O dia foi entediante, mais um dia de trabalho sem nada que chamasse a atenção. Atender clientes sempre foi algo que me retirava grande parte de minha energia. Com meu fone, caminho calmamente pela noite enquanto ouço solenemente as músicas de minha playlist.

Sempre adorei olhar o céu na escuridão, a noite, mais precisamente a madrugada, sempre foi meu momento favorito do dia desde que experimentei andar pelas ruas neste horário.

Nestes momentos não há ninguém nestas ruas frias, e o solene brilho da lua ajuda a descansar a mente.

Ao chegar em casa, a escuridão é algo que prefiro manter, afinal, após andar na madrugada, ligar alguma luz apenas machucaria meus olhos.
Sem vontade de dormir, passo um café, sentando-me perto da varanda, enquanto acendo um cigarro barato.

Aos poucos, as sombras começam a se juntar a cadeira em minha frente, tomando forma aos poucos. Um ser humanoide se formou em minha frente, seu sorriso era horrivelmente falso, as sombras não conseguiam esconder aquele rosto demoniacamente nojento e desgastado.

-Como está desgraçado?-dizia a sombra rindo

-O mesmo de sempre, apenas cansado.-digo enquanto dou mais um trago no cigarro com pouca nicotina.

Ele me olhava com nojo e desprezo, apenas procurando mais alguma piada sem graça e ofensiva para poder me degradar

-Isso que dá não conseguir aguentar toque humano não é mesmo?

-E de quem será que é a culpa?

-Você fica aí fingindo que é bom, quando na verdade tudo que se passa na sua mente são formas de quebrar o código penal né-mais uma vez, seu riso tentava esconder o cansaço e o ódio.

Terminando o cigarro, dou mais um gole no café, suspirando, eu sei o que devo fazer. Mas não quero fazer...

-Escute Cef...-comecei relutante

-Olha o louco dando nome pras suas esquizofrenias-Disse a sombra rindo enquanto se debatia

-Eu não posso lhe dar o controle total, ou fingir que gosto de você, pelo contrário, eu te odeio.

Ele riu, brincando com a situação, mas não permiti que ele falasse

-Mas, você é parte de mim, você sou eu, você é tudo o que tento esconder, mas não posso negar que eu sou você.

-NÃO COMECE-disse o demônio, começando a se irritar-Não finja que é alguém compreensivo ou certo, odeio esse mimimi e essa vitimização sem sentido! Qual a próxima? Vai chorar bebezinho?

-É até engraçado você tentar esconder o que sente no ódio

Ele pula da mesa e acerta um soco em cheio em meu rosto, o sangue quente escorre pelo meu rosto, e o ser de sombra queima como uma chama intensa. Seu olhar de ódio era severo, mas se olhasse mais no fundo, era possível enxergar o que havia dentro daquela sombra horrível. Eu suspiro

-Eu sei como se sente, eu sei o que é isso, mas convenhamos, estamos sozinhos, sempre estivemos.-eu disse cansado, como sempre

-PARE, PARE COM ISSO-ele me sacudia, sua sombra aos poucos se transformando em líquido, escorrendo sobre meu corpo, me sujando com todas as impurezas que eu me obriguei ter em todos esses anos.

Aos poucos eu me aproximei mais, mesmo com ele me batendo, mesmo com ele me destruindo, eu o abracei, um abraço forte, com toda aquela dor esvaindo pelos esporos nojentos do monstro.

-Eu sei, eu sei que não somos boas pessoas, eu sei que toda dor, toda a destruição, toda a morte... tudo de ruim que causamos, nada será perdoado, nunca, mas, eu lhe perdoo, e eu lhe digo, que temos salvação.

-PARE, PARE COM ISSO SEU DESGRAÇADO FILHO DA PUTA-Ele gritava enquanto tentava me espancar.

Os gritos continuaram, até que todas as manchas sumiram, e uma criança mostrou-se em meio aquele manto horrível de sombras e mortos, uma criança chorosa e inofensiva, apenas machucada, muito machucada.

O choro continuou por um bom tempo, até que finalmente, ela parou, e o abraço foi afrouxado, um silêncio enorme foi quebrado quando a criança finalmente falou.

-Você sabe que eu ainda irei voltar a te fazer as coisas que odeia não sabe?

-Eu sei, mas eu já te aceitei, e eu sei que você é um mal necessário, sem você, eu já estaria morto a um bom tempo.

As sombras estavam aos poucos voltando para o corpo daquele pequenino, como se fosse uma armadura contra todo o mal deste mundo, e em seguida diz, com um leve sorriso.

-você pode ter me aceitado, mas será que conseguirá resistir a tudo que eu quero que façamos?

O garoto, voltando a ser um monstro, desapareceu, assim como minhas feridas, apenas os corpos continuam em meu corpo, eu suspiro, eu sei que essa relação simbiótica nunca acabará, mas se eu apenas rejeita-lo, ele voltará mais forte, eu o odeio, mas ele sou eu, e meu demônio, tem que ser controlado...