense um pouco mais. Não se lembra de mais nada depois disso?
Ryan apertou os olhos.
— Tem uma lacuna, mas sei que, depois disso, eu fui consertar o sistema de purificação de ar e você foi achar ferramentas para eu consertar a máquina reparadora de tecidos... De repente tudo ficou muito escuro e aí eu acho que apaguei.
A expressão de preocupação de Alice se agravou. Ryan semicerrou os olhos, compreendendo a situação.
— Essa não deveria ser minha última memória, não é? Algo aconteceu comigo? - questionou, fazendo Alice desviar o olhar, preocupada. - Oh, céus. O que eu esqueci? Quanto tempo eu perdi?
Alice mordeu o lábio. Deveria contar toda a verdade? Isso poderia atrasar o seguimento das coisas se Ryan ficasse a todo instante se culpando ou gastando energia pensando em outras alternativas de fuga. Além disso, considerando a corrida contra o tempo que estava acontecendo, contar sobre as perdas e os fracassos seria desnecessário.
— Muita coisa aconteceu antes de você... Ahn... Desmaiar.
Ryan semicerrou os olhos, notando a resistência de Alice em contar qualquer coisa.
— O que aconteceu?
— Muitos planos foram frustrados. - disse ela, o que não era mentira. - Na verdade, pouco antes de você ficar inconsciente, estávamos no meio de um plano de fuga. Você estava consertando uma cápsula para nós irmos embora daqui.
Ryan estranhou essa resposta.
— Espera, e a cura? Você disse que só iria pensar em uma forma de voltar para a Terra depois de achar uma cura para os mutantes... - ele notou a expressão de tristeza da mulher. - Você não conseguiu nada, não é?
Alice respirou fundo, se lembrando de Lance e do soro. Nenhum dos dois voltaria.
— Acho que era mais difícil do que eu pensei. - foi sua única resposta e também não era mentira.
— Que pena. Então continuamos sendo os únicos humanos sobreviventes, não é? Quero dizer, é uma droga, mas não tem nada que possamos fazer.
Alice respirou fundo de novo, desviando o olhar. Ryan ficou sério.
— Você sabe por que eu... Desmaiei do nada e perdi a memória?
— A verdade, Ryan, é que... Aquele ser voltou e atacou você. Só que você bateu a cabeça muito forte quando nós lutamos contra ele e a concussão deve ter causado uma amnésia temporária e parcial. - Alice disse rapidamente. - Provavelmente não deve ser algo grave. Fora todos os problemas e os planos cancelados que tivemos, você não perdeu nada.
Ryan franziu o cenho, meio desconfiado.
— Concussão? Eu não sinto nenhuma dor na cabeça...
— Temos que voltar logo para o conserto, Ryan. - Alice mudou de assunto, séria. - Muito tempo se passou desde sua última lembrança. No momento, estamos em uma situação crítica. Nosso oxigênio está acabando e a comida está perto do fim. Não dá mais para ficar nessa estação espacial mesmo que eu quisesse achar uma cura ou continuar minha pesquisa. Temos algumas horas para arranjar um jeito de sair daqui e ir embora de vez.
Ryan recuou um pouco diante do tom irritado e apressado de Alice, mas concluiu que ela tinha motivo.
— Ok... - disse ele, lentamente. - Vamos logo fazer esse conserto, mas eu ainda preciso de mais explicações depois.
— Claro, claro.
O olhar de Alice foi para a porta do laboratório.
— Pode procurar cilindros cheios por aqui? Eu tenho que pegar o tablet do almirante.
— Claro. - respondeu Ryan, suspirando e saindo da "cama".
Alice se afastou dele e foi até o laboratório, que ficava ao lado. Fechou a porta atrás de si e depois a trancou com cuidado. Respirou fundo e fechou os olhos.
— Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem. - sussurrava. - Ryan já acordou, Alice. Ele pode arrumar a cápsula. Tudo vai ficar...
O computador apitou, interrompendo a mulher. Alice arregalou os olhos e correu até a tela. Um retângulo vermelho se destacava no meio, com o resultado da amostra. A cientista franziu o cenho com a comprovação de suas preocupações.
— 20% de compatibilidade e caindo... - murmurou. - O soro realmente funciona com a mesma capacidade em uma segunda cobaia.
Ela sabia que dois resultados não eram o suficiente para indicar um padrão, mas mesmo assim sorriu um pouco. Ryan ia ficar bem. Mira teria ficado bem. Alice tinha feito um bom trabalho. Ela se sentou na cadeira em frente ao computador, pegou seu gravador e retirou um pequeno chip encaixado ali. Então o colocou no computador e começou a passar todos os arquivos da pesquisa sobre a tenebris que ainda restavam no armazenamento central de Primux.
Alice acreditava firmemente que a fuga daria certo e, nesse caso, seu gravador e o chip teriam todas as informações descobertas sobre a tenebris sem que houvesse necessidade de retornar para a estação. A missão que o ministro Rox lhe passou seria completada. Se ele ainda estivesse vivo, ele receberia tudo o que ela descobriu sobre o experimento confidencial X-28 e faria algo a respeito. Alguém TINHA que fazer algo a respeito.
Olhou para os dados sendo passados para o chip, refletindo sobre como eles seriam usados pelo governo. Rox teria conseguido a influência política suficiente para cancelar o andamento das experiências em humanos? Como o conflito entre os países tinha terminado na Terra? Será que Alice e Ryan, no final, estariam apenas indo de um cenário hostil para outro? Eram muitas questões. De qualquer forma, a cientista sabia que o tempo estava acabando. Primux se aproximava cada vez mais da Terra.
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